Jornal Estado de Minas

Curador do 'Festival Livro na Rua' destaca evento como termômetro de 'maturidade civilizatória'


 
Último domingo de agosto, meio-dia, região da Savassi, Belo Horizonte. Quatro eventos simultâneos marcam o encerramento do Festival Livro na Rua (Flir), na Rua Fernandes Tourinho. Na esquina com a Avenida Getúlio Vargas, a Academia Transliterária – coletivo de artistas e escritores transgêneros – apresenta recital de poemas; na outra ponta, na esquina com a Rua Pernambuco, a Confraria de Poetas faz leitura de trechos das obras dos escritores Henriqueta Lisboa e Bartolomeu Campos Queirós em frente ao prédio onde ambos moraram; no trecho central da Fernandes Tourinho, além da movimentação em torno dos estandes das editoras e livrarias, dois debates chamam a atenção – um sobre literatura infantil e outro sobre a literatura na sala de aula. Duas semanas após o acontecido, esta cena dominical rara e intensa – na qual se salienta a diversidade dos protagonistas e das temáticas abordadas – é aqui revivida para que se reconheça a potência do que vivemos naqueles três dias de declaração de amor aos livros.

Da sexta-feira à noite, 23 de agosto, quando um sarau poético abriu o festival, ao encerramento na tarde de domingo, dia 25, com o projeto Verve celebrando o bardo Walt Whitman, perto de 10 mil pessoas percorreram a Fernandes Tourinho e conviveram com alguma atividade – performances, lançamento de livros, leituras, debates, espetáculos de dança, contação de histórias, shows e oficinas. Mais de 80 escritores participaram das diversas mesas. Editores falaram de seus desafios, livreiros contaram suas histórias de convívio intenso com clientes de todo tipo, e leitores aproveitaram a ocasião para visitar os 45 expositores e abarrotar as sacolas de livros.

No sábado à noite, um editor independente me confidenciava, exultante, que havia vendido 50 exemplares em sua banca – um volume que ele raramente alcança em um mês de venda. Foi uma festa e tanto, ainda que nem tudo tenha saído à perfeição. Na mesa inaugural, sábado pela manhã, as psicanalistas que debateram o romance A natureza da mordida, de Carla Madeira, tiveram de forçar o gogó, já que o microfone não funcionou (em artigo publicado nesta página, elas apresentam o que disseram naquele dia).
Assim, o FLIR se mostrou iniciativa de enorme sucesso, comprovando o que já havia sido esboçado na primeira edição, em 2017.

Tenho a convicção de que, este ano, fomos muito além. Por um lado, o festival mostrou a força do livro como produto e reafirmou a relevância do comércio de rua. Só por isso já seria válido trabalhar para que tal iniciativa se consolide em uma agenda anual. Os realizadores do evento – a Câmara Mineira do Livro e a Quixote%2bDo Editoras Associadas – já estão mobilizados nesta direção. Mas há um algo mais nessa história que faz toda a diferença: este é um evento inserido no contexto urbano da capital, em local aberto ao público. Inscrito na vida cotidiana. Cidades são construções coletivas, resultado de tensões, interesses, acordos e escolhas.

A nossa Belo Horizonte, como qualquer outra, convive com toda sorte de problemas e desafios.
Pensar a cidade é uma tarefa que cabe não apenas ao poder público, mas igualmente à coletividade. Viver na cidade é viver junto com outros. É reconhecer a existência, as peculiaridades e estranhezas do outro. A cidade, de certa forma, nos obriga a enxergar o mundo além de nossa própria sombra. Conviver em sociedade, portanto, consiste em permanente exercício de tolerância. 

Além das sombras

A forma como encaramos a importância das ruas revela muito de nossa maturidade civilizatória. Rua é lugar de encontro, de diálogo. Por isso é bonito ver a Fernandes Tourinho – a chamada Rua das Livrarias – cheia de gente se confraternizando, trocando ideias, em clima de perfeita civilidade. Durante todo o evento não foi registrado qualquer incidente.
Ao contrário, foram abundantes os gestos e momentos de delicadeza e sensibilidade. Como não se encantar com o varal de bordados com poemas e frases de escritores que vários artistas organizaram na calçada, a convite da loja Patrícia de Deus? Ou com Celso Adolfo tocando as canções inspiradas em Sagarana? E o que dizer da Cia de Dança do Palácio das Artes com um espetáculo emanado da obra de Manoel de Barros? Música, arte, poesia. Uma cidade sem cultura seria despida de alma.

Belo Horizonte tem plenas condições de abrigar novos encontros com esse perfil. Não à toa, uma das mesas de debate reuniu os arquitetos Sérgio Myssior e Roberto Andrés para falar das relações entre ruas, livrarias e qualidade de vida. Porque livros e cidades têm muito a dizer um ao outro. “A leitura”, como já dizia o mestre Eduardo Frieiro, homenageado do FLIR,  em seu clássico A ilusão literária, de 1932, “faz-nos peregrinar através das imaginações alheias, ao mesmo em que enriquece e estimula nossa própria imaginação”. Já as cidades, mais que amontoados de ruas, prédios e construções, são territórios férteis à criatividade, à invenção, ao que dá sentido simbólico às nossas vidas. É possível imaginá-las melhor do que são. Menos violentas, mais generosas, menos desiguais, mais limpas. Muito provavelmente, mais aptas à vida em comunidade.

*José Eduardo Gonçalves é curador do Festival Livro na Rua
Especial para o Estado de Minas


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