''Ao nos levar para essa jornada em um lugar (Hollywood, claro) e um tempo (1969) estrangulados por um crime hediondo que, de certa forma, inaugurou uma época bastante sombria, Tarantino realça o poder evocativo do 'era uma vez' de seu título (que é muito mais do que uma óbvia homenagem a Sergio Leone) e propõe um jogo de espelhos solar na superfície, mas perturbador em seus efeito''
André de Leones
Em Cães de aluguel (1992), primeiro longa-metragem de Quentin Tarantino, há uma sequência na qual o cineasta consegue envolver o espectador em uma anedota que o policial interpretado por Tim Roth conta para se infiltrar em uma gangue de criminosos. Trata-se da famosa cena cujo clímax se dá no banheiro de uma estação de trem, envolvendo o “traficante”, quatro policiais e um pastor-alemão. Tudo é tão bem escrito e montado, desde os ensaios do policial com seu colega até o momento em que, de fato, visualizamos a “cena”, que, em um dado momento, o espectador inadvertida e efetivamente abraça a tensão da coisa, como se tudo aquilo estivesse acontecendo “para valer” no contexto do filme, mesmo sabendo de antemão que é uma história inventada, contada por um policial que finge ser um bandido e precisa ganhar a confiança dos bandidos de verdade. É uma aula de construção narrativa, e a primeira grande homenagem de Tarantino ao ato de contar histórias.
Homenagens assim estão em toda a sua filmografia e adquirem formulações diversas. Às vezes, como em Cães de aluguel, dizem respeito a uma anedota que, por assim dizer, ganha vida ou é usada com outras intenções (nem sempre saudáveis); em outras, remete à própria investida do cineasta na criação e no povoamento de um universo cinefílico extremamente particular. Cito alguns exemplos: a odisseia de um certo relógio de ouro em Pulp fiction (1994); a cena em que um marginal convence outro a entrar em um porta-malas em Jackie Brown (1997) – crédito ao grande Elmore Leonard aqui, pois a passagem já estava no romance Ponche de rum (Rocco), no qual o filme se baseia; a conversa junto à fogueira no segundo volume de Kill Bill (2004); o papo do dublê para ganhar uma lap dance em À prova de morte (2007); o uso de uma sala de cinema para trucidar o estado-maior nazista em Bastardos inglórios (2009); a lenda de Siegfried e Brünnhilde revisitada e reimaginada em Django livre (2012); tudo o que envolve uma suposta carta de Abraham Lincoln em Os oito odiados (2015); e, por fim, o uso brilhante de inserções de séries e filmes (reais e fictícios) no decorrer de Era uma vez em... Hollywood (2019), em cartaz em 16 salas de Belo Horizonte.
No cinema de Tarantino, há sempre essa afabilidade essencial: não obstante toda a violência, nós, os espectadores, estamos seguros, pois estamos do lado do narrador. Eu me refiro, aqui, à própria forma como histórias e personagens (e as histórias dentro das histórias, “verdadeiras” ou não) são distendidos e colocados à nossa disposição, com uma generosidade e um interesse que sempre me parecem genuínos, contagiantes. Mesmo quando “driblam” a história (como em Bastardos inglórios e Era uma vez em... Hollywood), ou justamente quando faz isso, Tarantino está investindo na pulsão narrativa que lhe é própria, incrementando o jogo inerente ao próprio ato de narrar e, assim, reafirmando a verdade da imaginação. É constrangedor que alguns críticos, diante de um filme de ficção, venham reclamar exatamente dessa liberdade narrativa, liberdade que, em Tarantino, é convocada e renovada a cada filme, a cada cena, a cada mísero segundo de projeção: meu mundo, minhas regras.
Era uma vez em... Hollywood é uma elegia. Ao nos levar para essa jornada em um lugar (Hollywood, claro) e um tempo (1969) estrangulados por um crime hediondo que, de certa forma, inaugurou uma época bastante sombria, Tarantino realça o poder evocativo do “era uma vez” de seu título (que é muito mais do que uma óbvia homenagem a Sergio Leone, diretor de longas como Era uma vez no Oeste) e propõe um jogo de espelhos solar na superfície, mas perturbador em seus efeitos: o que não acontece no filme continua lá, latente, vibrando nas sombras de um universo alternativo e distópico, isto é, do nosso universo, da vida do lado de cá da telona. A carga perturbadora do longa reside justamente nesse espaço entre o fato e a ficção, engendrado, alargado e transformado pela liberdade do criador.
Sharon no cinema
Quando acompanhamos Sharon Tate (Margot Robbie) em um passeio vespertino, indo à livraria (onde compra um exemplar de Tess of the d’Urbervilles, de Thomas Hardy, para presentear Polanski – romance que ele depois adaptaria em um de seus melhores filmes, lançado em 1979 e estrelado por Nastassja Kinski, não por acaso dedicado à memória de Sharon) e depois a um cinema para se ver e ver o público no ato de vê-la, é impossível não se emocionar, pois é um desses milagres que só o cinema possibilita. Ela se sente viva ali, animada pelo próprio trabalho e pelo público que a assiste na telona, e nós a sentimos viva, ao testemunhar e tomar parte desse espelhamento formidável. E mais: nós vemos “tudo” – as várias Sharons (no filme-dentro-do-filme, a personagem e a atriz que interpreta a personagem, e no filme, Margot-Sharon, que vê a si mesma, as outras duas e o público vendo ela própria e as outras duas), a plateia no filme e, por fim, a plateia do filme, da qual fazemos parte.
Dessa forma, Tarantino coloca a imaginação a serviço da vida, demonstrando pela enésima vez que seus constantes jogos de citações e espelhamentos não têm nada de estéreis. Ao mergulhar de novo e de novo em tal universo cinefílico, ele não “foge” da realidade, mas sublinha o seu caráter trágico e também a sua beleza essencial. Cocteau teria dito, certa vez, que “o cinema filma a morte no seu trabalho, é a única arte que mostra a morte comendo os atores, que imortais nos personagens são mais fortes em nossa memória que a lembrança dos vivos”. Em Era uma vez em… Hollywood, essa “lembrança dos vivos” brilha justamente naquela que, brutalmente assassinada, não está mais aqui, mas está lá, vivíssima em nossa lembrança, nos filmes que fez e, claro, no filme que agora a resgata para nós. Como disse no outro parágrafo, é o tipo de milagre que só o cinema e Tarantino proporcionam, e eu não consigo pensar em uma homenagem mais digna e bela aos que partiram, ao próprio cinema e à arte superior do contador de histórias.
Em meio a tudo isso, os verdadeiros protagonistas do longa (um ator em dificuldades e seu fiel dublê e faz-tudo) também ajudam a constituir a verdade da coisa pela outra via — são fictícios, mas, não por acaso, vizinhos dos personagens reais. De certo modo, o ator interpretado por Leonardo DiCaprio e o dublê vivido por Brad Pitt funcionam como os guardiões daquela verdade da imaginação: inseridos em um contexto “real”, salvaguardam a liberdade do criador por meio de sua intervenção providencialíssima.
A exemplo do que acontece no clímax de Bastardos inglórios, Tarantino reforça a distinção entre os universos real e fictício (e, reitero, só idiotas exigem uma “fidelidade” que não cabe necessariamente à ficção) para sublinhar tanto um quanto o outro. Eles não se anulam e tampouco se “desmentem”, mas são complementares. E, claro, esse tipo de escolha não diz respeito a um falseamento, mas é o símbolo maior daquela liberdade imaginativa que o cineasta exibiu desde o momento em que colocou um bando de sujeitos sentados a uma mesa, jogando conversa fora, pouco antes de nos mostrar a que vieram. As joias daquela maleta roubada pelos Cães reluzem até hoje nesse universo alternativo que, vez por outra, visitamos e que, generoso, Tarantino não se cansa de expandir, celebrando a cada novo filme os atos de criar e de existir, de lembrar e de (re)imaginar.
- André de Leones (Goiânia, 1980) é romancista, autor de Eufrates (José Olympio, 2018), Abaixo do paraíso (Rocco, 2016) e Terra de casas vazias (Rocco, 2013), entre outros. Seu primeiro romance, Hoje está um dia morto (2006), foi adaptado para o cinema por Robney Bruno Almeida e lançado em maio de 2019 como Dias vazios. Página pessoal: andredeleones.com.br.