“Leila, sufocada, permaneceu muda. Petrificada. Uma estátua feita de pavor e angústia. Mergulhada numa tristeza profunda.” Leila é uma criança, aliás, um filhote de jubarte. Sofrera abuso sexual de seu vizinho, o polvo, chamado Barão, esse bicho sedutor que, nas imagens, se apresenta não com oito tentáculos, mas com cinco, à semelhança de uma mão. Furtiva e inesperadamente, o polvo corta os longos cabelos que o filhote tanto amava e, sussurrando em seu ouvido, despeja “algo podre”, ao mesmo tempo em que lhe adverte: “Pequena, o que aconteceu aqui será nosso segredo!”.
Tal violência se passa quando a baleia, sentindo-se feliz, livre e dona de si, anunciara à mãe: “Vou ali nadar e já volto!”. O choque, seguido de dor aguda e perda da capacidade de se expressar, a arrasta para as águas profundas e escuras. É apenas com o apoio dos amigos que Leila é resgatada e, aos poucos, recupera as forças para enfrentar o agressor e denunciar o que sofrera. Leila rompe o pacto do silêncio tão comum entre o abusador e a vítima. Carregará a marca do trauma, mas dele se liberta.
É por meio de metáforas que o escritor Tino Freitas e a ilustradora Thais Beltrame apresentam Leila (Editora Abacatte), livro que aborda o abuso sexual na infância. As imagens em nanquim aguado e aquarela se articulam com o texto escrito e constituem uma obra de arte à parte, em completa sintonia com a narrativa escrita – ora densa, difícil, dolorida; ora leve e libertária. Trata-se de literatura infantil, que, com sutileza, enfrenta o tema difícil, delicado, em geral submerso em relações de violência física e psicológica que se estabelecem com mais frequência do que se imagina entre o agressor e a criança.
As estatísticas do Disque 100, por exemplo, mostram que, só no ano passado, foram registradas 17.093 denúncias de violência contra menores de idade, das quais 13.418 (78,5%) de abuso sexual. Mas foram também registradas 3.675 (21,5%) denúncias de exploração sexual. Os dados ainda mostram uma cruel realidade: mais de 70% dos casos de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes são praticados por pais, mães, padrastos ou outros parentes das vítimas. Em mais de 70%, a violência foi cometida na casa do abusador ou da vítima.
Pactos de silêncio que se impõem em casos de abuso sexual entre a vítima e o agressor são temática clássica, sobre a qual se debruça a obra Ecos do silêncio: reverberações do traumatismo sexual (Editora Blucher, 2017), organizado pela professora e pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Cassandra Pereira França. A obra traz textos de pesquisadores de diversas instituições brasileiras e da Universidade de Buenos Aires (UBA), parceira do Projeto Cavas (Crianças e Adolescentes Vítimas de Abuso Sexual), vinculado ao Departamento de Psicologia da UFMG. Nessa coletânea, os psicanalistas Flávio Ferraz, livre-docente pela USP, e Eugênio Dal Molin sustentam que o traumatismo sexual é da “ordem do indizível”. Diferentemente da concretude de um acidente de trânsito ou de um incêndio, o abuso sexual não tem concretude para sustentar narrativa. Segundo eles, exatamente por isso, traumas desta ordem, em geral, só são recuperados pela pessoa na vida adulta. Nesse sentido, psicólogos e psicanalistas precisam desenvolver uma escuta sensível para recuperar no discurso do paciente adulto as pistas dos maus-tratos sofridos na infância.
INSPIRAÇÃO REAL
Quando constrói a história de Leila, a primeira restrição de liberdade que Tino Freitas aborda é a da palavra: a jubarte, que sofre a violência sexual, não se sente livre para dizer o que sente. Foi pensando em dar voz às vítimas e trazer a informação às crianças de uma forma sutil e lúdica que Tino Freitas decidiu abordar essa temática. Para tanto, o autor se inspirou na vida de duas mulheres. A primeira foi a nadadora Joanna Maranhão, que em 2008 revelou ter sido molestada sexualmente aos 9 anos por seu treinador. O caso estimulou a aprovação de projeto de lei no Congresso Nacional que alterou o Código Penal, estabelecendo que o prazo de prescrição de abuso sexual de crianças e adolescentes seria contado a partir da data em que a vítima completa 18 anos. Sancionada em 2012, a matéria foi batizada de Lei Joanna Maranhão.
“O livro é a história de uma baleia que sofre abuso. Ponto”, conta Tino Freitas. Não à toa, logo no início da história, quando veste o seu biquíni e se despede da mãe, o filhote de jubarte diz, em referência à história de Joanna Maranhão: “Vou ali nadar e já volto!”. Mas a interação da história com o nome da baleia tem a ver com a questão da mulher determinada, consciente dos seus atos, algo forte e presente na segunda mulher que o inspira: a atriz Leila Diniz (1945-1972), símbolo da revolução feminina, que rompeu conceitos impostos à mulher, escrava de certos papéis sociais que a impediam de amar livremente e ter prazer sexual.
Quando após sofrer a violência Leila reencontra e enfrenta o polvo abusador, grita: “Sou uma baleia livre”, frase clássica da atriz, que, ao dizer “sou uma mulher livre” reiterava: sobre o meu corpo, sobre o que penso, ninguém pode mandar. “Essa frase da Leila Diniz me inspirou para arredondar essa discussão em torno da liberdade necessária para que a pessoa possa verbalizar as suas dores, livrando-se da prisão na dor, situação que causaria mais danos”, afirma o escritor.
A história de Leila introduz outras metáforas ilustradas para abordar a violência sexual e na dor encerrada pelo silêncio da vítima. “Há nas ilustrações do livro várias ostras. É como se estivéssemos dizendo que estamos narrando uma história, mas há outras similares que precisamos conhecer para construir uma força maior”, justifica Tino. A metáfora da ostra aborda a interação com a adversidade, a dor e o invasor. E há também a metáfora do lixo. “Você folheia o livro e há ilustrações de sapato, pneu, guarda-chuva e várias coisas que vão aparecendo no decorrer do livro. Mas quando a baleia reencontra o polvo, ele está no lugar ao qual pertence, o lixo do homem. E quando vai preso está preso nesse lugar”, explica Tino. Portanto, o lixo, diferentemente do resíduo que é reaproveitado, não serve para nada, deve ser jogado fora.
LEILA
De Tino Freitas e Thais Beltrame
Editora Abacatte
52 páginas
R$ 44