Jornal Estado de Minas

ANÁLISE

Por que promover o contato direto entre autores e editoras com o público


Acostumados a ler e a escutar a máxima da vez de que “o mercado editorial está em crise”, os apaixonados por livros podem ter se surpreendido com a rápida sucessão de eventos de grande porte dedicados às letras realizados nos últimos meses na capital mineira. A programação de feiras, festas e festivais literários começou com a Primavera Literária (15 a 18/8) e teve sequência com o Festival Livro na Rua (23 a 25/8), o Salão do Livro Infantil e Juvenil (3 a 8/9) e o Festival Literário Internacional de Belo Horizonte (FLI-BH, que começou na quarta-feira e segue até domingo, dia 29).

A profusão de celebrações do livro e de sua materialidade pode fazer parecer que a cidade, orgulhosa de sua tradição literária, esteja encenando um apego a um passado que já não condiz com a realidade (principalmente em meio a notícias sobre a recuperação judicial de grandes redes de livrarias e o advento do livro digital, com suas profecias de morte iminente para o impresso).



Tenho certeza, no entanto, de que o cenário esboçado é outro. Quem se fez presente nos eventos listados percebeu que não eram mera homenagem a um momento distante. Pelo contrário: mesas de discussão ultrapassaram a lotação máxima, bancas de editoras estiveram cercadas de curiosos (e leitores em potencial). Há um fluxo intenso de gente entusiasmada com os livros e tudo que os cerca.

Além desses grandes eventos, o cenário atual inclui dezenas de encontros de pequeno e médio portes. Resultam de um movimento de décadas, que ganhou força a partir de 2010. A renovação literária e editorial é essencial para as editoras locais, muitas vezes chamadas de “independentes”. Para elas, a distribuição em grandes livrarias nunca foi uma solução completa. Mesmo antes da crise, estas casas se organizavam e buscavam outras formas de alcançar o leitor.

O que muda agora, com o imbróglio financeiro das grandes livrarias, é que o contato direto com o leitor tornou-se a principal estratégia de venda. Multiplicam-se o número de feiras, encontros e eventos com autores e com casas editoriais locais. Lançamentos transformam-se em festas. Assim, as equipes mínimas de casas editoriais tradicionais e recém-criadas são mantidas.



Também estão por trás do bom momento os cursos de graduação e pós-graduação com ênfase na edição que foram abertos no Cefet-MG e na UFMG há mais de 10 anos. Nesses ambientes, são formados autores, editores e leitores sensíveis às particularidades do ofício. Além disso, contribuem à cena discussões como as promovidas pelo seminário Cartografias da Edição Independente, que ocorreu no Cefet-MG no início da semana e reuniu pesquisadores do Brasil e do Uruguai.

Delicado equilíbrio

Vivemos um momento de efervescência literária e editorial, que gira em torno da produção local e ganha força a cada ano. No entanto, como toda cena em ebulição, a da edição independente ainda é frágil. Para se consolidar de vez, precisa de mais apoio e menos dependência do poder público. Isso fica evidente com a concentração, no início do segundo semestre, dos grandes eventos literários de BH.

As datas sequenciais não são coincidência, mas consequência da liberação simultânea dos raros investimentos de grande porte que os organizadores desses eventos podem contar. A Primavera Literária e o Festival Livro na Rua são realizados com recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura, que liberou, no apagar das luzes de 2018 e nos primeiros meses de 2019, as primeiras verbas desde o edital de 2015. Já o Salão do Livro Infantil e Juvenil é realizado com recursos do governo federal, que lançou, em meados de 2018, o primeiro edital para a realização de eventos literários desde 2015.



Mais uma vez, a distorção é resultado da política cultural e da burocracia brasileiras. Precisamos de soluções melhores e mais estáveis do que a liberação de recursos por meio de editais – que são bem-vindos, é claro, mas não podem ser o único pilar de sustentação desse cenário.
Para quem ficou curioso em conhecer esse mundo, é bom lembrar que a maratona não termina com o FLI-BH neste fim de semana. Ainda teremos a primeira edição da Curupira: Feira de publicações e artes infantojuvenis (5/10), a 11ª Textura: Pequena feira de impressões e literatura (novembro), e a Urucum: feira de livros, impressos & artes visuais (dezembro).

Além disso, alguns dos organizadores mais presentes na organização de feiras no começo da fase atual voltaram a se reunir para lançar a Feira Canastra (12 e 13/10). Também teremos, em 2020, o retorno da Faísca – Mercado Gráfico, que fez história na cidade com sua proposta periódica (foram 23 edições entre 2015 e 2017). Vale ressaltar que as duas últimas também são realizadas com recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura.


A história das feiras, festas e festivais literários está só começando. Num país em que as notícias são de falências e desistências, esses eventos mostram persistência e constância. Fazem do livro impresso um símbolo de resistência. O cenário, por enquanto, é tão bonito quanto frágil.

* Flávia Denise de Magalhães é jornalista, especializada em publishing pela Universidade de Nova York (NYU), mestre em estudos de linguagens pelo Cefet-MG e doutoranda em estudos literários pela UFMG. É também pesquisadora de feiras de publicações, processos editoriais e autopublicação e idealizadora da revista Chama, que publica semanalmente o roteiro literário de Belo Horizonte. E é uma das organizadoras do seminário Cartografias da Edição Independente.

Homenagem a Adão Ventura no FLI-BH

O Festival Literário Internacional de Belo Horizonte (FLI-BH) mira a palavra viva, abrindo espaço para quem diz poema aos moldes dos saraus e slams (batalhas de versos). Para fazer jus à curadoria Do livro à voz: narrativas vivas, proposta pela poeta Nívea Sabino e a ilustradora Marilda Castanha, ganha centralidade a palavra escrita e, sobretudo e de maneira inovadora, a falada. Os poemas de Adão Ventura (1939-2004) – homenageado desta edição – foram ditos de diversas formas na noite da abertura do festival, na quarta (25). O poeta Ricardo Aleixo levou o público ao universo poético de Adão: as palavras de A cor da pele (edição do autor,1980) foram vocalizadas e ressonadas em sons que partiram da boca e de todo o corpo de Aleixo. A solenidade foi realizada na noite de quarta-feira no Teatro Francisco Nunes, no Parque Municipal Renné Giannetti, que recebe, até 29 de setembro, parte da programação do festival e ainda as editoras que participam do evento. Adão foi evocado em carta lida pela atriz Júlia Elias, que se remete a ele como a um parente, tendo como fio condutor da conversa imaginária a “negrura”, jeito de estar no mundo presente na obra do poeta, nascido em Santo Antônio do Itambé em 5 de julho de 1939, e na vida da jovem atriz criadora do coletivo Preta Poeta. Um momento bastante emocionante foi o poema dito por Nívea Sabino, que fez referência à tradição de distribuir balas no Dia de Cosme e Damião para trazer ao debate o episódio trágico da morte da menina Ágatha Félix, no Rio de Janeiro. Na forma e no conteúdo, a FLI-BH promete tornar a palavra a forma de expressão da diversidade de corpos, histórias e jeitos de estar no mundo. O festival concede menção honrosa aos escritores Leda Maria Martins e Ailton Krenak, que têm a oralidade como parte importante de seus caminhos literários. (Márcia Maria Cruz)