Jornal Estado de Minas

LIVRO

Em 'Eterna Vigilância', Edward Snowden conta por que se rebelou contra o império americano



Meu nome é Edward Joseph Snowden. Eu trabalhava para o governo, mas agora trabalho para o público. Levei quase três décadas para reconhecer que havia diferença entre um e outro, e quando reconheci acabei tendo problemas no trabalho. E o resultado disso foi que agora passo meu tempo tentando proteger o público da pessoa que eu era antes – um espião da Agência Central de Inteligência (CIA) e da Agência Nacional de Segurança (NSA). Apenas mais um jovem tecnólogo construindo o que eu tinha certeza que seria um mundo melhor.”



Assim Edward Snowden, de 36 anos, o foragido da Justiça norte-americana mais conhecido do mundo, inicia o relato de sua autobiografia. Permanent record, traduzido para Eterna vigilância, foi lançado na terça-feira em vinte países, entre eles, Brasil (Editora Planeta), Estados Unidos, França, Alemanha e Reino Unido. A obra detalha como Snowden participou da criação do sistema mundial de espionagem e por que decidiu denunciá-lo, ao constatar os rumos autoritários que assumiram os Estados Unicos com a vigilância sem tréguas da era digital sobre os cidadãos e assim como, na colaboração entre a espionagem e as multinacionais, a informações pessoais são comercializadas.“(...) Participei da mudança mais significativa da história da espionagem estadunidense – da vigilância direcionada a indivíduos à vigilância em massa de populações inteiras. Ajudei a tornar tecnologicamente viável que um único governo coletasse todas as comunicações digitais do mundo, que as armazenasse por eras e fizesse buscas nelas à vontade”, afirma Snowden.

Em 2013, Snowden mostrou ao mundo, em reportagens publicadas no jornal britânico The Guardian, pelo jornalista Glenn Greenwald, que o governo dos Estados Unidos desenvolvia meios para coletar todos os telefonemas, mensagens de texto e e-mails enviados em qualquer país do mundo, em um sistema sem precedentes de vigilância em massa, uma verdadeira invasão não só à soberania de países, mas também à privacidade de pessoas, em ato contra as liberdades individuais dos cidadãos e de governos. As revelações causaram ainda mais mal-estar diplomático entre os Estados Unidos e países aliados porque, entre os inúmeros documentos vazados, foi demonstrado o monitoramento de mensagens de vários líderes – a chanceler alemã Angela Merkel esteve na mira. No Brasil, a então presidente Dilma Rousseff e seus principais assessores foram espionados, assim como o Ministério de Minas e Energia, a Petrobras e as descobertas do pré-sal. Desse monitoramento nasceria, anos mais tarde, a Operação Lava-Jato e suas conexões com órgãos de controle norte-americanos.

Centro do escândalo global, Snowden, herói para milhões de pessoas que compreenderam o que estava em jogo, foi considerado inimigo público pelo governo americano. Buscou asilo na Rússia, onde tem permanência assegurada até 2020. Em Eterna vigilância, ele conta como ajudou a criar este sistema de espionagem mundial e também como atuou para desvendá-lo, ao se dar conta dos perigos desse projeto. Afirma não ser contra que os governos coletem informações por medidas de segurança, mas alerta para o risco de vigiar pessoas em toda a sua trajetória de vida, do momento em que nascem até a morte. Snowden adverte todos para que tenham muito cuidado ao dar um telefonema, mandar uma mensagem de áudio ou digitar dados de sua conta bancária.



Governo americano move ação judicial

Por causa da autobiografia, em mais um lance de sua caçada a Snowden, o governo americano move agora ação judicial contra ele e as editoras da obra, alegando violação de acordos de confidencialidade de assuntos relacionados à “inteligência”. Considerando não ser intenção “deter ou restringir a publicação ou distribuição do livro”, o Departamento de Justiça norte-americano diz pretender “ressarcir-se com todos os lucros obtidos” pelo autor, para que não receba “benefícios monetários por violar a confiança depositada nele”. Pelo Twitter, Snowden respondeu: “É difícil pensar em um maior selo de autenticidade que o fato de o governo dos EUA apresentar uma demanda afirmando que o livro é tão veraz que escrevê-lo era literalmente contrário à lei”.

As memórias de Snowden esquentam um debate ético e filosófico sobre os limites do direito individual à privacidade e as políticas de Estado, que, para além da vigilância em tempo integral com alegados propósitos de segurança nacional – a justificativa veio com o 11 de Setembro – encampa, também e sobretudo, grandes interesses comerciais de players globais. Para além da exposição da privacidade individual, também está em jogo qual empresa deve ser destruída com a exposição dos dados, portanto, trata-se de quais interesses de mercado estão em disputa.

 “A razão pela qual você está lendo este livro é que eu fiz uma coisa perigosa para um homem em minha posição: decidi dizer a verdade. Eu coletei documentos internos da CIA que evidenciavam o desrespeito do governo dos EUA às leis e os entreguei a jornalistas, que os examinaram e publicaram para um mundo que ficou escandalizado. Este livro fala sobre o que me levou a essa decisão, os princípios morais e éticos que a embasaram, e como eles surgiram. Isso significa que ele fala também sobre a minha vida”, escreve Snowden.



O ex-espião conta como tal sistema nasce a partir da evolução da internet, esta que, em princípio, trouxe para ele o inocente encanto das possibilidades de conexão humana. Evoluiu para a bolha do comércio eletrônico, que colapsou na virada do milênio quando percebeu-se que, com pessoas muito interessadas em contar ao mundo onde estavam e o que faziam, tais conexões podiam ser monetizadas. Foi nesse momento que todas as empresas precisavam descobrir como se colocar no meio dessas interações sociais para, por meio delas, extrair lucros. “Esse foi o começo do capitalismo de vigilância e o fim da internet como eu a conhecia”, revela Snowden. Seguiram-se tempos da web criativa, com inúmeros sites individuais, de interessantes conteúdos, mas de difícil manutenção, aos poucos substituídos por páginas no Facebook e contas do Gmail.

“A aparência de posse era fácil de confundir com a propriedade real. Poucas pessoas entenderam isso na época, mas nada do que compartilharíamos nos pertenceria mais. Os sucessores das empresas de comércio eletrônico que fracassaram – por não ter encontrado nada que estivéssemos interessados em comprar – passaram a ter um novo produto para vender. E esse novo produto éramos nós”, explica Snowden. “Nossa atenção, nossas atividades, nossa localização, nossos desejos – tudo que revelamos sobre nós, conscientemente ou não, estava sendo vigiado e vendido em segredo, a fim de retardar a inevitável sensação de violação que a maioria de nós só sente agora. E essa vigilância continuaria sendo ativamente encorajada e até financiada por um exército de governos ávidos pelo vasto volume de informação que obteriam”, prossegue Snowden, que acrescenta: “Além de logins e transações financeiras, quase toda comunicação on-line foi criptografada nos primeiros 20 anos, de tal forma que os governos nem precisavam se dar ao trabalho de abordar as empresas para saber o que seus clientes estavam fazendo. “Podiam simplesmente espionar o mundo sem ninguém saber”, diz ele.

Vigilância em massa

De acordo com o ex-espião, o governo dos EUA assumiu o poder da vigilância em massa. “Foi só quando cheguei a uma compreensão mais completa dessa vigilância e de seus danos é que passei a me sentir assombrado pela consciência de que nós, o público – o público não apenas de um país, mas do mundo todo – nunca tivemos voz nem voto, nunca tivemos a chance de dar nossa opinião nesse processo. Um sistema de vigilância quase universal havia sido estabelecido não apenas sem nosso consentimento, mas também de uma maneira que ocultava deliberadamente de nosso conhecimento todos os aspectos de seus programas. A cada passo, os procedimentos variáveis e suas consequências eram escondidos de todos, inclusive da maioria dos legisladores. A quem eu poderia recorrer? Com quem poderia falar? Só sussurrar a verdade a um advogado, a um juiz ou ao Congresso seria um crime tão grave que a simples descrição básica dos fatos mais amplos provocaria prisão perpétua em uma cela federal”, afirma ele.



Ao mesmo tempo em que lamenta a morte da internet das conexões inocentes que conheceu em seus primórdios, Snowden alerta para os perigos que vislumbra no futuro próximo, com a fusão entre a inteligência artificial e a capacidade do sistema universal de vigilância. E não deixa de se exasperar com a maioria de nós, que não tentamos compreender como as tecnologias que utilizamos podem ser usadas contra nós. “É a tirania da não compreensão sobre tecnologia”, constata ele, ou seja, o abismo entre a incompreensão de quem usa o computador ou smartphone satisfeito pelas facilidades e liberdade alcançada, sem atinar em como essa tecnologia nos torna vulneráveis.


ETERNA VIGILÂNCIA
• De Edward Snowden
•  Editora Planeta
• 288 páginas

• R$ 44,90 / R$ 36,37 (e-book)


Usuários vulneráveis

O documentário expõe as arestas do ambiente on-line que favorecem a persuasão de usuários “vulneráveis”, orientando fake news e desinformações. Paralelamente, o filme retrata uma luta legítima, como o acirramento e mobilizações da sociedade civil em defesa à privacidade, como os levantes #DataJustice e #DataForGood. Como se sabe, essa movimentação acarretou no aperfeiçoamento do arcabouço jurídico na privacidade e direito digital na União Europeia, que aprovou em 2016 a GDPR – nova legislação que estabelece normas severas para a proteção de dados.

No contexto brasileiro, o documentário cita o recente caso do uso de disparos em massa no WhatsApp durante a última campanha presidencial, vencida por Jair Bolsonaro. Esse aspecto aponta, indiretamente, sobre a urgência de colocar em prática a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), recentemente sancionada e que estabelece a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados. A entidade terá como missão ser a guardiã dos dados pessoais dos usuários brasileiros. Num modelo similar, a agência reguladora ICO, do Reino Unido, é uma referência de boa prática no debate público sobre a exploração de dados pessoais. Ela condenou o Facebook e a Cambridge Analytica sobre a coleta indevida de dados pessoais dos usuários, com multas de 550 mil e 15 mil libras, respectivamente.



Elaborado como uma grande reportagem, Privacidade hackeada reconstitui a linha histórica de uma das polêmicas mais noticiadas dos últimos anos e que colocam em risco democracias do mundo todo, sejam elas novas ou mesmo consolidadas. Ao viver os impasses e os levantes de Carrol, Cadwalladr e Kaiser surge a constatação de que a era dos big datas interpela o posicionamento de todos os cidadãos. Há, no presente imediato, muitos desafios, os quais envolvem legislações práticas tecnológicas e um amplo debate público. Inserir a big data no centro da agenda contemporânea não é uma questão de escolha, mas uma urgência para toda democracia que preza seus valores mais essenciais.

Serviço


PRIVACIDADE HACKEADA
•  Duração: 2h19min
•  Documentário de Karin Ahmer e Jehane Noujaim
•  Disponível na Netflix