Em depoimento memorável concedido a poucos amigos, em 2006, e que só veio a público 10 anos depois, na edição especial do título Livraria Amadeu (Ed. Conceito, 2016), o livreiro Amadeu Rossi Cocco, ao relembrar o seu longevo percurso no mundo dos livros, iniciado em 1932, acaba por compor uma geografia de afetos que inclui a memória de livrarias já extintas, as histórias de leitores famosos e anônimos, os casos engraçados e comoventes que presenciou. De certa forma, o que se estrutura ali é uma certa genealogia das livrarias locais, com sua vocação para servir a uma cidade em permanente transformação. “Procurei sempre ser útil à coletividade”, resume o livreiro, falecido em 2009. Livrarias são isso mesmo – espaços para a circulação de ideias que ajudam a construir uma esfera pública mais rica, mais dinâmica, depositária de valores e princípios mais sólidos. Por isso, é sempre hora de celebrar os livros e as livrarias de rua que trafegam nesse roteiro civilizatório.
O Festival Livro na Rua – Flir, em sua segunda edição (a primeira foi em 2017), será realizado em 23, 24 e 25 de agosto, na Rua Fernandes Tourinho, na Savassi, em Belo Horizonte. Realização da Câmara Mineira do Livro e da Quixote + Do Editoras Associadas, com o apoio da prefeitura e de muitos colaboradores, o festival vai oferecer debates, saraus, performances, shows, contação de histórias, estandes de editoras, oficinas e sessões de autógrafos, envolvendo dezenas de escritores e de representantes da área editorial.
Nesta edição, o Flir homenageia o escritor e professor Eduardo Frieiro (1889-1982), figura icônica da cena literária e intelectual de Belo Horizonte, um dos fundadores da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) da UFMG, criador e primeiro diretor da Biblioteca Pública de Minas Gerais, antiga Biblioteca Estadual Luiz de Bessa. É dele que tomamos emprestado o título de um de seus livros – Os livros nossos amigos – como mote e inspiração.
A RUA DAS
LIVRARIAS
O festival não poderia ser realizado em outro lugar. A Rua Fernandes Tourinho congrega, em apenas dois quarteirões, entre as avenidas Cristóvão Colombo e Getúlio Vargas, um patrimônio inestimável de bens e símbolos culturais. A começar pela existência ali de três livrarias – a Quixote, a Scriptum e a Ouvidor, a mais antiga delas, em atividade desde os anos 1970. Mas há muito mais. A rua abriga outras raridades, como a Acústica, uma das últimas lojas de CDs da cidade; a Art-Vídeo Savassi, locadora sobrevivente e de acervo magnífico; e a Patrícia de Deus, loja que leva o nome da proprietária e que é um verdadeiro santuário de artes gráficas, design e outras criações inspiradas em papel.
A concentração de livrarias torna a rua incomum. Livrarias não são territórios explicáveis apenas sob a ótica do comércio e do mercado, ainda que vivam da compra e venda de mercadorias. Este é um negócio que alimenta uma indústria expressiva, que mobiliza capital, tecnologia, logística, estratégias de produção, profissionais diversos. É tudo isso, mas não apenas isso.
Livrarias são entidades dotadas de certa ambiguidade – entre o acolhimento e a desconfiança. Você entra e se dá conta da multidão à sua espreita. São muitas vozes e dissonâncias: romances, ensaios, poemas, contos, textos para o teatro, estudos filosóficos, literatura de toda parte do mundo, de ontem e de hoje. Da Grécia aos sertões sagaranos, a viagem é longa, sem porto final. Livros que podem ser leves, robustos, virulentos, tocantes, densos ou melosos, ficcionais ou não, portadores de uma vastidão de ideias, narrativas, estilos e tantas outras maluquices que só as livrarias – e as bibliotecas públicas – são capazes de acolher e de dispor ao público.
Qualquer livraria, por isso mesmo, já merece vida longa. Aquelas com portas abertas para as calçadas e sujeitas ao vaivém das pessoas merecem ainda mais, justamente pelo seu caráter um pouco anárquico, insubmisso. Nas boas livrarias de ruas ganham relevância as pequenas editoras, as publicações independentes, escritores que fogem ao padrão best-seller. Livros e autores ignorados pelas megalivrarias podem ser vistos ao lado de totens como Drummond, Proust, Machado e Dostoiévski. Ombro a ombro.
Por isso é preciso salvar as livrarias de rua da sofreguidão do século. Muitas já fecharam as suas portas na cidade, a exemplo – só para ficar em anos recentes – da Van Damme, no Centro, e da Status e da Mineiriana, ambas na Savassi. São perdas irreparáveis no tecido que sustenta o projeto social, humanista e civilizatório da moderna capital mineira. Por isso, há que se resistir. Uma livraria de rua será sempre um ponto de encontro, de troca de afetos, de aposta no inesperado e na multiplicação de possibilidades de confraternização. Uma livraria aberta é como um gesto fraterno. De reconhecimento do outro. De valorização da memória e da palavra como testemunhos de vida. Para quem quer uma cidade melhor, um país melhor, uma livraria de rua é uma bela resposta à estupidez que anda dando as caras por aí.
PROGRAMAÇÃO
23 de agosto
» Abertura: 19h30
Espaço A ilusão literária – Os livros nossos amigos: uma homenagem a Eduardo Frieiro
24 de agosto
» Tablado: Espaço O brasileiro não é triste
» 10h às 19h – Vários temas para conversa com autores e especialistas
» Sagarana –Show de Celso Adolfo e Sarau dançado: Glaura Santos, Leo Gonçalves, Kaio Carmona, Adriane Garcia, JoMaKA, Luiz Walter Furtado, Júlia Elisa, Natália Menhem, Pieta Poeta, Alicia Maria, Lelena Lucas participantes da Corpo Escola de Dança e do GED – Corpo Cidadão.
» Espaços na Livraria da Rua
A partir das 11h – Bate-papo sobre a Savassi. No livro A Turma da Savassi... que virou nome de bairro, publicado em segunda edição pela editora Miguilim, Jorge Fernando dos Santos conta a história de duas gerações que marcaram época em BH, entre as décadas de 1940 e 1960.
25 de agosto
» Tablado: Espaço O brasileiro não é triste
» 10h às 16h – Literatura infantil em revista; Ponto de Leitura – Mulher em Poesia Bruta, Poesias dançantes, O contista mineiro é uma ficção? Fantasmas que tiram o sono do escritor e Correio aéreo noturno.
» Mesa 1: A leitura ajuda a viver
Espaço para lançamentos de escritores de outras editoras participantes do festival e autores independentes.
» Atividade na Avenida Getúlio Vargas
Tablado: Monumento a Gutenberg
0h às 13h – O que você faz com uma ideia: Grupo Alucinei com Crianças
» Músicas infantis com coreografias interativas e roda de história; Academia TransLiterária: um Atraque Literário e Projeto Verve! Homenagem a Walt Whitman - Fredy Antoniazzi e convidados
» A Academia Mineira de Letras em movimento/Galeria Recorte: criação de mural em homenagem a Eduardo Frieiro pela artista Kakaw, na R. Fernandes Tourinho, esquina com Getúlio Vargas.
» Intervenção Nuvens de Barro–Espetáculo da Cia. de Dança Palácio das Artes. O espetáculo se inspira no universo poético de Manoel de Barros.
» As livrarias envolvidas no evento farão atividades de lançamento e bate-papo com autores.