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OS ENGENHOS DE PEREC

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Jacques Fux não conhecia a obra de Georges Perec (1936-1982) até que caiu em suas mãos o livro mais conhecido do francês, A vida modo de usar. “Este livro me deixou perplexo. O que era aquilo? Quais os enigmas e mistérios que se esconderiam por trás daquela trama?”, revela, lembrando que teve sensação parecida ao se deparar com a obra do argentino Jorge Luis Borges. “Compreendi que a literatura poderia – e deveria – englobar todos os saberes: matemática, psicanálise, jogos, história, testemunho, trauma, infância, guerra. E que Perec fazia isso com maestria”, detalha Fux. Vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura de 2013 com Antiterapias e autor também de Brochadas: confissões sexuais de um jovem escritor, Meshugá: um romance sobre a loucura e Nobel, Fux enxerga semelhanças entre o projeto literário de Perec e a própria trajetória.

“Tomei consciência de que, para me tornar escritor, deveria decifrar seus truques e os artifícios de seus precursores. E é isso que tenho feito em meus livros de ficção, que são as minhas reescritas e recriações permanentes do jogo canônico-literário-biográfico”, acredita. Amanhã, Fux lança livro ensaístico sobre o francês.

Com edição esmerada da Relicário, Georges Perec: a psicanálise nos jogos e traumas de uma criança em guerra será autografado no Centro Comunitário da Associação Israelita Brasileira (CCAIB). Confira, a seguir, entrevista com o autor mineiro.

De que forma Georges Perec estabeleceu uma conexão entre matemática e literatura?

O jogo indecifrável da vida pregou peças em Perec. Sua mãe morreu em Auschwitz e seu pai no front de guerra. Ele viveu só, angustiado e saudoso, buscando por alguma memória do convívio que teve com a família. A contingência imposta pela História diante do fracasso humano em conviver com o outro – o diferente, o estranho, o judeu – fez o autor pensar em um controle matemático da ficção. Se este mundo profano extinguiu o pai e a mãe de milhões de crianças – tantas vezes arrancadas de seus braços e queimadas em fornos concebidos pela racionalidade humana –, então o órfão-escritor conceberia um mundo que não repetisse essa barbárie. O jovem traumatizado passou a tentar controlar o incontrolável impondo regras em sua escrita.
Perec criou um mundo particular e obsessivo para se esgueirar do trauma, porém, se deparou incessantemente com ele.

Como os traumas de infância influenciaram a obra do autor francês?


A perda e a incompreensão fizeram com que Perec criasse um mundo particular. Em seu livro La disparition, o autor-artífice escreve sem a letra mais frequente da língua francesa – são trezentas e tantas páginas sem a presença da letra ‘e’. Um projeto impossível? Louco? Talvez. Mas a pergunta que se coloca é a seguinte: qual o trauma a criança-criadora precisa enfrentar para poder caminhar?. Ele dizia que, ao se ver privado pelos nazistas do convívio com as pessoas mais importantes do mundo (père (pai) e mère (mãe)), teria que ser capaz de escrever um livro sem a letra mais importante do alfabeto. Pais e letras sempre presentes, embora faltantes. O trauma da guerra vívido e intenso nas palavras – e nos silêncios – da própria escritura.

O que você considera mais admirável nos jogos com a linguagem criados por Perec?


Em meu primeiro livro sobre o autor, Literatura e matemática: Jorge Luis Borges, Georges Perec e o OULIPO, explorei os argumentos e as ferramentas matemáticas que Perec utilizou ao longo da sua obra. No entanto, à época me fugiu a capacidade de enxergar que esse artifício obsessivo em Perec escondia um trauma maior.
A matemática funcionou como uma fuga, uma tentativa insistente de elaboração, perlaboração e sublimação. Apesar do rigor e da frieza matemática, a literatura de Perec é delicada e sensível. Há um belíssimo projeto memorialístico e a invenção de um hipertexto em que o autor agrega o seu cânone literário. Acredito que esses sejam os maiores engenhos do escritor.

De que forma a literatura pode servir como sinal de alerta para evitar a repetição de atos de barbárie?


Textos escritos frente a atos de barbárie nos obrigam a refletir de forma pessoal e histórica. É fundamental testemunhar, cravar na pele e tatuar com sangue e letras os crimes, as perseguições e os genocídios para que algo semelhante não se repita no futuro – apesar do retorno ao discurso fascista e da reescrita do passado. É imprescindível enfrentar a memória, elucidar o trauma, expor as feridas doentes e dormentes e, só então, tentar compreender e educar para um novo caminho e uma nova possibilidade.

O projeto literário de Perec é relevante no século 21 ou reflete exclusivamente os temas, questões e impasses do século 20?


Perec é contemporâneo. Sua inventividade literária – o hipertexto canônico, o lado lúdico-sério dos jogos, o mistério e o abismo da posição do narrador – tem sido celebrada e descoberta. O seu projeto memorialístico e a sua tentativa de compreensão do passado histórico e pessoal estão em foco. Lugar de fala, do tempo, das falácias e do apagamento dos fatos históricos são temas que Perec tratou em seus livros e que nos saltam aos olhos neste momento.

Que livro você recomendaria como porta de entrada para a obra do francês?

W ou A memória da infância é o livro em que Perec discute, por meio de uma autobiografia ficcional, delicada e sensível, a relação de sua vida, como um filho do nazismo, e um mundo “imaginado” que permitiu democraticamente a ascensão de um governo genocida culminando com o Holocausto. Vale começar por ele.

Georges Perec merecia ter recebido o Nobel de Literatura? Consegue imaginar como seria o discurso de aceitação do prêmio?

Em meu último romance, Nobel (José Olympio, 2018), recebo “humildemente” a láurea maior e faço um discurso bem satírico expondo o lado perverso dos escritores e da literatura.
Com certeza, ao pronunciar esse discurso, Perec estava ao meu lado brincando com citações e jogos de outros autores e livros, enganando e trapaceando o leitor e até o próprio narrador, enfrentando a dor e a angústia da memória, da história, da infância e da contingência da vida. A vida de Perec foi curta, mas o projeto literário foi bem inventivo. Ele mereceria um Nobel na ficção e seu discurso teria sido um belo quebra-cabeças – assim como o meu.

GEORGES PEREC: A PSICANÁLISE NOS JOGOS E TRAUMAS DE UMA CRIANÇA EM GUERRA

. De Jacques Fux
. Relicário
. 140 páginas
. R$ 38

Lançamento: amanhã, das 18h às 19h30, no Centro Comunitário da Associação Israelita Brasileira, Rua Rio Grande do Norte, 477, em Belo Horizonte, em bate-papo com Carlos Reis, que lança o livro Luz sobre o caos: Educação e Memória do Holocausto.

TRECHO


“As obras elaboradas em contextos de guerra ou durante crises sociais têm uma incumbência extra de refletir, pontuar e apontar caminhos para angústias, dúvidas e anseios que tomam conta dos indivíduos em tempos difíceis. Mais do que isso, a literatura e as outras manifestações artísticas devem servir como um sinal de alerta para que atos de barbárie não se repitam no futuro. Tendo em mente esse panorama, a empreitada dos autores compreende, além de seus interesses pessoais, a luta contra o esquecimento. A literatura deve auxiliar-nos a lembrar do que as gerações passadas foram capazes para, dessa maneira, podermos efetivamente evitar que catástrofes como a repressão, a intolerância e a perseguição política possam ainda eclodir.
Neste sentido, a escrita pode ser considerada uma forma de resistência que engloba uma dimensão ética, enquanto manifestação de indignação, mesmo que esta ocorra de forma sutil, nas camadas subterrâneas do texto”.

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