O entrecruzamento de planos rememorativos dá a impressão de simultaneidade de imagens e conceitos. Essa característica condiciona a técnica de Rogério Zola Santiago, que propõe ensinamentos preciosos sobre como fazer uma literatura polivalente notada em versos condensados, plenos de essência e de desafios. “Sobras sobre a mesa, para não sufocar, mastigou-se.” Os poemas acumulam informações líricas, atravessam idades (o autor conta 64), e parecem ser uma ampliação do tema nuclear, minimalista. Outros são de interpretação conjectural, fechados em estojo enigmático. A maioria, porém, comporta leitura plural, endentando-se com a memória familiar, erótica, vivencial e política do autor, que confessa ter vivido “entre estas noções midiáticas, de dor sensacionalista e revelação fútil, para além do explícito e do compreensível” na navegação geográfica intermediada por releituras de nosso tempo e do tempo do escritor-pensador.
Como o nome indica, Exercícios de partida – Metáfora clandestina refere-se a um mistério em “geografia estilhaçada”, só possível de ser recomposta por meio da “poiesis sem concordatas” que se permite “bicar sombras e beber açudes do branco da jabuticaba”. Decifrar a mediação referencial que se liga a lugares, artistas e personagens das relações afetivas (ou não) será outra forma analítica de rendimento. “Ele me entrevistou através do jornal que lia e da sola Santiago de seus sapatos. Saí de lá encantado pela Morte.” A lágrima inunda o texto ora de ironia, de culpa ou mesmo de uma subjetividade inquietante, irônica. “A calma estava ali” (poema Frutais), que versa sobre “frutas logo antes de serem comidas: lágrima é composto cítrico, na passagem da quimera”.
A contraposição entre o mundo e os seres humanos inculca nos poemas boa margem ideológica de descontentamento, de análise social. Tal abordagem toma rumo em Exercícios de partida e terá continuidade em Relíquia das duas torres, obra sequencial que inserirá o Brasil no contexto da queda das Torres Gêmeas norte-americanas. O poema Romaria retrata a massificação consumista, em antropologia filosófica. Com metalinguagem onipresente, pincemos o poema intuição inocente, uma refinada elaboração: “Criação justaposta ao indefinido”. O poema Mallarmé compõe-se de polidos recursos fônicos e morfológicos bem logrados, enquanto o Camaleão incorpora o sentido da metamorfose em realização mimética de largo emprego na tradição estética do Ocidente, pela via de Platão, e, principalmente, de Aristóteles.
Errado e certo,
Simultâneos perto e longe,
Passado joio pródigo.
Mordiscam-se consequências,
Augúrios dentro da casca.
A astúcia letrista é jogo antigo em Santiago. Rimas internas que soluçam, conjugam esperas, esferas, feras, quimeras e pedras. Enigma tem parentesco grafoacústico com estigma. Phoenix pode desdobrar-se em perplexo, amplexo e anoréxico. A descrição da paisagem é acompanhada – conforme já assinalamos – do vivente contraposto ao universo. No cotidiano, a descrição se faz acompanhar de antropomorfização (qualidades humanas em objetos) ou por zoomorfismos (o animal dentro das coisas).
“Solta-te destas mãos ou irás comigo, que do algoz logo brota um segundo broto, vezes júbilo – ora castigo.” Amplo espaço fica exposto ao estudo da mente, de que a obra é simbólica, em bela e desafiadora realização a perscrutar as causas secretas dos poemas, em discurso verbal sobre a atividade onírica. “Quer morrer? Quero. Morrer de mim: o componente na Cadeira de Balanço se move, sem gente no comando”. Há insistente busca, em consciência artesanal, das raízes da poesia, da cultura, de si. Pedro Nava, no centro da temática, ressalta a Atemporalidade. Forte ceticismo surge “no abraço / no nada do outro”. E o descompromisso: “Não conto espaços”, ao mesmo tempo em que este autor prima pelo espaçamento e pelas rimas insinuadas, tal ocorre em Emily Dickinson e em Elizabeth Bishop.
O perpétuo moto de Santiago abrange Arte e Vida, cuja metáfora, afinal, é o boi “que sabe o vegetal / para renascer”. O livro Exercícios de partida, título em clara referência à série de despedidas que a vida oferece até o adeus final, dá aos leitores e leitoras a rara oportunidade de convivência com o fenômeno da experiência poética em sua mais tensa complexidade e em pluralidade semântica; os signos se organizam no pleno vigor de sua polissemia (multiplicidade de significados). “Gente de ferro estes afastados, pois de dar a vida eram capazes, restos pesados de carregar, eficácia do cruzamento de macho caçador com mulher amordaçada”. A obra tem, também, cunho histórico testemunhal.
A crítica avisada pode compreender os protótipos da poesia, e sentir nos textos em escrutínio a multivocidade do discurso. Este, às vezes, nada tem a retratar, mas apenas contentar-se em ser. Archibald MacLeish pensava que “um poema não tem de significar, mas, de ser”. Paul Valéry, escrupuloso pensador, acreditava que “a poesia tem de ser conduzida ao essencial de seu princípio ativo”. É assim que Rogério Zola Santiago ministra ensinamentos sobre como realizar literatura sem concessões ao discurso sentimental explícito. “Olho aberto, outro fechado, comedidas poesia e prosa: nada é semente”.
Exprimindo-se numa faixa em que se fazem presentes a emoção e o enigma, este autor não deixa de buscar, como apurado articulador da linguagem poética, a correlação pretendida entre o plano da extensão e o do conteúdo. Seus procedimentos ora apontam para a ordem, ora sublinham o caos. Tal é o ininterrupto sentido do livro Exercícios de partida com que este autor se firma entre os mais hábeis cultores da palavra poética em língua portuguesa contemporânea, garantindo uma tradição do sangue (seu avô, poeta e inspetor de ensino velho Baptista Santiago, colega de pensão e amigo de Drummond e Guimarães Rosa), e do solo (Minas Gerais).
EXERCÍCIOS DE PARTIDA (METÁFORA CLANDESTINA)
• De Rogério Zola Santiago
• Páginas Editora
• 304 páginas
• R$ 60
• Lançamento: 26 de setembro, a partir das 18h, no Automóvel Clube de Minas Gerais – Avenida Afonso Pena, 1.394, Belo Horizonte
* Fábio Lucas é membro das Academias Mineira e Paulista de Letras e candidato a cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL)