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FOLIA RENOVADA A CADA DÉCADA

Há exatos 120 anos, os primeiros carros alegóricos abriram caminho para blocos caricatos e escolas de samba em BH, que se tornou hoje um dos epicentros do carnaval do país, fruto da conquista política e cultural de movimentos diversos


postado em 01/03/2019 05:10

Flagrante da Batalha Real, na Rua Goiás, no Centro da capital, em 26/2/1960. A principal característica dessa época é o desfile em caminhão enfeitado, com a bateria tocando em cima. Naquela década, chegaram a desfilar 400 blocos na cidade(foto: Arquivo EM)
Flagrante da Batalha Real, na Rua Goiás, no Centro da capital, em 26/2/1960. A principal característica dessa época é o desfile em caminhão enfeitado, com a bateria tocando em cima. Naquela década, chegaram a desfilar 400 blocos na cidade (foto: Arquivo EM)



Em um ano cujo início é marcado por crimes ambientais, tragédias humanas, mudanças políticas e debates acerca de diretos individuais e coletivos, o Brasil dá uma pausa na batalha da realidade para viver quatro dias de muita excitação. A maior festa popular do país tem, no entanto, a cidade de Belo Horizonte como um de seus principais epicentros. Graças à proliferação de blocos de rua, que a cada ano garantem autenticidade e frescor à folia belo-horizontina, nosso carnaval ressurge revigorado. Oficialmente, serão mais de 600 desfiles distribuídos entre os 515 blocos cadastrados na Belotur, órgão da Prefeitura de Belo Horizonte responsável, ao lado de outros órgãos, por gerir e regular a manifestação cultural.

Números que surpreendem o cidadão menos avisado da capital mineira, habituada a ser um refúgio daqueles e daquelas que tentavam fugir dessa alienação coletiva e passageira, abrigando-se em cinemas, sítios ou no aconchego do lar. Essa, digamos, percepção comum, bem como a ideia de que o carnaval de rua de Belo Horizonte é um fenômeno atual, está longe de ser um fator relevante, diante da tradição e resistência da festa popular.

Como lembra o historiador paraense Marcos Valério Maia, curador da Mostra de Cinema, Samba e Carnaval, realizado anualmente em parceria com o Museu da Imagem e do Som e o Cine Santa Tereza, no começo da nova capital a festa era organizada pela alta sociedade, integrada por comerciantes, profissionais liberais, jornalistas, banqueiros e fazendeiros.

Já em 1899, pouco menos de dois anos depois da fundação de Belo Horizonte, o Clube Diabo de Lunetas desfilava com 14 carros alegóricos nas imediações das ruas Guajajaras e Bahia e da Avenida Afonso Penna. Cinco anos depois surge o Clube Matakins, que tinha entre um dos sócios o historiador Abílio Barreto. Em que pese o preconceito racial e a discriminação de classe, vigentes até hoje, o caráter popular e diverso do carnaval de Belo Horizonte foi tomando forma nos anos seguintes, com os desfiles de ranchos e cordões, até desaguar no surgimento das escolas de samba.

Influenciados pelos ventos que sopravam do litoral fluminense desde o fim dos anos de 1920, um grupo liderado por Mário Januária da Silva, o Popó, funda, em 1937, a Escola de Samba Pedreira Unida, localizada na Pedreira Prado Lopes, na Lagoinha, região Noroeste da cidade. Após a Segunda Guerra Mundial, surgem outras escolas de samba, como a União Serrana (embrião da Escola de Samba Cidade Jardim, a mais antiga em atividade na capital mineira), Unidos da Brasilina e a Inconfidência Mineira, do lendário Mestre Conga, eleito “Cidadão do Samba” em 1948, em concurso promovido pelos Diários Associados.

CAPITAL DOS BLOCOS NOS ANOS 1960

Outro aspecto importante do carnaval de Belo Horizonte é a tradição dos blocos caricatos, surgidos na primeira metade do século 20, com os chamados “Bocas Brancas”. A principal característica desses blocos é o desfile em caminhão enfeitado, com a bateria tocando em cima e os foliões fantasiados. Na década de 1960, chegaram a desfilar pela avenida cerca de 400 blocos caricatos. Em 1971, a cidade recebia o título de “Capital dos blocos”. Neste ano, segundo a PBH, serão oito escolas de samba e 11 blocos caricatos presentes na Afonso Pena.

“O fortalecimento e a refundação do carnaval de blocos de rua em Belo Horizonte se dá, majoritariamente, em setores da classe média. No entanto, o carnaval enquanto calendário e disputa de território urbano e simbólico manteve-se, em alguma medida, por causa daqueles outros que persistiram na sua festa orbitada em torno das escolas de samba e blocos caricatos. Esses sempre ‘desceram’ para a avenida – a não ser nos períodos de participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial e em alguns anos da década de 1990. Entretanto, essas agremiações não são percebidas pela cidade visível, ou quando o são, revela-se uma impressão depreciativa”, diz Maia.

Essas “reconfigurações e permanências do carnaval de Belo Horizonte”, conforme ressalta o historiador, deságuam agora neste novo momento da folia momesca. Na avaliação do pesquisador do carnaval, “a busca desse espírito de liberdade é o que garante a revitalização dos carnavais”.

No Rio de Janeiro, a ocupação da rua pelos blocos, principalmente na Zona Sul, foi retomada com a redemocratização do país, a partir do movimento das Diretas Já entre 1983-1984. “Esses dois blocos mostram um carnaval crítico, alegre e comunitário”, afirmou o jornalista Tim Lopes em reportagem de 1988, ao se referir aos cortejos do Simpatia é quase amor e o Suvaco de Cristo, dois dos principais blocos de rua cariocas.

“Diferentemente dos blocos do subúrbio, criados a partir de núcleos familiares e de moradores da mesma região, os da Zona Sul surgiram de movimentos políticos, da turma da praia e do botequim”, analisa o jornalista e crítico musical João Pimentel em seu livro Blocos: uma história informal do carnaval de rua, que compõe a série Arenas do Rio, lançada em 1996. Um dos participantes desse reflorescimento dos blocos de rua carioca foi o sambista mineiro Mário Emílio Moura, neto do poeta modernista Emílio Moura, parceiro de João Pimentel em sambas vitoriosos de outro bloco importante do Rio, o Barbas, em referência ao bar do diretor de teatro Nelson Rodrigues Filho.

A semelhança com os novos ventos que sopram sobre a Praça da Estação, um dos principais palcos dos festejos carnavalescos da capital, não é mera coincidência. Assim, como lá, o carnaval não surgiu hoje e não está circunscrito à Avenida do Contorno. O Movimento da Praia da Estação, considerado um dos marcos desse “novo carnaval”, não pode ser avaliado de maneira isolada, mas como parte desse processo de construção da folia. Uma contribuição relevante é o debate sobre o uso democrático dos espaços públicos e a sua reapropriação pela sociedade.

DEMANDAS HISTÓRICAS

Mas esse movimento político e cultural vem ganhando, ao longo dos últimos anos, contornos que vão além da mera ocupação e uso do espaço público. Demandas históricas da população negra, LGBTs e dos movimentos feministas, assim como noções básicas de cidadania, como não jogar o lixo na rua, ou não urinar nas calçadas, pautam o discurso da festa. Um avanço para quem estava acostumado a receber, apenas, campanhas para a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, com distribuição e incentivo ao uso de camisinha, reforçando apenas o caráter profano das manifestações. “Não é não”, “Respeite as minas” e “Quem ama não mata” são exemplos dessa nova configuração do carnaval de BH.

No último dia de carnaval de BH 2019, na terça-feira, a escola de samba estreante Raio de Sol levará para a Avenida Afonso Pena um tema em homenagem à ativista política e comunista declarada Diva Moreira, a primeira e única secretária municipal de Assuntos para a Comunidade (Smacon), criada pelo então prefeito Célio de Castro. O protagonismo feminino nunca esteve tão em alta na folia.

Em recente artigo escrito para o portal Beltrano, o ex-ministro e hoje secretário municipal de Cultura da cidade, Juca Ferreira, escreve: “O atual carnaval de Belo Horizonte é uma conquista política e cultural dos movimentos que aconteceram na cidade na última década. Esses jovens tiveram que enfrentar o autoritarismo do governo municipal de então e aos poucos foram se constituindo como um movimento. Ao se manifestarem, refletirem e acordarem para urgência de suas demandas, foram experimentando a agridoce alegria dos que lutam coletivamente”. Conforme adverte o próprio ex-ministro, “o que deve ser evitado é a apropriação da festa por alguns, como acabou acontecendo em outros carnavais de outros lugares, ou reduzir a festa à sua dimensão econômica, como se toda essa loucura carnavalesca fosse somente um grande mercado”.

Acrescento ainda a necessidade urgente de quebrar esse círculo vicioso da invisibilidade do povo negro, atores fundamentais do carnaval, mas que permanecem historicamente alijados do processo, basta conferir as peças publicitárias e os recursos distribuídos entre os participantes dos eventos. O samba tradicional e os seus principais sambistas continuam à margem da folia, impregnada de ritmos baianos. Temos, por outro lado, avanços, como a organização de blocos afros. Só neste ano serão 10 a desfilar, superando o número de escolas de samba na avenida.

É preciso ainda resistir ao apelo fácil dos patrocínios milionários que se avolumam a cada edição da folia, ditando regras e passando a impressão de que a grana rola solta Serra do Curral abaixo. Será que a juventude que hoje comanda a festa terá fôlego suficiente para resistir à pressão econômica e ao esgotamento de modelos tradicionais de organização dos eventos?

Quem foliar, verá!




Jornalista e criador do projeto Almanaque do Samba –  A Casa do Samba de Minas Gerais


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