Escrevia brasileiro. Diferentemente dos intelectuais dos anos 1920, Paris não o seduzia. Queria rasgar o território continental, afundar-se na cultura popular, nas lendas e no folclore, mitos e deuses do Nordeste e do Norte amazônico. Percorrendo a literatura das tribos taulipang e arejuná, que habitavam a região da fronteira tríplice Brasil, Venezuela e Guiana, arrancou daquelas entranhas inspiração para Macunaíma, o herói sem identidade. Tradições, superstições, falares regionais, nessa miscelânea literária apresentou o Brasil aos brasileiros, unificando pela cultura essa terra de oligarquias, terra que se fizera República, mas ainda vagava sem encontro marcado com o seu espírito.
O casco pisara em falso.
Dão noiva e cavalo um salto
Precipitados no abismo.
Nem o baque se escutou.
Faz um silêncio de morte.
Na altura tudo era paz...
Chicoteando o seu cavalo,
No vão do despenhadeiro
O noivo se despenhou.
E a serra do Rola-Moça
Rola-Moça se chamou.
Eu queria contar as histórias de Minas
Pros brasileiros do Brasil..."
Ao descrever o intelectual Mário de Andrade, Tércio puxa o novelo dos paradoxos: “Ousado e tímido. Recatado e escandaloso. Confessional e comedido. Modesto e vaidoso. Apolíneo e dionisíaco. Singular e plural. Tantos contrastes num espírito criativo e dotado de imensa curiosidade intelectual tornaram Mário de Andrade um caso único na cultura brasileira”. Nas palavras do biógrafo, ele era um oceano. “Tão infinito que se tornou, pela minha estimativa, o segundo escritor brasileiro mais estudado após Machado de Assis”, assinala Tércio, lembrando que foram centenas de livros, artigos, ensaios, teses, dissertações sobre a sua obra, discutindo aspectos diferentes. Nada que até hoje tenha conseguido cobrir a trajetória deste homem, que, segundo Tércio, se desdobraria numa longa lista de fazeres: poeta, romancista, contista, cronista, crítico de arte, musicólogo, folclorista, fotógrafo, professor, colecionador de arte, epistológrafo, jornalista, bibliófilo, ícone da vanguarda modernista e diretor do primeiro órgão cultural do Brasil, o Departamento Cultural de São Paulo.''Ousado e tímido. Recatado e escandaloso. Confessional e comedido. Modesto e vaidoso. Apolíneo e dionisíaco. Singular e plural. Tantos contrastes num espírito criativo e dotado de imensa curiosidade intelectual tornaram Mário de Andrade um caso único na cultura brasileira''
Jason Tércio, jornalista e biógrafo
Interesse pela diversidade
Condições para ser modero
Liberdade de criação e expressão
A cidade de São Paulo apresentava um dinâmico crescimento industrial, e guardava o maior número absoluto de leitores do país. “A classe média se multiplicava, assim como os locais de encontros que estimulavam a criatividade artística”, lembra Tércio. A vanguarda europeia influencia os artistas e intelectuais brasileiros, que querem dar uma resposta à altura de uma consciência nacional: surgem autores jovens descontentes com a tradição acadêmica e parnasiana, impondo à literatura brasileira um processo dinâmico de transformação, que também está presente em todas as artes. Mário de Andrade se articula com intelectuais e artistas de diferentes regiões do Brasil, numa teia em que é embalado o movimento: Anita Malfatti (São Paulo), Villa-Lobos (Rio de Janeiro), Câmara Cascudo (Rio Grande do Norte), Manuel Bandeira (Pernambuco), Pedro Nava e Carlos Drummond de Andrade (Minas Gerais), Raul Bopp (Rio Grande do Sul).
O Modernismo tem como característica unificadora a liberdade de criação e expressão, ideais nacionalistas, ambos voltados à emancipação da dependência europeia: não apenas no vocabulário e na sintaxe, mas também na busca por temas nacionais e na maneira de ver o mundo. Mário de Andrade, ícone do Modernismo, passa a usar as expressões coloquiais, com valorização diferenciada do léxico. Nas palavras do biógrafo Jason Tércio, ao descrever conferência proferida por Mário de Andrade na Casa do Estudante do Brasil (CEB), em 1942, quando completava 20 anos da Semana da Arte Moderna: “Durante hora e meia, Mário fez reflexão teórica ao apresentar os três princípios básicos do Modernismo (direito à pesquisa estética, atualização da inteligência artística, e estabilização de uma consciência criadora), lançou hipóteses controvertidas (‘O espírito revolucionário modernista, tão necessário como romântico, preparou o estado revolucionário de 30 e diante’), praticou memorialismo afetivo (‘Fomos realmente puros e livres, desinteressados, vivendo numa união iluminada e sentimental das mais sublimes’) e se expôs em confissões sinceras (‘Abandonei, traição consciente, a ficção em favor de um homem de estudo que fundamentalmente não sou’)”.
- DE JASON TÉRCIO
- Sextante/Estação Brasil
- 544 páginas
- R$ 79,90
- R$ 49,99 (e-book)