“O massacre dos seres humanos por seus iguais não mudou desde a Antiguidade.” Assim Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa, professora de grego e teatro da Faculdade de Letras e da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), explica a decisão de encerrar, com a tradução da tragédia grega Hécuba, de Eurípides (484-406 a.C.), o livro de dramaturgia Teatro e tradução de teatro – Volume II, com monólogos pela primeira vez traduzidos para o português de Enzo Moscato, Isidora Stevenson, Dario Fo, Franca Rame e Stefano Benni. São dramaturgos de nacionalidades e gerações distintas – textos em italiano, espanhol e grego – pouco divulgados no Brasil, com temáticas universais e arquetípicas, que versam sobre a natureza e a miséria humana.
“A história de Hécuba é emblemática. Rainha de Troia, ela encontrou seu filho morto, trazido pelo mar, no mesmo local em que o menino Alan Kurdi foi encontrado, e por motivos bem parecidos. Como mãe, Hécuba, ainda que rainha, não difere muito das mulheres dos aglomerados que perdem seus filhos nas desovas de assassinos”, afirma Tereza Virgínia. Eurípides coloca em cena tragédia que se passou há 2.500 anos, mas segue cotidiana das periferias brasileiras: a completa desolação das guerras, em que a desumanização do cidadão é o primeiro passa para que se torne alvo da crueldade do estado, em atos que dissipam fronteiras entre civilização e barbárie.
Teatro e tradução de teatro – Volume II, da Relicário Edições, é organizado por Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa, pela professora de literatura italiana e tradução Anna Palma e pela professora de língua e literatura italianas Ana Maria Chiarini, ambas da Faculdade de Letras da UFMG. Tem como característica relevante um processo de tradução colaborativa de alguns textos inéditos no Brasil, por meio de uma estratégia que, em busca do melhor registro, permite aos envolvidos vivenciar e experimentar sonoridades e sentidos dos vocábulos traduzidos.
A tradução da obra de Eurípides foi feita pela Trupe de Teatro Antigo, dirigida por Tereza Virgínia. “O processo é um diferencial. Traduzimos de forma coletiva, debatendo com estudiosos da língua a ser traduzida (tanto dos níveis iniciais como do avançado) e com artistas (atores, músicos, diretores, cenógrafos etc). Ficamos horas discutindo o léxico, a sintaxe e a cena mais conveniente”, explica a professora. “O texto não é a única referência. Para proporcionar uma comunicação mais imediata com o público, usamos de intertextualidades e 'aconchegos culturais': por exemplo, inserimos na tragédia grega ditados populares ou versos da MPB que podem equivaler a trechos do texto de partida”, considera ela.
Ao lado de seis estudantes do curso de língua italiana da UFMG, a professora Anna Palma foi responsável pela tradução do monólogo do italiano Stefano Benni, Beatriz, uma versão moderna da personagem Beatriz Portinari, musa inspiradora do poeta Dante Alighieri. “É um texto cômico que conversa com um público jovem e com referências satíricas à política e à vida contemporânea. A nossa Beatriz está na Idade Média, mas é uma adolescente esperta e que quer se divertir, não ser apenas uma musa de um poeta feio e narigudo”, sustenta ela. Para Anna Palma, é com esse jogo da sátira e da ironia que Benni inverte o caráter angelical da Beatriz, conferindo uma voz, um lugar de fala, ao arquétipo poético da perfeição feminina.
Coautora da tradução de Una donna sola (Uma mulher só), de Dario Fo e Franca Rame, Anna Maria Chiarini lembra que Dario foi Prêmio Nobel em 1997 e, em seu discurso, ofereceu “uma boa metade da medalha à companheira de arte e de vida” Franca Rame. Escrito, portanto, a quatro mãos, desde 1970 o monólogo já foi encenado mais de três mil vezes por Franca em teatros, escolas, fábricas, também com o propósito de arrecadar fundos para as lutas feministas. “É exatamente o grito de revolta, que a ‘mulher só’ do monólogo tem a ensinar para o Brasil de hoje”, acrescenta a professora.
Um ato de dor sobre a ausência
Anita Mosca, dramaturga, pesquisadora e atriz da Cia Moscato, trabalhou ao lado de Tereza Virgínia Barbosa e Manuela Barbosa a tradução de Compleanno (Aniversário) do autor napolitano Enzo Moscato (Prêmio Ubu à carreira em 2018). Trata-se de iniciativa inédita no Brasil e na Itália, porque, diferentemente das edições precedentes, baseou-se não no texto inicial publicado em 1994, mas na dramaturgia moldada à cena, pelo próprio autor, após 33 anos de apresentações. “Compleanno é sem dúvida a proposta mais representativa do teatro moscatiano. Escrita rapsódica, fragmentada, estilhaçada, que recusa uma linha narrativa para encarnar em cena um delírio, um ato de dor sobre o tema da ausência. Ausência do amigo e colega Annibale Ruccello, como explicado na apresentação à tradução, morto tragicamente aos 30 anos de idade em acidente de carro em 1986. “Marginais e marginalizados ganham destaque na narrativa do dramaturgo napolitano, com pontas tragicômicas e representam a metáfora da inadequação e incompletude da humanidade”, afirma Anita Mosca.
No conjunto da obra, a seleção dos textos, escritos em épocas diferentes, em locais diversos e por mãos variadas, mostra, na visão de Tereza Virgínia, a visão aguda da arte. “Desnudam, com potência e intensidade os crimes cotidianos e brutais que cometemos uns contra os outros, dentro dos múltiplos sistemas democráticos (entre os quais podemos incluir as famílias). O mais interessante, porém, é que o teatro é arte coletiva por natureza; assim, ao ser traduzido coletivamente, pode construir democracia (e propagar a democracia) começando por dentro, pelos grupos de pesquisa, grupos de teatro, espaços acadêmicos, plateias heterogêneas. Ou seja, construir de forma coletiva o que seja belo e bom para todos”, avalia Tereza Virgínia.
TRECHO
Hécuba de Eurípides
“Hécuba: Eis que te rogo e suplico: não me roubes das mãos o fruto, e vós todos, não mateis! Já há mortos que chega!”
Compleanno
“Dedico a Inês este canto!
A Inês, ao teatro lírico, às suas Bonecas.
E também aos aleijados, com uma fita de estrelas coroando a cabeça calva e descendo até a nuca.
E digo in my heart forever: Que o diamante sobre a flor de loto, após a morte, venha, e digo mais: “Oh, Senhor, para que nos fizestes nascer, senão para ser, absolutamente, divinos?” A sua cabeça é um ovoide perfeito e já os seus olhos são pétalas de fogo, os seus lábios têm a plenitude das mangas, e o arco das suas sobrancelhas lembra aquele de Krishna...”
TEATRO E TRADUÇÃO DE TEATRO – VOL. II
De Enzo Moscato, Isidora Stevenson, Dario Fo, Franca Rame, Stefano Benni e Eurípides
Orgs.: Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa, Anna Palma e Ana Maria Chiarini
Relicário Edições
135 páginas
R$ 35
Lançamento: Dia 28 de setembro, às 11h, na Casa Relicário (Rua Machado, 155 – Casa 1, Bairro Floresta, BH)