Nos primeiros anos de vida de Belo Horizonte, muitos dos recém-chegados escreveram sobre duas impressões imediatas: a modernidade, a solidão das ruas e o vazio que, na capital, nasce da literalidade. Enquanto Carlos Drummond de Andrade vomitava seu tédio nas ruas da capital, como escreveu em A flor e náusea, as gigantescas avenidas de BH permaneciam, nos primeiros anos do século 20, literalmente vazias.
As casas planejadas para abrigar os que chegavam eram classificadas em tipos, em escala hierárquica de importância, variando do “tipo A”, mais baixo, até o “tipo F”, destinado às pessoas de maior importância política e econômica, mal estavam preenchidas com moradores. Os locais idealizados para o comércio não tinham mercadoria em abundância, nem público consumidor. O bonde e toda a estrutura de transporte público estava pronta para ir e vir, mas não tinha ainda quem carregar. As belas praças, os postais e o paralelismo das ruas que cortavam a Avenida do Contorno mal tinham visto transeuntes. Não havia ainda um belo-horizontino nascido.
O poeta parnasiano e imortal da Academia Brasileira de Letras Emílio de Meneses chegou a afirmar que na capital havia “muitas ruas, nem árvores, nem habitantes, vento e poeira; uma sinistra cidade nascida morta”. Apesar do vazio e da fantasmagoria presente no imaginário inicial de Belo Horizonte, pouco tempo depois a cidade já começava a se reconstruir.
“São dois lados de uma moeda”, explica Michele Arroyo, historiadora, cientista social, especialista em patrimônio cultural e ex-diretora do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha). Belo Horizonte, afirma ela, nasceu com uma contradição: uma cidade que foi pensada para a modernidade, inspirada pela recém-decretada República no Brasil, mas com uma população que a ocupou que ainda carregava maneiras de viver distintas do ímpeto moderno. “Era uma modernidade desejada, mas, na prática, trouxe outra lógica de vida. Belo Horizonte nasce nesse conflito”, aponta.
Outra contradição importante, na gênese, é que Belo Horizonte foi “pensada para poucos”. Arroyo explica que a capital atraiu muita gente durante os primeiros anos, inclusive para a construção da cidade, fazendo com que a distribuição demográfica e a lógica social pensadas para BH fossem “implodidas” durante sua estruturação. “A primeira favela de Belo Horizonte, que surgiu na Rua Sapucaí, chamava Alto da Estação, e era formada por pessoas que vieram trabalhar na construção da cidade. Não havia lugar destinado a elas em Belo Horizonte”, explica.
ESPECULAÇÃO A especialista diz que uma grande especulação imobiliária, impulsionada por essas contradições, ocorreu nos primeiros anos da capital. Além disso, vários locais, que foram pensados inicialmente como colônias agrícolas que produziriam alimentos e produtos de consumo para o núcleo urbano, dentro do anel da Avenida do Contorno, acabaram sendo ocupados pelos trabalhadores que construíram a cidade. “Pouco tempo depois da inauguração da cidade tem-se bairros como Santa Tereza, Floresta, Carlos Prates, que chamamos de pericentrais, no entorno da Contorno, onde deveriam existir chácaras no projeto original, que foram ocupados. O próprio projeto já muda nesse início e a cidade já começa se autodestruindo para a construção de outra cidade”, ressalta. “Temos uma cidade que se autoconsome do ponto de vista do próprio planejamento e pela busca da modernidade.”
Há uma história da recém-nascida Belo Horizonte que ilustra bem esses conflitos. A existência da imprensa era um dos sinônimos de modernidade. A uma capital forte, moderna e relevante no cenário político brasileiro, como deveria ser Belo Horizonte, era necessária a tecnologia mais poderosa possível para que uma cultural editorial se estabelecesse. Como escreveu o professor da Universidade Federal de Minas Gerais Elton Antunes em sua dissertação de mestrado, a “primeira impressora rotativa de um jornal privado” em Belo Horizonte chegou no primeiro semestre de 1927. Do modelo Marinoni, a prensa, que custou impressionantes 200 contos de réis, veio para cobrir as necessidades do jornal Diário da Manhã e impressionou os moradores da capital, que “viam ali um indicador palpável do fôlego do projeto editorial que brevemente se instalaria (em BH)”.
O maquinário veio de trem direto do Rio de Janeiro e desembarcou na Praça da Estação. A chegada da “imprensa moderna”, como escreveu Antunes, também veio acompanhada de diversos equipamentos gráficos que “davam à carga um volume e peso gigantescos, raramente desembarcados na cidade”. Apesar do alvoroço criado, o guindaste da estação não foi capaz de suportar o peso do maquinário. Curiosos que foram conferir a situação acabaram se transformando em voluntários que, com a ajuda de “oito juntas de bois trazidas da periferia da cidade” tentaram carregar a prensa até o seu devido lugar. “Os mais possantes caminhões da cidade, convocados para a missão, nem sequer se arriscaram ao vexame de engasgar na subida da Bahia, diante de tanta gente, tão entusiasmados os espectadores”, citou o pesquisador. O trabalho todo durou oito horas, mas o equipamento precisou ser carregado, apenas, à distancia de 10 quarteirões.
MUTILAÇÃO Arquitetado pelo paisagista francês Paul Villon, o Parque Municipal Américo Renné Giannetti é um dos mais críticos exemplos da constante transformação da paisagem da capital mineira. Projetado inicialmente com extensão de 555 mil metros quadrados, hoje o local tem apenas 32% da área original – 182 mil metros quadrados. Na época de sua inauguração, o parque era limítrofe às avenidas Afonso Pena, Alfredo Balena, Francisco Sales e Assis Chateaubriand. As mutilações no território começaram poucos anos após sua inauguração, que ocorreu dois meses antes da fundação de Belo Horizonte, em 12 de dezembro de 1897.
Já em 1905, o processo de ocupação urbana do Parque Municipal ocorreu com a construção da Faculdade de Medicina, o Centro de Saúde do Estado e a Moradia Estudantil Borges da Costa. Na segunda década daquele século, há o cercamento do local. Dez anos depois, na década de 1930, a construção do Palácio das Artes, do Teatro Francisco Nunes e o prolongamento da Rua Pernambuco continuaram a dilaceração. Apenas em 1975, quando a área do parque era a mesma da atual, o terreno foi tombado como patrimônio histórico de Belo Horizonte.
Outro exemplo é a Paróquia Santo Antônio, em Venda Nova. A primeira construção da igreja data do início do século 19, em 1809, mas a estrutura foi derrubada e reerguida várias vezes. Inclusive, quando esteve sob o comando de padre Pedro Pinto, entre 1924 e 1953, a obra secular foi posta abaixo para que uma nova igreja fosse construída. Apesar disso, ela só durou até o início dos anos 2000. Desde então, o local se envolveu em vários imbróglios jurídicos até que, em 2015, quando padre Zezinho assumiu a direção, os procedimentos para reerguer a paróquia começaram a tomar forma concreta. No primeiro semestre do ano passado, as obras para reconstrução da igreja começaram novamente. Curioso pensar que, se a primeira estrutura estivesse de pé, ela seria mais antiga que a própria capital.
Muito do que é antigo, em Belo Horizonte, acaba sendo renegado ao papel de uma história escondida. Há pouquíssimos edifícios ou espaços históricos na capital que sobreviveram à sede de “progresso”. Os raros que não foram retirados da vida cotidiana se tornaram museus, estátuas urbanas escondidas em meio à profusão de edifícios. Não que isso seja, necessariamente, um problema, mas não se deve pensar que essa é a única forma de rememoração e respeito ao patrimônio.
Imagem clara de um passado relegado é o próprio Palácio da Liberdade, inaugurado em 1895. Sede do poder político do estado, o edifício foi palco de acordos, conchavos e decisões importantes na história de Minas Gerais. Todavia, durante a década de 1960, chegou-se à conclusão de que o espaço não era mais suficiente para abrigar o Executivo estadual e ordenou-se a construção de outra sede para o governo.
Em 1967, foi erguido o Palácio dos Despachos, na gestão do governador Israel Pinheiro. Não obstante, durante os anos 2000, concluiu-se, novamente, que o espaço delegado para a administração de Minas Gerais não era suficientemente moderno: decretou-se a construção da Cidade Administrativa, projetada pelo arquiteto Oscar Niemeyer e inaugurada em 2010, quando Aécio Neves estava à frente do estado.
PALÁCIO Um caso que ilustra a relação da cidade com seu passado e sua memória foi protagonizado pelo próprio Niemeyer, responsável por criar o conjunto arquitetônico da Pampulha. Em 1966, ele queria destruir o Palácio da Liberdade para que uma obra moderna – uma massiva torre de vidro com 80 metros de altura e 75 de profundidade – tomasse conta dos anais do Executivo estadual. Em um documento, levantado pelo Estado de Minas, o arquiteto afirmou que o palácio o surpreendia por “não ter sido até hoje substituído” e que o “prédio não constitui um verdadeiro palácio, mas uma casa sem maior importância”. O ímpeto moderno de Niemeyer acabou não saindo do papel e, alguns anos depois, em 1971, o Iepha foi criado para impedir que o Palácio da Liberdade fosse ao chão, tornando-se o primeiro prédio da capital a ser tombado como patrimônio na história de Minas Gerais.
Na mais recente mudança da sede do poder mineiro, porém, há diversas discussões sobre a real intenção “moderna” da Cidade Administrativa. Apesar de o discurso trazido pelos idealizadores ser, sim, o de modernização, há quem aponte a iniciativa com mera “politicagem” eleitoreira. Por outro lado, existem defensores da construção do local como uma experiência de concentração do Executivo em um ambiente propício para tal. Heloísa Starling diz que transformar monumentos da história política da capital apenas em museus é nocivo para a compreensão tanto do passado quanto do presente e do futuro. “Se eu transformo o Palácio da Liberdade apenas em um museu, eu apaguei a história da gestão da coisa pública. As construções fazem parte da história da cidade, elas têm significado político, republicano, público. Na Cidade Administrativa, vê-se claramente isso: é como se o lugar da gestão da coisa pública estivesse fora da cidade. É simbolicamente esquisito”, argumenta.
No ano passado, viu-se o Othon Palace Hotel encerrar as atividades em novembro. O empreendimento, que completou 40 anos em 2018, nasceu como um exercício de modernidade, instalando-se sobre o Bar do Ponto, que por muitos anos foi uma referência histórica da capital. Apesar de todo esse esforço moderno, porém, o edifício terminou seus dias com acusações de “decadência”. Muitas pessoas, inclusive, mostram-se surpresas com a idade do hotel – não parecia ser, apenas, quarentão.
O hotel foi palco de diversos acontecimentos políticos e culturais de grande importância para a história do Brasil. Funcionou como “quartel-general” eleitoral para Itamar Franco e abrigou alguns momentos de decisão política durante o período militar, principalmente nos governos dos ditadores Ernesto Geisel e João Figueiredo, quando ambos foram hóspedes. Pelo hotel passaram vários artistas de relevância nacional e internacional. Hoje, de acordo com a rede hoteleira, o futuro do edifício está incerto e ainda não se sabe o que vai ocorrer com a estrutura.
CARTÃO-POSTAL O arquiteto Carlos M. Teixeira, autor do livro Em obras: história do vazio em Belo Horizonte, define a capital como uma “cidade sem história”, que é jovem demais para ser saudosista, mas que insiste em se rememorar a partir de cartões-postais. “Belo Horizonte destrói como um rolo compressor tudo o que constrói, mas sustenta um lamento moralista quando o assunto são seus postais”, escreveu. O livro, explica o autor, foi escrito próximo ao centenário da cidade e nasceu de um incômodo que ele teve com o que chamou de “supervalorização do passado da cidade” que tomou conta das publicações na época. “Foi uma espécie de reação a esse apego desmedido ao patrimônio histórico”, aponta.
O autor defende que a lógica de desconstrução e construção constante de Belo Horizonte deve ser aceita como forma de “celebrar uma fragmentação ou qualquer tipo de descontinuidade dessa transformação que marcam as cidades como BH”. “Aceitar a cidade como ela é, sem referências idealizadas, e trabalhar com a cidade a partir da realidade encontrada”, propõe.
Para o arquiteto, a desconstrução da cidade não é, necessariamente, um ponto negativo do projeto urbano. “A demolição e reconstrução não significam tanto. Eu, como arquiteto, preciso encarar a realidade com uma expectativa e que qualquer tipo de construção pode vir a melhorar as coisas. Evidentemente, tem lugares que devem ser respeitados. No final das contas, o trabalho dos órgãos que protegem o patrimônio histórico deve continuar, mas, ao mesmo tempo, deve-se adotar o tombamento com um critério razoável”, afirma.
* Estagiário sob supervisão do subeditor Pablo Pires Fernandes