Dos autos da devassa, uma única frase no terceiro de 11 volumes ilumina um colosso de palavras arquitetadas para arrastar o libertário à forca. Embaralhada em meio ao mais extenso processo jurídico do período colonial, lá está a nova sentença: Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, era solteiro e tinha uma filha natural. Quase dois séculos se passaram, até que Joaquina, essa obscura criança bastarda da Inconfidência, engolida pela dramática história de um povo em busca da liberdade e de um herói de ascendência amaldiçoada, ganhasse corpo e vulto. E assim se fez em 1987, ao ritmo da trama ficcional bordada por Maria José de Queiroz, sob o título de Joaquina, filha do Tiradentes. Foi este o romance histórico de uma extensa obra desta belo-horizontina, residente em Paris, considerada uma das maiores escritoras vivas da língua portuguesa. Até então, Maria José de Queiroz dedicava-se a ensaios acadêmicos, tidos como extraordinários pela pesquisa envolvida e qualidade dos textos.
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Um profundo e rigoroso trabalho de pesquisa, descrito por Pedro Nava como “catar, separar, escolher”, são qualidades de estilo da ficcionista mineira. “É artesanal, que passa por um empreendimento pautado pela erudição e pelo requinte da elaboração pormenorizada de cenários e cenas da vida mineira”, afirma Lyslei Nascimento.
Escolhida pelos temas
A liberdade, valor que integra os direitos fundamentais do homem, perpassa e funda o argumento na obra de Maria José de Queiroz. E com ela Minas Gerais, sua história, sua cultura, os ideais libertários, que dão voz a Joaquina, filha daquele que foi apelidado de “Liberdade”, mas está também presente em A literatura encarcerada (1981), A literatura alucinada (1990), A literatura e o gozo impuro da comida (1994), Os males da ausência ou A literatura do exílio (1998) e Em nome da pobreza (2006). Para além de Joaquina, a temática da liberdade também atravessa toda a obra ficcional, como Sobre os rios que vão (1991) e Vladslav Ostrov, príncipe do Juruena (1999).
É assim que Maria José de Queiroz, que gosta de afirmar que não escolhe os temas de sua obra, mas, antes, é por eles escolhida, demonstra que na composição de cada palavra a literatura se desenha, a música e o ritmo se integram, e a palavra a liberta. “Através da palavra você chega à liberdade. Temos o direito de falar. O fundamental na existência é a presença da palavra”, avalia a autora, que encontra na fusão entre o ser e a sua linguagem a essência da vida. “Você e a sua língua são um único, a língua é a própria alma. É o que nos dá vida, nos traz para o outro. Você fala que gosta de sua mãe, ou de um prato, a sua língua é o seu corpo pedindo socorro em qualquer circunstância que esteja, quando você tem fome, quando tem solidão, em todos os momentos, a sua língua está ali”, sustenta Maria José de Queiroz.
Para esta intelectual, que se emociona ao refletir sobre o exílio, o encarceramento e a privação da liberdade, o grito da palavra que se materializa em temáticas universais, articuladas num mosaico que bem constituem uma enciclopédia cultural dos países de língua portuguesa e espanhola da América. Ao percorrer todas essas paisagens, é a Minas que Maria José de Queiroz sempre retorna. É assim que, em 1971, em Paris, discorreu em Como me contaram:
“(...) Mas no fim de cada estrada
Minas me espera, de alcateia.
Na esquina de mim mesma entre calle street strasse e boulevard,
no agudo da incerteza,
da angústia, do desassossego,
Minas me diz: presente!
Olhos fechados, livre de todo medo,
os músculos me ensinam montanha, ferro e aço:
regresso às minhas veredas.
No sertão alucinado a paz se restabelece.
Minas existe.Vivo de sua herança: ilesa.”
É uma literatura que desafia. “Pela densidade da história que está sendo contada, pelo tecido de vozes que constroem o texto, vários escritores em vários tempos sendo trançados, pela profunda pesquisa – ela demora oito, 10 anos para lançar um livro. Por tudo isso, é uma autora que exige coragem”, comenta a professora Lyslei Nascimento. “É a maior escritora brasileira viva. Com a vantagem de que é tão ensaísta quanto ficcionista, uma poeta. Tudo o que faz é com perfeição. Agora não é uma escrita que se lê e traz conforto. Ao contrário, é uma escrita que desperta para as coisas, para o mundo. É uma escritora que incomoda”, resume Lyslei Nascimento. E assim como Carlos Drummond de Andrade, é uma literatura para fazer dormir as crianças e acordar os homens. Das montanhas e para além delas.
ENTREVISTA/MARIA JOSÉ DE QUEIROZ ESCRITORA E ENSAISTA
“A língua é a própria alma”
Como a senhora escolhe as suas temáticas?
Não escolho. Elas que me escolhem. Eu, às vezes, estou escrevendo e me vem aquela ideia de escrever alguma coisa sobre isso ou aquilo e se transforma posteriormente num livro. Agora, há assuntos que estão dentro de mim. As coisas que tenho raiva, como as prisões, estudei os prisioneiros políticos.
Como foi a inspiração para escrever Joaquina?
A Joaquina é diferente por causa do nosso herói. Não há, nem nunca houve um herói como Joaquim José da Silva Xavier. A filha dele entrou na minha vida por causa da mãe dela, que quis ter um filho que fosse de um herói. Dizem que a avó de Joaquina dizia: “Que absurdo você com essa criatura? Pensar que vai haver liberdade, não há possibilidade, o país é dos portugueses, somos colonizados”. Ela achava as ideias de Tiradentes absurdas. O tema me escolheu porque não há nada mais fundamental em nossa existência do que a liberdade.
Entre os ensaios que a senhora escreveu, um deles vai ser relançado, Literatura encarcerada. A literatura liberta?
A literatura de dentro da prisão é a literatura da liberdade. Através da palavra você chega à liberdade. Você pode falar o que você quiser. Temos o direito de falar. O direito de reclamar e o direito de protestar. O fundamental na existência é a presença da palavra. E é com a palavra que se mobiliza para a ação, que vou conquistar o mundo. Libertas quae sera tamen. Liberdade ainda que tardia. Através da palavra, nós, em Minas, começamos. E veja a beleza da Inconfidência Mineira. A conjura é articulada também por aqueles intelectuais que foram estudar em Lisboa. Isso é ainda mais bonito. Eles se revoltam com aquele país que lhes deu a possibilidade de estudar e lutar por nossa liberdade. Foi em Portugal onde aprenderam a ler e a escrever. Isso dá aos portugueses também a honra de ter tido um povo como o brasileiro, que recebeu essa língua que não é língua de ninguém mais nesta grande América. E podemos dar ao mundo esse exemplo de que também se faz boa literatura e poesia nessa língua que poucos países sabem falar.
De toda a sua obra, qual lhe deu mais prazer de escrever?
Foi a Literatura do exílio ou os Males da ausência. Foi um grande ensaio de 715 páginas. Foi uma pesquisa que tinha começado nos EUA, depois prosseguiu na França, na Alemanha. Foi a primeira, a mais importante, e foi o tempo em que eu mais sofri. A minha própria mãe vinha e me via no escritório chorando. Você se afastar de sua terra, de seus entes queridos. Ser exilado é terrível. Exilado você perde o sentido de sua localização no mundo. Você não sabe mais em que situação se encontra, que língua você ouve. Foi o livro que mais me marcou por aquilo que sofri em fazê-lo. A mais terrível das solidões é a do exílio, da pátria. Monteiro Lobato sofreu isso. Quando exilado na Argentina, ele estava tão infeliz, que um dia ouviu um casal falando português. Saiu correndo atrás dele, pois a saudade da língua portuguesa era grande. Como existe entre você e a sua língua uma amizade grande com a própria língua. Tanto que você vai gostar de algumas palavras mais do que outras. Eu mesma às vezes converso com elas e digo: ‘Sai pra lá palavra, você é muito antipática’. Mas você e a sua língua são um único, a língua é a própria alma. É o que nos dá vida, nos traz para o outro. Você fala que gosta de sua mãe, ou de um prato. A sua língua é o seu corpo pedindo socorro em qualquer circunstância que esteja, quando você tem fome, quando tem solidão, em todos os momentos, a sua língua está ali. A coisa só existe a partir do momento em que há a palavra. Sem ela, não existe. O mundo é feito de palavras. A palavra é ação, é vivência, é a vida interior, é gostar mais de música do que de literatura, ou gostar de ambas, pois literatura sem música não é literatura. A língua deve ser ritmo, daí a beleza da língua. Cada um de nós tem um ritmo de fala. Você reconhece a fala do outro por causa do ritmo. Somos seres que temos um ritmo para nossa própria vida, uma forma de andar na rua.
Literatura e música são faces da mesma moeda?
Essa moeda se chama arte. A arte se envereda pela arte da palavra, que tem de ter um ritmo, tem de ter música, senão fica horrível.
Que tipo de pesquisa exige a sua obra?
É preciso que você pegue e veja a bibliografia para entender o que precisa ler para enfrentar um livro como aquele. Sempre li muito. O ensaio sobre a literatura no exílio foram oito anos. Estive no maior arquivo do exílio do mundo, a biblioteca da Alemanha.
Ano novo, vida nova (1971)
Embora escrito em português, o romance em primeira pessoa é quase bilíngue. A personagem-narradora Patrícia, uma mineira envolvida num caso amoroso com um francês casado, reflete sobre a possibilidade de escrever a sua história de amor. O duplo registro, ora em português, ora em francês, confere ao texto um caráter de charada, de enigma, de metalinguagem. A história, ricamente composta pelos cenários das cidades europeias, especialmente Paris, traz outros detalhes importantes recriados com requinte, como a referência à culinária e à literatura.Homem de sete partidas (1980)
A narrativa é construída em roteiros para as terras sul-americanas. Bernardo é um personagem que busca o tio desaparecido para lhe desvendar a vida e conhecer-lhe as aventuras. A partir desse pretexto, a escritora navega sobre os campos da América Latina em mapa riscado para conduzir o narrador e leitor a uma viagem por entre as andanças de um andarilho.Joaquina, filha do Tiradentes (1987)
Por meio da narrativa da filha de Tiradentes – até então ignorada pela história – Maria José de Queiroz reconstrói em Joaquina, filha do Tiradentes a vida colonial cotidiana do século 18. A Inconfidência Mineira é o contexto em que ficção e história se articulam e revelam o melancólico destino da herdeira do “sal e da infâmia”, do condenado de Vila Rica. Esse romance histórico constitui um percurso consciente e intelectualmente elaborado pela romancista, em trama que privilegia o passado de Minas.Os males da ausência ou A literatura do exílio (1998)
A literatura do exílio é ensaio de 714 páginas, resultado de oito anos de pesquisa da autora, movida pelo desafio de recuperar o percurso de dores e sofrimentos da própria história do homem, em suas dramáticas e, pelas circunstâncias, inevitáveis escolhas. De Adão e Eva expulsos do paraíso é longo o itinerário de exílios e males da ausência, que percorrem com o desterro, o círculo do inferno, de dores e ausências.
O livro de minha mãe (2014)
Nesta obra, Maria José de Queiroz recupera a infância, a perda do pai, ainda criança, a fibra e a coragem da mulher forte que foi Honória, sua mãe. A poesia, a música, as histórias de Minas – eis o elo que une mãe e filha, em simbiose. Inscrita na longa tradição de escritores que, no luto, tentam explicar a grande falta que é a morte da mãe, a autora ecoa os fragmentos de Diário do luto, de Roland Barthes, em que o escritor trata de “uma dor absurda, impossível de contornar”. De forma mais expressiva, entoa, em dueto com Alberto Cohen, autor de Le livre de ma mère, “uma noite com palavras”, a celebração da mãe, de todas as mães.