“O meu avô sempre dizia que o melhor da vida haveria de ser ainda o mistério e que o importante era seguir procurando. Estar vivo é procurar, explicava. Quase usava lupas e binóculos, mapas e ferramentas de escavação, igual a um detective cheio de trabalho e talentos. Tinha o ar de um caçador de tesouros e, de todo o modo, os seus olhos reluziam de uma riqueza profunda. Percebíamos isso no seu abraço. Eu dizia: dentro do abraço do avô. Porque ele se tornava uma casa inteira e acolhia. Abraçar assim, talvez porque sou magro e ainda pequeno, é para mim um mistério tremendo. Eu sei que ele queria chamar a atenção para a importância de aprender. Explicava que aprender é mudar de conduta, fazer melhor. Quem sabe melhor e continua a cometer o mesmo erro não aprendeu anda, apenas acedeu à informação. Ele pensava que dispomos de informação suficiente para termos uma conduta mais cuidada. Era um detective de interiores, queria dizer, inspecionava sobretudo sentimentos. Quando perguntei porquê, ele respondeu que só assim se fala verdadeiramente acerca da felicidade. Para estudar o coração das pessoas é preciso um cuidado cirúrgico. Estava constantemente a pedir-me que prestasse atenção. Se prestares atenção vês corações e podes tirar medidas à felicidade. Como se houvesse uma fita métrica para isso.”
Assim o escritor angolano Valter Hugo Mãe, radicado em Portugal desde a infância, abre sua pequena obra-prima As mais belas coisas do mundo. Pequena apenas porque tem somente 47 páginas entre muitas outras ilustradas e obra-prima pela aparente contradição de simplicidade e profundidade nas tocantes conversas de um menino com seu avô e suas lembranças sobre o encantamento do conhecimento e do aprendizado para a vida. É um conto em 19 páginas ou 19 minicontos que formam um “abraço” de sábias memórias do avô, que “precisou” morrer porque “envelhecera muito, cansara-se, morrer era só como deixar-se sossegar”. “Eu senti que o seu sossego era do tamanho da nossa solidão”, diz o menino, que precisava de algo essencial também, precisava crescer com sabedoria.
Assim como o moçambicano Mia Couto, Valter Hugo Mãe é da estirpe de escritores que conseguem verter prosa, por mais densa que seja, em poesia. E, mais ainda, em lirismo profundo. Tiram beleza da dor e do sofrimento, tão inerentes à África e, por mais terríveis que sejam, fazem uma catarse para o crescimento pessoal, inclusive diante da morte. Guimarães Rosa dizia que as pessoas não morrem, ficam encantadas. Hugo Mãe complementa e antecipa para a vida real essa pérola filosófica roseana, agora dentro do abraço de ensinamentos do avô do menino Valter Hugo. “O meu avô pedia que não me desiludisse. Quem se desilude morre por dentro. Dizia: é urgente viver encantado. O encanto é a única cura possível para a inevitável tristeza. Havia, às vezes, um momento em que discutíamos a tristeza. Era fundamental sabermos que aconteceria e que implicaria uma força maior”, diz o garoto em suas reminiscências.
A edição disponível no mercado de As mais belas coisas do mundo, da Biblioteca Azul, já é um convite à leitura – originalmente, essa narrativa foi incluída, em 2010, na edição de Contos de cães e maus lobos, com outras 10 histórias. Com capa dura em amarelo-ouro e bordas prateadas, no formato pouco maior do que o pocket, o livro tem ilustrações do artista brasileiro Nino Cais, parceiro de outras obras do escritor.
O espírito poético dá o tom da obra, como Hugo Mãe fez em outras, a destacar A máquina de fazer espanhóis, sobre o drama da velhice, baseada no extenso e belo poema Tabacaria, de Fernando Pessoa, que começa assim: “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”. De novo, simplicidade e profundidade.
"Ele [avô] perguntava, e eu, com cinco ou seis anos de idade, preocupado, queria encontrar respostas para que ele estivesse feliz. No seu quarto sempre limpo e enfeitado, conversávamos sozinhos para chegar a conclusões valiosas"
Valter Hugo Mãe
SAUDADE DESSE AVÔ QUE NÃO TIVE
Ao terminar de ler o conto de Hugo Mãe, o leitor tende a ter a sensação de aperto no peito, de doce saudade, principalmente se tiver convivido com um avô afetivo. Afinal, Hugo Mãe conta uma história familiar para crianças e adultos sobre “esse avô sábio que dá saudade até em quem não foi seu neto”, como diz a escritora Ana Maria Machado na contracapa do livro. E como afirma também o escritor e novelista Walcyr Carrasco: “Um avô transforma a vida, mostra o encanto do conhecimento, ensina que podemos chegar a ser gigantes, mas o saber não dispensa a ternura”.
Valter Hugo Mãe identifica sua fonte de inspiração: “O meu avô materno, António Alves, mandava que lhe explicasse as coisas mais complexas da vida. Adoentado, vi-o quase sempre acamado, com seu sorriso bom, a cuidar de manter-se quente e sossegado. Para não o desiludir, eu imaginava o que podiam ser os astros, da formação do gelo, do trágico e aparentemente incurável de algumas tristezas, da fortuna de amar. Ele perguntava, e eu, com cinco ou seis anos de idade, preocupado, queria encontrar respostas para que ele estivesse feliz. No seu quarto sempre limpo e enfeitado, conversávamos sozinhos para chegar a conclusões valiosas”. Assim, o menino descobriu que o melhor lugar do mundo é dentro de um abraço. O abraço eterno de ensinamentos de um avô muito querido que já não vive mais neste mundo.
- AS MAIS BELAS COISAS DO MUNDO
- De Valter Hugo Mãe
- Biblioteca Azul
- 47 páginas
- R$ 42
- R$ 29,40 (e-book)