Jornal Estado de Minas

Romance de Betty Milan conta o drama de um patriarca obrigado a sair do seu país

Amrika. “O imperador dos trópicos havia convidado a todos, independentemente do credo e cor.” Esperança. Uma oportunidade, uma tábua lançada ao náufrago, que requeria a longa insalubre e arriscada travessia pelo Mediterrâneo e pelo Atlântico. Era lançar-se ao desconhecido ou permanecer na aldeia, onde o declinante Império Turco-Otomano impunha mais terror às famílias, quando não promovia o recrutamento forçado de homens às fileiras de um exército pressionado por intensas e periódicas guerras, não apenas externas, entre as quais contra o Império Russo, mas também, por constantes revoltas internas. Desesperadas, mães empurravam os filhos homens para a emigração. “Vai embora, a mãe me disse com os olhos incendiados pela determinação.” As palavras não ditas saem em cascata: vá já, como der, a pé, com o burro, põe a sela e vai. E se argumento em contrário houver, ela arremata: “Se você não for embora, Omar, eu me mato”.



Em momento algum de sua narrativa, a escritora e psicanalista Betty Milan, autora de Baal – Um romance da imigração, lançado pela Record, nomeia o país em que a história se passa. Tampouco faz registro cronológico de datas. E o faz para assinalar o direito fundamental e universal do ser humano à partida e à chegada, em busca de sobrevivência ou que sejam melhores condições de vida. Para isso, joga-se a um abismo de adversidades de uma travessia inóspita. “O nome do país, não digo de propósito. O que importa não é ser deste ou daquele, e sim o fato de você ser obrigado a deixar o lugar onde vive, fazer depois a travessia, correndo o risco de não sobreviver.”

Betty Milan não diz. Mas dúvida não há. Estamos falando do Líbano, país de nossos ancestrais, mais especificamente de alguma das pequenas aldeias encravadas no Vale do Bekaa, acalentado a Oeste pelo Monte Líbano e, a Leste, pelas montanhas Anti-Líbano. O relato que se constrói da boca do morto Omar retrocede às duas últimas décadas do século 19, quando o Brasil, confrontado pela pressão britânica para pôr fim à escravidão – que só seria abolida em 1888 –, incentiva a entrada de imigrantes para atender à demanda por mão de obra nos cafezais pujantes. Se europeus fossem, a imigração também atendia às teses eugenistas – racistas – de gradual “branqueamento” de uma população com grande presença de pretos, mulatos e índios.

“A memória é a condição da paz”, diz a autora. E é assim que o morto Omar cercou a família de luxo e riqueza, poupando-a dos horrores e dificuldades de sua travessia de 34 dias na cozinha de um navio insalubre, cheio de ratos, em que a comida é feita com água do mar. Entre os passageiros amontoados, um morre de doença contagiosa e outro se suicida. É uma trajetória de abandonos: seja à própria sorte, seja de afetos. Para alcançar Amrika, nesse caso o Brasil, Omar deixa a mãe, a tia e a mulher que ama. Não tem dinheiro, assiste ao companheiro de jornada Amin adoecer na nova terra – possivelmente São Paulo, onde se choca com a brutalidade com que os escravos são tratados. Ao mesmo tempo, encanta-se com as frutas tropicais, as florestas, a vegetação, e entrega-se a belas mulheres, hábito que possivelmente manteve ao longo de sua vida, mesmo quando, já estabelecido e bem de vida, traz a mãe, a tia e a mulher que ama ao Brasil. Em decorrência da sífilis, Omar só teria uma filha.




'JOIA DO ORIENTE E DO OCIDENTE'


Quando Aixa nasce, Omar, que começara como mascate, já se tornara um homem rico. Para a família, constrói um palacete, verdadeira “joia do Oriente no Ocidente”, onde a vida se desdobra cercada de luxo, abundância e generosidade aos necessitados. Muitas das festas são organizadas para recepcionar imigrantes. O palácio chama-se Baal – nome do romance –, referência implícita ao deus de origem semítica, associado aos fenícios, à fertilidade, mas também à destruição. E Aixa, a “embaixatriz” do Baal, por ser mulher, educada não para suceder e comandar a fortuna do pai, mas para assumir o papel de esposa e mãe, se casa com um homem sem escrúpulos. Com a morte do pai e depois, do marido, idosa, demente, tem o próprio destino nas mãos dos filhos. O mais velho, ganancioso e perdulário, xenófobo – nega a própria ascendência – ludibria a mãe forçando-a assinar a doação do palacete, que ele pretende demolir.

Aixa é removida à força de Baal e encarcerada num cubículo, onde tem delírios. Seja Omar, narrador da história, um fantasma em dimensão qualquer; ou mesmo seja ele uma abstração ou memória afetiva daqueles que o conheceram, a questão é que a amnésia assombra. Empurra uma vida “ao fundo negro do esquecimento”, ao vazio, ao nada. É ainda mais profundo o tormento de Omar face à situação de abandono em que se encontra a já desmemoriada Aixa, que tem por única companhia a fiel Nádia, também imigrante, e um cão. Aixa poderia bem chamar-se Aida: em árabe, “aquela que retorna” e ressurge da ópera de Giuseppe Verdi, composição de 1870, em referência à princesa etíope mantida em cativeiro no Egito.

“A história da família teria sido diferente se eu tivesse falado da travessia para os meus, do custo do berço de ouro que proporcionei. Mas sempre me comportei como se a vida fosse um mar de rosas”, raciocina Omar, em revisão e autocrítica de sua vida e do memorial da imigração, que desejara ter legado com o Baal. E é assim que o morto, que paira sobre o mundo dos vivos, sem encontrar a paz – sem história e com o palacete em ruínas – decide registrar a sua trajetória. Busca, dessa forma, se reconciliar com a memória. E grafar, entre vivos, a sua passagem.



O título da obra de Betty Milan remete a Baalbek, que assim como Zahle e o vilarejo de Monte Líbano são as localidades do Vale do Bekaa, no Líbano, de onde partiram os avós maternos e paternos da autora. Em meio a paisagens que descortinam brutal contraste entre montanhas e planícies, elevam-se as ruínas exuberantes do sítio arqueológico da antiga Acrópole de Baalbek, que, muito antes do domínio romano, foi importante centro de peregrinação fenícia. Ali se venerava o Deus-Céu Baal, a sua consorte Astarte, Rainha do Céu, e o seu filho Adon. Daí a derivação do nome da cidade: Baalbek significaria “Deus Baal do Vale do Beqaa”.

Assim como o morto narrador de Baal, os avós de Betty Milan iniciaram a vida no Brasil como mascates e prosperaram. O palacete construído por seus avós no Bairro Bela Vista, em São Paulo, foi igualmente demolido. Nesse sentido, a memória se ergue sobre os escombros do esquecimento, em forte contraposição ao sítio arqueológico de Baalbek, que altivo, integra o patrimônio histórico da humanidade. Betty estudou medicina, mas se dedicou à psicanálise. É autora de mais de duas dezenas de obras, entre as quais O papagaio e o doutor (1998), em que aborda o tema da diáspora, Paris não acaba nunca mais (1996), Carta ao filho (2013), e A mãe eterna (2016).

“A minha obra diz respeito à imigração e à xenofobia, que é a razão pela qual os povos são rechaçados. Baal mostra que sem direito de asilo não existe civilização. Ouso citar um fragmento em que isso fica claro: se não fosse a guerra, eu não teria saído do meu país. O nome do país, não digo de propósito. O que importa não é ser deste ou daquele, e sim o fato de você ser obrigado a deixar o lugar onde vive, fazer depois a travessia, correndo o risco de não sobreviver. Uma desgraça atrás da outra!”, disse Betty Milan ao Estado de Minas. “Tive que tomar a decisão mais drástica … a largada ou a morte. Antes de largar, eu não imaginava o que podia ser o mar aberto, o medo de ser devorada pela água ou mesmo assassinada no navio. Sai… este lugar é meu. Sai ou eu te jogo. A lei do mais forte no navio e na terra de chegada. Volta para onde você nasceu. Como se o homem fosse obrigado a viver no país natal. A terra aqui é nossa. O mar é seu. Uma barbárie… sem direito de asilo não existe civilização”, completa.




TRECHO DO LIVRO

“Henrique Salem... pente fino/pente grosso/colarinho pro pescoço... E o pau do Henrique é fino ou grosso?
Quatro meninos deitaram o infeliz no chão do pátio e um quinto tirou a calça dele gritando Henrique Salem...O bedel ouviu e socorreu. Depois, sem dar explicação, Henrique se recusou a voltar para a escola. Não vou, não vou...Quando ele enfim se abriu comigo, sem contar o fato, eu convenci meu genro a transferir o filho para outra escola. Henrique exigiu que fosse a dos mais ricos da cidade. Quis evitar assim a inveja dos colegas menos afortunados. Desde que foi agredido, ficou desconfiado e arrogante. Só anda com as pessoas do seu pequeno círculo de amigos ricos.
O pior é que ele agora não atende a mãe. Pode Aixa insistir.