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O HOMEM DO BAIXO CLERO

Lucky Jim, o romance de estreia do escritor londrino Kingsley Amis, chega finalmente ao Brasil com seu humor escrachado, mais de seis décadas depois do lançamento na Inglaterra, mas bastante oportuno para o crescente neoconservadorismo que assola o país


postado em 21/06/2019 04:09

Kingsley Amis (1922-1995) é um dos principais autores britânicos do pós-guerra, geração que mantinha ácidos comentários sobre os costumes ingleses(foto: APF)
Kingsley Amis (1922-1995) é um dos principais autores britânicos do pós-guerra, geração que mantinha ácidos comentários sobre os costumes ingleses (foto: APF)

 

 

James “Jim” Dixon é um sujeito que mede sua vida por cigarros. Até o almoço pode fumar dois. Antes do chá das cinco já mandou mais três para o pulmão. E, depois da gosmenta sopa de músculo da pensão onde vive, tem direito a um último morrete. São os melhores momentos de seu dia como professor de história numa pequena e provinciana universidade inglesa. Jim é um angry young man, “um jovem homem raivoso”. Na realidade, assim seria definida a geração do inglês Kingsley Amis (1922-1995), um dos principais escritores britânicos do pós-guerra, como o poeta Philip Larkin e o dramaturgo Harold Pinter. Eles são ácidos no comentário dos costumes de uma Inglaterra conformada, obesa e saudosista. E Lucky Jim (editora Todavia), romance de estreia de Amis, de 1954, é uma obra-prima do gênero, especialmente quando falamos da sátira ao meio acadêmico.


Em um mundo de mesquinhez e aparências, Jim é o cidadão mediano, sempre sem dinheiro, aparência apenas aceitável e roupas surradas. Porém, dotado de inteligência que falta a seus pares, dá vida a um personagem raro: o homem sensível. Ele está obrigado às mais humilhantes sujeições. O chefe de seu departamento, Welch, é pedante, senil e explorador, além de ter uma esposa elitista e conservadora. Margareth, a colega candidata a namorada: histérica, frígida e manipuladora. Outro professor, Caton, que tem de aprovar um artigo substancial para sua sobrevivência acadêmica, o enrola e acaba plagiando seu texto sobre a Inglaterra medieval. Ele detesta o tema, mas o escolhe apenas porque nenhum outro colega quer, o que o livra de qualquer competição.


Cercado de tédio e almas pequenas, Jim se revolta, e tal qual o troiano Heitor, da Ilíada, parte para o ataque, ainda que a vitória seja improvável, numa epopeia suicida. Em vez da espada, sua arma é o álcool em doses oceânicas, com o qual pretende derrubar muros de hipocrisia da vida acadêmica e suas pequenezas às quais todos estão (estamos?) submetidos. Sua jornada é instintiva e seu horizonte é uma bela mulher, Christine Callaghan, a “princesa”, cooptada por um impostor, o pintor Bertrand, filho do seu chefe, o típico artista medíocre, que posa superior para esconder o fracasso de público de seu trabalho.


Quem não sabe bem o que significa o termo “humor inglês” tem aqui um manual completo. Certo de uma iminente derrota, Jim se mune de sarcasmo e desprezo para enfrentar os colegas afetados com galhardia de bufão, o que lhe dá alguma chance. A ótima tradução de Jorio Dauster ajuda, mas, claro, não dá conta das especificidades do texto original, até porque uma das principais armas de Amis são os sotaques e modos de falar que emulam todas as regiões e classes sociais da estratificada sociedade inglesa.


Em determinado momento, nosso herói Jim precisa apresentar uma palestra sobre a “Inglaterra feliz”, tema sugerido pelo nostálgico chefe Welch. Pista para entender a obra, essa Inglaterra utópica remete aos tempos pré-industriais, bucolismo campestre, saraus com flauta doce, a cerveja ale com gosto de casa. Enfim, à natureza intocada do mundo dos personagens de Robin Hood. Aparentemente inofensivo, esse tipo de saudosismo na Grã-Bretanha pós-guerra levaria ao acirramento conservador, que descambaria mais tarde, na Europa, para o puritanismo, o racismo e o nazismo.


Não à toa, em época de neoconservadorismo, não é apenas a graça escrachada que torna o lançamento de Lucky Jim, pela primeira vez no Brasil, bastante relevante e atual. O londrino Kingsley venceu em 1986 o Booker Prize por Old devils. Ele também é conhecido por ser pai de outro escritor laureado, Martin Amis. A edição conta ainda com um inspirado posfácio do crítico e polemista britânico Christopher Hitchens, que classifica Lucky Jim como o “mais engraçado livro inglês do século 20”.

* Jornalista e escritor

 

 

TRECHO
DO LIVRO

“A ideia de que mulheres como Christine não eram nunca vistas senão como propriedade de Bertrand lhe era tão usual que há muito deixara de ser encarada como injustiça. Para Jim, a classe que englobava Margareth estava destinada a lhe proporcionar uma companheira. Uma daquelas em que uma saia justa demais, um batom de cor errada ou nenhum batom, até mesmo um sorriso mal executado, podiam de imediato desfazer qualquer ilusão de modo irreparável. Mas a esperança renascia. Um suéter novo servia para reduzir o tamanho dos pés, algumas canecas de cerveja emprestavam encanto aos comentários sobre teatro londrino ou culinária francesa”


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