A vida das mulheres no Brasil Colônia era bastante complicada. Maria Valéria Rezende, pesquisadora incansável, sempre soube disso, mas ficou especialmente surpresa com um relato que ia muito direto ao ponto. Durante uma especialização em história da América Latina no México, nos anos 1980, ela escolheu como tema as mulheres no período colonial. Preparou um projeto quilométrico, entregou o trabalho planejado, recusou uma oferta de doutorado para seguir no tema e voltou para casa. Mais de três décadas depois, retomou a história e escreveu Carta à rainha louca, que chega às livrarias neste mês.
Em 1982, durante viagem a trabalho pela Europa, passou por Lisboa e decidiu futucar os arquivos ultramarinos. Ela se deparou então com uma história irresistível: a de uma senhora que mantinha, na região das minas no Brasil, uma casa para acolher mulheres desgarradas do sistema colonial. Eram o que Maria Valéria chama de “sobrantes”: não serviam para casamento porque não tinham dote, nem para escravas porque eram brancas. Eram uma espécie de descarte do sistema, que não sabia o que fazer com elas. “Não tinha lugar para elas”, conta a autora.
Na carta, endereçada à Coroa e escrita para se defender, a senhora avisava logo estar ciente de que suas tolices não seriam lidas com seriedade porque era mulher, mas como a defesa era obrigatória, ela cumpriria o dever. Ela era acusada de fundar uma ordem religiosa em região de exploração de ouro, uma proibição estratégica da Coroa. “Era proibido provavelmente porque temiam que as mulheres tivessem mais astúcia para negociar o ouro”, especula Maria Valéria. “Aí me veio a ideia de escrever um romance, inventar a história de uma mulher branca que não servia para escrava, para parir, nem para se casar porque não tinha dote, não tinha lugar pra ela.”
Entre a ideia de escrever o romance e saber com que voz tocaria a empreitada, foram mais de 20 anos. “Quando comecei a publicar literatura, depois de 2001, fazia 20 anos que estava com ela na cabeça. Ficou um sentimento de que estava em falta com ela e que alguém precisava dar voz a essa mulher”, conta. Maria Valéria não sabia que forma dar à história até que um dia veio a ideia da carta escrita por uma mulher já idosa, presa num recolhimento, uma espécie de convento, porque não havia prisão para mulheres. “Comecei a inventar, com o conhecimento histórico que tinha. Tudo que está escrito ali é plausível. Como resolvi fazer uma carta, tive que trabalhar muito para fazer um texto plausível no século 18, mas, ao mesmo tempo, legível no século 21. Foi uma trabalheira danada”, conta a autora.
A história é trágica, mas carregada de humor. A narradora escreve à rainha dona Maria, em Portugal, com a intenção de informá-la sobre os infortúnios das mulheres na colônia. Ela mesma é filha de um capataz de engenho, português que cruzou o Atlântico em busca de sucesso, mas não encontrou terreno para isso. É uma das sobrantes, sem dote nem futuro como parideira, e acaba em uma casa de recolhimento, misto de prisão com convento, após o sumiço do pai em decorrência do assassinato de um capitão do mato que tentou dela abusar.
Assim como é atribuída a dona Maria a condição de demente, a narradora sabe bem como será acusada de louca por pegar pena e papel para se queixar. Com isso em mente, destila sua raiva, propositadamente riscada durante vários trechos do livro. As rasuras vêm acompanhadas de um pedido de desculpas: papel é coisa rara em casa de mulheres, por isso ela não pode desperdiçá-lo. Nesses trechos estão as maiores verdades da carta, praticamente um protesto feminista à moda do século 18. “As rasuras são uma espécie de autocensura, porque ela está em contradição”, explica Maria Valéria. “Ela tem uma atitude feminista, faz uma crítica feminista contra o mundo colonial e percebe que diz coisas que nunca ouvira ninguém dizer e por isso, deve ser meio doida.”
A PERSONAGEM
“Entre muitas coisas que encontrei estava um processo incompleto nos documentos não organizados e ele continha três cartas. Uma de um visitador, o padre que o bispo mandava para verificar uma denúncia de que havia uma mulher criando um convento clandestino na região das Minas. O visitador dizia de fato ter uma senhora, órfã, sem família, não casada, sem dotes e que vivia em uma pequena propriedade com outras mulheres nas mesmas condições. Outro visitador dizia que ela enganou o primeiro visitador e estava fazendo o convento. E tinha a carta dela, de próprio punho, em que, com muita ironia, ia se defendendo. Em vez de ser levada para falar na corte, ela escreve uma carta de autodefesa, cheia de ironia. Ela dizia que de nada servia escrever, mas que escrevia porque era a ordem. Era raro uma mulher escrever no século 18.”
O MACHISMO
“Aquilo me chamou a atenção: como as mulheres eram um penhor para fazer alianças, mas como os pais e os senhores de engenho, que não queriam que a terra fosse dividida por herança, colocavam-nas em conventos. A lei portuguesa mandava dividir por igual para todos e havia um conflito entre a Coroa e os senhores de engenho no Brasil. Eles mantinham uma filha em casa, para se casar com o filho do senhor do engenho, e as sobrantes, enfiavam nos conventos. A Coroa portuguesa não queria isso porque queria que se multiplicasse a população branca. Foi uma discussão permanente no período colonial. Os pais queriam que as filhas fizessem voto de pobreza, o que implicava renúncia da herança. As mulheres não tinham possibilidade de escolha”.
A ATUALIDADE
“O livro ajuda a analisar melhor por que a gente ainda não conseguiu superar realmente, de maneira séria, o machismo. Não é uma questão só individual, de cada um, mas de uma estrutura socioeconômica. A liberdade das mulheres mexe com a estrutura econômica do país. Não é simples, não é de hoje. Não é uma birutice da cabeça de fulano, é muito mais complexo que isso. E é importante compreender de onde veio porque fica mais fácil encontrar saída”.
FEMINISMO HOJE
“As mulheres são oprimidas, limitadas pela situação econômica que se reflete na atitude individual dos homens. Por outro lado, há uma multiplicação de ações de resistência. Uma das coisas que me preocupam é que quanto mais se tem ações de resistência, mais se multiplicam os agrupamentos e isso pode resultar em fragmentação do movimento. Qualquer tipo de movimento identitário tem esse risco. Porque o fato de as mulheres serem oprimidas não quer dizer que são todas santas. Não estou falando de nenhum caso concreto, mas essa multiplicação de organizações me preocupa. Ainda não está claro se é um processo de unificação das lutas ou de fragmentação. E é importante que seja de unificação. Ou de harmonização.”
A LITERATURA
“A literatura tem sempre um papel. A gente nasce equipado para viver mil vidas diferentes e, à medida que vai vivendo, vai fazendo escolhas nas encruzilhadas. E a gente fica com saudade do que não viveu. Ninguém pode viver sozinho. A literatura foi o maior invento da humanidade para experimentar a vida do outro. A boa literatura é essa que me permite entender como outra pessoa, em outras condições, se sente e vive. É para a gente não achar que cada um de nós é a originalidade absoluta e o centro do mundo. Para mim, todas as artes narrativas podem fazer isso. Ou não, porque tem uma literatura muito em voga no Brasil hoje que é a literatura de quitinete. A pessoa se tranca na quitinete e escreve a respeito das próprias angústias. Tem bastante. Tenho lido coisas assim.”
A CRISE
“Acho que não é uma crise só brasileira. Existem os movimentos históricos em contradição. Depois da guerra, houve explosão demográfica, concentração cada vez maior da riqueza e uma tecnologia que dispensa a mão de obra. E o capitalismo dominando tudo. O que eles precisam como mão de obra diminui numericamente. O que vai fazer com quem sobrar? Você vê que a solução para isso ou é uma desorganização profunda socioeconômica do mundo, ou a extinção de parte da humanidade para deixar os outros em paz. Mas acredito que a gente vai dar a volta por cima. Já vi o mundo se acabar várias vezes, nasci antes da penicilina e antes da bomba de Hiroshima, não tem porque não ser otimista. Mas essa é a primeira grande confusão que os jovens estão enfrentando. Espero que eles ouçam os mais velhos.”
CARTA À RAINHA LOUCA
• De Maria Valéria Rezende
• 144 páginas
• Alfaguara
• R$ 49,90/R$ 27,93 (e-book)