Política é a arte de conquistar e conservar o poder”, anuncia a epígrafe. A assertiva cunhada pelo mineiro Gustavo Capanema (1900-1985) tem a precisão de uma bem-elaborada síntese que traça o norte da trajetória deste homem, nascido em uma família de poucos recursos no esquecido arraial Onça do Rio São João Acima – atualmente emancipado, denomina-se Onça de Pitangui –, mas, na ocasião, distrito de Pitangui, no Centro-Oeste do estado. Lançou-se à vida pública aos 27 anos como vereador daquela cidade. Dali foi alçado, em poucos anos, ao cenário nacional, figurando primeiro como secretário do Interior de Olegário Maciel, interventor de Minas, de quem era primo. Depois, saltou ao primeiro escalão de Getúlio Vargas – após breve passagem como interventor interino de Minas – tornando-se o ministro da Educação (1934-1945) que comandou a pasta por mais tempo.
Em intensa atividade nos bastidores, Capanema participou à sombra de holofotes dos principais momentos de inflexão da história brasileira no século 20. Atravessou como ministro a Era Vargas, acompanhando a ascensão e o fim do Estado Novo. Tornou-se, como deputado federal pelo PSD, relator constituinte de 1946. Apesar de ter, em 1954, apoiado o contragolpe de Henrique Lott para garantir a posse de Juscelino Kubitschek (PSD) ameaçada por manobra udenista, Capanema deu sustentação ao golpe militar de 1964. Não sem antes ter, após a renúncia de Jânio Quadros, sido cogitado para ser o primeiro-ministro da curta experiência parlamentarista no governo de João Goulart.
Durante a ditadura militar, Capanema optou, de forma pragmática, por tornar-se gradativamente “inofensivo” , aderindo ao governo autoritário, ainda que este, após a edição do Ato Institucional 5 (AI-5), em 1968, tenha cassado o mandato de seu genro, o deputado federal udenista José Carlos Guerra, envolvido na formação da Frente Ampla de JK, Carlos Lacerda e João Goulart, que articulava a reabertura democrática. Naqueles tempos de chumbo, a posição de Capanema evitou, no máximo, que Guerra fosse torturado. O ocaso da carreira política de Capanema coincidiu com os estertores da ditadura militar: despediu-se de seu mandato no Senado em 14 de novembro de 1978.
SENSO DA
OPORTUNIDADE
Capanema exerceu a política por vocação. Trazia em si o profundo senso da oportunidade. Em se tratando de alcançar e manter-se na alta esfera do poder, o cavalo arriado – que pode ser atribuído à sorte – não passaria ao seu alcance sem que ao estribo se agarrasse. Assim frequentaria a alta esfera do poder nacional, influenciando decisões por 52 anos. Além de profundamente conservador – ao estilo da tradicional família mineira – mantinha grande tolerância à diversidade ideológica: por admiração, amizade, mas também porque lhe foi conveniente, manteve importantes vínculos com geniais intelectuais à gauche que marcaram época. Eram profissionais de vários campos do conhecimento, ajudando a promovê-los nas letras, teatro e sobretudo na arquitetura, inclusive destacando-se por impulsionar o traçado modernista na arquitetura brasileira.
É essa biografia que nos conta o jornalista Fábio Silvestre Cardoso. Capanema, a história do ministro da Educação que atraiu intelectuais, tentou controlar o poder e sobreviveu à Era Vargas acaba de ser lançado pela editora Record. Uma obra de minuciosa pesquisa, que ao destrinchar a vida e motivações de Capanema, também resgata um pouco da história de Belo Horizonte, de Minas Gerais e do Brasil no período histórico iniciado no desabrochar da capital mineira – naqueles primeiros anos que antecedem a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), quando Capanema deixou a família para estudar no Colégio Arnaldo.
Com a mesma forma do processo de redemocratização do Brasil, preconizado pelos ideólogos da ditadura como lento, gradual e seguro, foi o melancólico desfecho da trajetória de Capanema. Uma carreira que, nos termos do biógrafo, se desidratou aos poucos, praticamente se encerrando em 1979, quando, preterido pela Arena, perdeu para Murilo Badaró a cadeira de senador biônico por Minas. A Badaró, vencedor daquela disputa entre arenistas pela indicação do regime ao Senado, coube escrever, anos depois, a biografia do derrotado.
Capanema, que depois de se despedir da vida legislativa ainda amargaria o insucesso de não ser eleito para a Academia Brasileira de Letras, morreu em 10 de março de 1985, a poucos meses de completar 85 anos, em meio ao trabalho de parto da Nova República. Era casado com Maria de Alencastro Massot, com quem teve dois filhos. Tal qual se caracterizou a sua intensa atividade política, sempre nos bastidores e em geral ofuscada pelas personagens centrais das esferas de poder, também a repercussão de sua morte foi eclipsada pela expectativa em torno da posse de Tancredo Neves na Presidência da República, que se daria em 15 de março. Em uma das peças do destino, deu-se o imponderável: um diagnóstico malfeito seguido de uma sucessão de cirurgias arrastaram todas as atenções do Brasil ao trágico e conhecido desfecho em 21 de abril, com o anúncio da morte de Tancredo.
AMIZADE COM CARLOS
DRUMMOND DE ANDRADE
Quando estudante no Colégio Arnaldo, Gustavo Capanema conheceu Carlos Drummond de Andrade, amizade que acalentaria por toda a vida. Mais tarde, na Faculdade de Direito de Belo Horizonte, Capanema integraria a irmandade do chamado grupo de "intelectuais da Rua da Bahia" – jovens que amavam literatura e se reuniam quase diariamente no Bar Estrela –, entre os quais, além de Drummond, Pedro Nava, Gabriel Passos, Mario Casassanta, Abgard Renault e Milton Campos, que marcariam as artes e a política no Brasil. Foi um tempo em que a estética modernista conquistava novas adesões e estreitava os laços desse grupo de amigos, segundo Pedro Nava em sua obra Beira-mar, jovens, que, de bar em bar, “escreveriam poemas, se angustiariam, morreriam de amor e fariam da capital mineira um espaço de convívio”.
Embora conservador, como ministro, Capanema teve o amigo Carlos Drummond de Andrade como seu chefe de gabinete. Era a faceta progressista do governo Vargas. É assim que, segundo Silvestre Cardoso, a gestão de Capanema se associa à cooptação de intelectuais para o projeto político de Vargas: entre 1934 e 1945, além de Drummond e Abgard Renault, frequentadores do Estrela, também Cândido Portinari, Mário de Andrade, Oscar Niemeyer, Lucio Costa e Heitor Villa-Lobos, entre outros artistas, escritores e arquitetos, “aderiram ao projeto de cultura para o país, de longo prazo, levado adiante por um regime, em princípio, renovador, que dadas as circunstâncias históricas se tornou ditatorial e, em seguida, totalitário”.
MARCO DO
MODERNISMO
O apoio de Drummond a Capanema no Ministério da Educação e Saúde foi fundamental. A começar pela definição do projeto arquitetônico para a construção, ao final dos anos 1930, da sede do ministério no Rio de Janeiro, que constituiu marco decisivo na história do modernismo brasileiro e internacional: foi projetado por Lucio Costa, Carlos Leão, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Ernani Vasconcellos e Jorge Machado Moreira, com a consultoria do franco-suíço Le Corbusier. Tal edificação forjou a identidade e a associação entre o ministro e o modernismo, inclusive justificando o seu batismo: Palácio Gustavo Capanema . Muito além do emprego do vidro e do concreto, a arquitetura desse edifício foi fruto de um ideário de transformação do Brasil, com o apoio da elite de intelectuais.
Fábio Silvestre Cardoso lembra que, em uma passagem de sua obra, Pedro Nava atribui a Capanema, indiretamente, a arquitetura de Brasília, na medida em que fôra ele quem primeiro recomendou Oscar Niemeyer a Juscelino Kubitschek quando este, em 1940, nomeado por Benedito Valadares prefeito de Belo Horizonte, lançou-se à construção do conjunto da Pampulha. E o complexo arquitetônico da Pampulha é marco na vida profissional de Niemeyer. O autor mostra como o próprio Niemeyer, em seu livro As curvas do tempo: memórias, reconhece aquele como o começo de sua vida como arquiteto.
A obra de Silvestre Cardoso sugere uma relação de certa desconfiança entre Capanema e Vargas, mesmo com Capanema à frente do ministério. “Quando Capanema assumiu ainda que interinamente a interventoria de Minas, em substituição ao falecido Olegário Maciel, desejava que Vargas o nomeasse para o cargo. Mas Vargas também desconfia de Capanema e, de certa forma, tira o chão dele, nomeando para o cargo Benedito Valadares. Pouco depois, entretanto, Capanema ganha como consolação o Ministério da Educação e Saúde. E neste cargo Vargas testa a capacidade de resiliência de Capanema, flertando, por exemplo, com a mudança no ministério próximo ao golpe do Estado Novo. Portanto, eles têm proximidade, mas não necessariamente extrema amizade, confiança absoluta como era a relação entre Capanema e Drummond”, afirma Fábio Silvestre. Tal relação explica os pensamentos de Capanema sobre o líder gaúcho, considerando em suas anotações que os dois momentos de maior prestígio de Vargas teriam sido quando deposto em 1945 e quando se suicidou, em 1954. Maldade em estado puro, íntima da política.
Trecho do livro
“Existe todo um folclore em torno da escolha e nomeação de Benedito Valadares como interventor em Minas Gerais. Consta, por exemplo, que a expressão ‘mas será o Benedito?’ teria surgido nessa ocasião. Já em relação aos derrotados, Virgílio de Melo Franco ainda quis reagir, mas não teve sucesso. Gustavo Capanema, por seu turno, ficou magoado e abatido, como escreve Hélio Silva. Jamais estivera tão perto do poder. E naquele momento, para ele, era como se jogasse tudo ou nada. Na tentativa de emparedar Getúlio Vargas para que o líder tomasse uma decisão que lhe fosse favorável, tão somente acelerou o desfecho que não lhe beneficiava. A decepção, portanto, era tremenda.
Muitos anos depois, cacos desse episódio ainda estavam por aí. Em depoimento à prestigiada coluna do jornalista Carlos Castello Branco, Capanema disse que não ousou no momento decisivo, sugerindo que faltou vontade de poder para ocupar o cargo de interventor. Outro relato traz uma versão bastante curiosa da seção Contraponto do jornal Folha de S.Paulo: o jornalista Sebastião Nery contou que quando Benedito Valadares foi escolhido interventor de Minas em lugar de Gustavo Capanema, este último foi à estação receber Benedito. No carro, já a caminho do Palácio, irritado, mas contido, Capanema deu conselhos a Benedito.
– Benedito, você sabe que não é um homem de letras. Você precisa cercar-se de homens cultos, que elaboram coisas, que criam coisas.
Benedito nada disse. Nem tugiu nem mugiu. Depois, queixou-se a Juscelino Kubitschek:
– O Capanema é um excelente companheiro, mas tem a mania de pensar que só ele sabe das coisas. E fala muito antipaticamente. Imagina que ele me falou tanto em livros que cheguei em casa com vontade de rasgar os que tenho lá.
A não escolha para o cargo de interventor certamente foi frustrante para Gustavo Capanema. Nesse momento, no entanto, é possível que ele tenha se lembrado do vaticínio de João Penido, ainda quando a decisão não havia sido anunciada: 'Você fez uma carreira rápida e brilhante. Lembre-se de quem era há três anos. Hoje você é uma personalidade nacional. É a hora de parar e de refazer forças'.
Capanema não tinha como saber, mas sua trajetória estava apenas começando.”
CAPANEMA
• De Fábio Silvestre Cardoso
• Editora Record
• 420 páginas
• R$ 64,90
MODERNIZAÇÃO
DA EDUCAÇÃO
A estética modernista constitui apenas uma das facetas mais visíveis e exploradas da longa passagem de Gustavo Capanema pelo Ministério da Educação e Saúde na Era Vargas (1930-1945). O biógrafo Silvestre Cardoso explora a íntima associação de Capanema com os setores mais conservadores e militantes da Igreja Católica, à época representada por Alceu Amoroso Lima, padre Leonel Franca e, como figura central, o cardeal Leme, do Rio de Janeiro. A Igreja confere sustentação política à indicação de Capanema e ao governo; deste recebe as chamadas “emendas religiosas” na Constituinte de 1934, que incluíam a obrigatoriedade do ensino religioso nas escolas públicas.
Como assinala Simon Schwartzman, naquele tempo, o país se mobilizava face ao debate, oriundo da Europa, da educação pública em contraposição à educação privada. Em outras palavras, uma polarização que marcava a posição, de um lado, dos defensores do ensino leigo, universal e público e, do outro, a Igreja, que pregava o ensino privado e confessional. Assim como na Europa e em particular na França, esse debate tinha por fundamento a separação estrita entre a Igreja e o Estado, que de resto também prevaleceu no Brasil entre a Proclamação da República e o pacto da Igreja com o governo Vargas de 1934. Se por esse acordo a Igreja abandonou a oposição à interferência do Estado na educação, passou também a atuar de modo a garantir a incorporação na educação da forma e conteúdos que considerava “apropriados”.
Gustavo Capanema, de fato, foi importante para a educação brasileira. Nas palavras do autor: “Até sua gestão, o Brasil não contava com um projeto moderno para a formação de seus estudantes, sendo, essencialmente, bastante exclusiva para alguns poucos alcançarem a educação de elite. Sob Capanema, a transformação se deu, em um primeiro momento, em larga escala: como espécie de cimento do projeto de poder de Getúlio Vargas, o trabalho de Capanema se destaca essencialmente pela elaboração de uma estrutura educacional voltada para as massas e que atendesse às novas demandas de um país em transformação”, sustenta o biógrafo.
ENTREVISTA
Fábio Silvestre Cardoso
Como surgiu o seu interesse por Gustavo Capanema?
Gustavo Capanema é um político muito intenso. Sempre me fascinou o fato de ele ter feito à frente do Ministério da Educação algo ímpar na cultura do país e ter sido o ministro que mais ficou no poder, apesar da difícil conjuntura da época. Filosoficamente, não apoiava o nazifascismo. Mas houve momentos em que as escolhas dele sugeriram esse endosso. Atribuo mais às circunstâncias da política do que efetivamente estivesse Capanema abraçando a causa nazifascista. Não só foi o mais longevo ministro da Educação, como também conseguiu fazer com que os intelectuais se mantivessem ao lado dele. Portanto, Capanema não foi esse personagem tão flat (mediano, sem grande interesse). Ao contrário, foi personagem muito rico, porque teve várias vidas: foi burocrata, foi para o Ministério da Educação, elegeu-se deputado federal, ficou nas entranhas do poder por cinco décadas, sem jamais perder o poder, ganhando relevância e sendo reconhecido como tal. E ao longo de sua trajetória saiu para escolhas difíceis, como o apoio ao golpe de 1964. Mais do que abraçar uma causa autoritária de forma absoluta, Capanema está próximo dessa imaginação que se adequa ao poder, pois este é sedutor demais. Então Capanema era alguém que buscava conquistar e conservar o poder. Essa era a grande agenda. Ele era muito mais sagaz e hábil para saber para onde soprava o vento. E isso não aparece nas trajetórias dele, que o apontam como se fosse apenas um burocrata.
Gustavo Capanema foi o mais longevo ministro da Educação. Que contrastes a atuação dele apresenta com a nossa realidade hoje à frente do Ministério da Educação?
Quando comecei a escrever o livro, ninguém imaginava que o Ministério da Educação cairia nas mãos da ala ideológica de um governo Bolsonaro. E sim, claro, existe contraste grande. Capanema no poder também foi atacado pela imprensa, também sofreu as mesmas pressões que o atual ministro sofre. Mas a principal diferença é que havia ali um projeto político que Capanema conseguiu executar, porque era político, e contou com o apoio da intelectualidade brasileira. Weintraub (atual ministro) não tem aliados de renome na classe intelectual. Capanema teve a fortuna de ser amigo de Carlos Drummond de Andrade e soube virtuosamente, do ponto de vista da política, capturar essa imaginação para atrair mentes brilhantes e servir ao ministério. Weintraub é de um governo que surge com essa indisposição com a classe artística e intelectual, totalmente diferente do governo Vargas, que vai ter em maior ou menor escala apoio de intelectuais, porque Capanema soube operar e criou um cordão de isolamento.
Capanema tinha projeto para a educação?
Tinha e atuava como centralizador. Um projeto que efetivamente dá ensejo a toda ideia de educação que temos no Brasil a partir das décadas de 1930/40. Uma visão mais próxima de conteúdo. Naquela mesma faixa histórica, havia um outro grupo, do movimento Escola Nova, capitaneado por Anísio Teixeira, que tinha outra visão para a educação. Anísio Teixeira permaneceu na memória histórica como o grande formulador da educação brasileira, suplantando Capanema. Mas foi Capanema quem por mais tempo comandou a educação e isso só aconteceu porque foi político e contou com apoio dos intelectuais. Entretanto, do ponto de vista das reformas na educação, parece que a contribuição de Capanema é menor: não era esse nome técnico da educação que pensamos hoje. Capanema era político.
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