“Não coloque as pessoas em terreno movediço, como filosofia ou sociologia, com que comparar suas expe- riências. Aí reside a melancolia. Todo homem capaz de desmontar um telão de TV e montá-lo novamente, e a maioria consegue, está mais feliz do que qualquer homem que tenta usar a régua de cálculo, medir e comparar o universo, que não será medido e comparado sem que o homem se sinta bestial e solitário. (…) Nós resistiremos à pequena maré daqueles que querem deixar todo o mundo infeliz com teorias e pensamentos contraditórios. Não deixe a torrente de filosofia melancólica e desanimadora engolfar nosso mundo. Dependemos de você. Pelo menos uma vez na carreira, todo bombeiro sente uma coceira. 'O que será que os livros dizem?', ele se pergunta.
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Fahrenheit 451 apresenta uma narrativa linear e simples, mas provoca grandes reflexões. Conta a história de Guy Montag, bombeiro que tem como missão apreender e queimar livros, porque não precisa mais apagar incêndios em casas à prova de fogo. Fahrenheit 451 é a temperatura da incineração. Mas, depois de 10 anos, ao testemunhar a morte de uma mulher que é incinerada com seus livros por se recusar a abandoná-los, Montag começa a questionar: “Deve haver alguma coisa nos livros, coisas que não podemos imaginar, para levar uma mulher a ficar numa casa em chamas; tem que haver alguma coisa. Ninguém se mata assim a troco de nada”. Seu pensamento crítico, entretanto, tem graves consequências e o torna vítima do sistema. Sua própria casa vira alvo e ele terá de ser reeducado ou ser preso.
Embora seja tratada como ficção científica, a obra de Bradbury não deve ser vista como tal, é realista e inquietante e muito diferente de outros livros seus – o fascinante O homem ilustrado e os fantasiosos Os frutos dourados do sol e Crônicas marcianas. Mesmo muito distante de prever o surgimento da internet, do e-book e das controvertidas redes sociais, Bradbury criou uma obra visionária com o intuito de criticar a massificação causada pela incipiente TV, então nos anos 1950, e o efeito manada ou o “destino bovino” da humanidade. O que diria hoje Bradbury, que faria 100 anos em 2020? A diversão da “manada” agora são milhares de curtidas e compartilhamentos, a maioria estéreis, nas redes sociais.
Afinal, não é preciso mais pensar, só exercer atividade autômatas, apenas curtir e compartilhar. Pensar pra quê? Para criar dúvidas? Para sofrer? Já disse Fernando Pessoa em seu tocante e extenso poema O guardador de rebanhos: “Pensar incomoda como andar à chuva, quando o vento cresce e parece que chove mais”...
A obra de Bradbury é mais atual do que a de seus contemporâneos George Orwell (1984) e Aldous Huxley (Admirável mundo novo), que criaram duas distopias influenciadas pelo totalitarismo de Hitler e de Stálin. No caso de Fahrenheit, a ditadura é mais sutil, porque a própria sociedade se patrulha, inclusive pela intolerância mútua e pelo denuncismo, não precisa mais ser mandada. É vítima (in)consciente não apenas de um regime totalitário, mas também da massificação cultural, temas hoje usuais vislumbrados pelos papas da comunicação acadêmica, como Theodor Adorno, Walter Benjamin, Marshall McLuhan e tantos outros da Escola de Frankfurt. É a “sociedade de consumo e seu corolário ético – a moral do senso comum”, como diz Manuel da Costa Pinto na introdução do livro.
Em Bradbury, o big brother de Orwell é a TV, não como espiã, mas como pacificadora alienante. “Os bombeiros são agentes da higiene pública que queimam livros para evitar que suas quimeras perturbem o sono dos cidadãos honestos, cujas inquietações são cotidianamente sufocadas por doses maciças de comprimidos narcotizantes e pela onipresença da televisão”. As pessoas dependem da televisão para “passar o tempo”. A TV, entretanto, por mais que tenha “alienado” e “pacificado” a sociedade nas últimas sete décadas, tem um lado só, torna o cidadão um sujeito passivo. Mas em tempos de internet e redes sociais, todos estão num campo de batalha virtual controlado por artifícios tecnológicos e ninguém é mais passivo. E ainda reina a intolerância no meio da manada. Mas a intolerância é entre os internautas, nunca contra o sistema. “A sociedade do espetáculo é uma espécie de servidão voluntária”, diz um personagem do livro.
"Precisamos de conhecimento"
No mundo imaginário de Bradbury, o (des)controle começa com o crescimento da população e o avanço da tecnologia. O bombeiro chefe rememora: “Veio a fotografia, veio o cinema no início do século 20. O rádio, a televisão, as coisas começaram a possuir massa. E porque tinham massa ficaram mais simples. Antigamente, os livros atraíam algumas pessoas, aqui, ali, por toda parte. Elas podiam se dar ao luxo de ser diferentes. O mundo era espaçoso. Entretanto, o mundo se encheu de olhos, cotovelos e bocas. A população duplicou, triplicou, quadruplicou O cinema e o rádio, as revistas e os livros, tudo isso foi nivelado por baixo”. Então, “a escolaridade foi abreviada, as filosofias, as histórias e as línguas foram abolidas, gramática e ortografia pouco a pouco negligenciadas e, por fim, quase totalmente ignoradas”. A vida é imediata, o emprego é que o conta, o prazer está por toda parte, depois do trabalho. “Por que aprender alguma coisa além de apertar botões, acionar interruptores, ajustar parafusos e porcas?”
Livros fazem as pessoas pensarem, ser infelizes, então vamos queimá-los, alerta o chefe. “Eu sempre disse: poesia e lágrimas, poesia e suicídio e choro e sensações ruins, poesia e doença: é tudo uma besteira sentimental”, complementa a senhora Bowles, personagem “bovina” do livro. O contraponto vem com Faber, mestre de Montag: “Precisamos de conhecimento. Os livros servem para nos lembrar quanto somos estúpidos e tolos. Os livros são um convite à transcendência, ao desvario, à errância, ao desvio em relação ao destino bovino da humanidade conformada”. O chefe contra-ataca: “Um livro é uma arma carregada na casa vizinha”.
Mas, queimados os livros, qual seria o próximo passo da barbárie? Queimar os próprios homens para apagar de vez a memória dos livros? Bradbury acena com esperança. Que tal cada pessoa decorar um livro, se tornar um homem-livro, uma mulher-livro. “Eu sou A república, de Platão. Esse sujeito aqui é Charles Darwin e este aqui é Schopenhauer. Somos também Mateus, Marcos, Lucas e João”, diz um homem-livro a Montag. Será essa a solução para sobreviver? Então,para destruir o conhecimento, será preciso destruir o ser humano.
Adaptação e Truffaut
Entre games e duas adaptações para o cinema, a melhor versão de Fahrenheit 451 é a de 1966, de François Truffaut (1932-1984), o único filme que ele fez em língua inglesa e seu primeiro em cores. É bem fiel à obra de Ray Bradbury, com Oscar Werner como Montag e Julie Christie no elenco, inclusive com personagens até mais bem-elaborados do que no livro. Um dos mestres da Nouvelle Vague e diretor de obras-primas como A noite americana (1973) e Os incompreendidos (1959), Truffaut fez um filme menor, segundo críticos, mas isso parece preconceito com a ficção científica. O filme explora bem a mensagem do livro e cumpre a missão mais importante da obra: faz o espectador refletir sobre o mundo em que vive, exercer o livre-arbítrio. Em 2018, o diretor americano Ramin Bahrani lançou péssima versão de Fahrenheit ao transformar o drama filosófico em filme de ação que simplesmente “queima” a obra de Bradbury.
FAHRENHEIT 451
De Ray Bradbury
Biblioteca Azul
215 páginas
R$ 39,90
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