“Existem livros ótimos, livros bons, ruins, péssimos e existe esse livro aqui. Eu não tô privando as pessoas de escreverem o que elas bem entenderem, o problema é que esse livro tem alguns problemas…”
É terça-feira na Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina (Alesc). Estamos em Florianópolis, no Centro Cívico Tancredo Neves, dentro do Palácio Barriga Verde. Dezessete de setembro, duas e meia da tarde. Antes de o deputado Jessé Lopes iniciar o pronunciamento acima, o presidente da sessão, deputado Júlio Garcia, havia saudado a Câmara Municipal Mirim do município de Pinheiro Preto, formada por estudantes, em média, entre 11 e 17 anos. Em seguida, o deputado Padre Pedro Baldissera reconheceu a importância da Romaria da Terra e das Águas, que no domingo anterior reunira mais de 10 mil pessoas em São José do Cerrito. O orador seguinte é Jessé Lopes, que falava sobre livros. Jessé havia se dirigido ao púlpito, assumira o microfone e, odontólogo de formação, revelava duas facetas antes ocultas: as de educador e crítico literário.
“…esse livro tem alguns problemas”, continua Jessé Lopes. “O principal deles é que está no edital do vestibular para a Universidade Federal de Santa Catarina. Vou ter o desprazer de discorrer um pouco dessas lindas poesias, que estão dentro desse livro, pro seu filho que vai ter obrigação de ler para prestar vestibular. Por exemplo, ‘Era uma vez uma mulher que não perdia a chance de enfiar o dedo no ânus. No próprio ou no dos outros. O polegar, o indicador, o médio, o anular ou o mindinho’. Espero que vocês não estejam se sentindo mal, porque isso aqui é pra pessoas de 16, 17 anos”, diz Jessé, parecendo não se importar com a presença dos membros da Câmara Mirim, alguns ainda mais novos. “Tem outro poema: ‘Um útero é do tamanho de um punho. Num útero cabem capelas. Cabem bancos, hóstias, crucifixos. Cabem padres de pau murcho. Cabem freiras de seios quietos’. Olha, não tem problema nenhum que a gente expresse o que temos vontade, desde que não façamos como obrigatoriedade de estar levando isso para alunos, alunos em formação, que precisam de coisas de qualidade, coisas que vão levar para a vida. É lamentável pessoas que têm a condição de escrever uma coisa dessas aqui. Deputado Ismael, você que é devoto de Jesus Cristo, imagina a minha cara de idiota pedindo esse livro na livraria.”
“Parabéns, deputado Jessé, pela intervenção”, congratula o deputado Ismael dos Santos. “Lamentamos esse tipo de literatura que em nada constrói um país cidadão.”
“Não sei por que o aluno precisa saber que tipos de objetos podem ser introduzidos nas genitálias e qual a importância disso para a ciência”, comenta a deputada Ana Campagnolo, mostrando ter faltado às aulas de literatura. Tivesse reparado no poema, notaria que os versos tratam, muitas vezes, de metáforas e nem sempre de objetos reais concretamente introduzíveis nas genitálias. Ou ela acha que dá para realmente introduzir bancos e capelas na genitália de alguém?
“É um desrespeito com o cidadão que vai à igreja e é devoto de Jesus Cristo”, pondera Jessé. “Está ferindo todos os valores cristãos e obrigando todos os alunos a lerem isso”, acrescenta indignado, esquecido de que o Estado é laico.
“Literatura de péssima qualidade”, vaticina o deputado Bruno Souza, outro que subitamente parece ter meditado sobre critérios literários.
E a moção de repúdio vai à votação.
Encerrada a cena, peço desculpas ao leitor por fazê-lo ler tais diálogos. A verdade é que não os inventei, eles aconteceram. Naquela data, foi proposta na Alesc uma moção de repúdio à adoção do livro Um útero é do tamanho de um punho no vestibular da UFSC. Ou, como o deputado orador da sessão chegou a dizer, Meu útero é do tamanho de um punho.
O livro de Angélica Freitas, lançado pela Cosac Naify em 2012, talvez seja o que mais carreguei pelos mais de 10 estados do Brasil onde já ministrei oficinas de escrita. Algumas incluíram jovens. Costumam ficar animadíssimos ao conhecer a poesia irônica e provocativa de Angélica, seu tom ferino, porém sereno, e a indagação de que seus poemas fazem em torno do que é ser mulher na sociedade hoje. Mulheres fora do padrão construído, mulheres que desejam de maneiras diversas, que desejam coisas diferentes, e como são olhadas e tratadas. Ora, se as diferenças entre as pessoas e as maneiras como são tratadas não são importantes para ser mostradas a quem está em formação, o que mais seria? Alguns jovens até ficam agitados – querendo fazer poesia – ao descobrir, no livro, a inspirada sessão de poemas feitos a partir de buscas no Google. É esse tipo de descoberta que a lamentável moção de repúdio busca impedir.
Que adolescentes conheçam a diversidade na poesia, uma poesia tão fértil que alguém de mentalidade regressiva infelizmente queira restringir sua circulação, é algo que só podemos louvar. O triste é termos de conviver com agentes de poder cujos discursos não expandem nada, não têm nenhum interesse pela vida, por suas possibilidades, pela diferença, e apenas celebram a si mesmos, em seu marasmo e amargura
Felizmente, Um útero é do tamanho de um punho, segundo livro de Angélica Freitas, recentemente reeditado pela Companhia das Letras, vem cumprindo papel especial dentro da literatura contemporânea brasileira. Tornou-se um clássico dos nossos tempos, influenciando parte significativa da poesia publicada nos últimos anos. Lá fora os leitores também se entusiasmaram com o trabalho da poeta. Seus poemas foram traduzidos para Estados Unidos, Alemanha, Espanha, França e México, entre outros. Volta e meia ela é convidada para festivais nacionais e estrangeiros. Sabemos, no entanto – basta olhar o semblante de alguns no poder –, que eles odeiam o entusiasmo. Odeiam a descoberta. A diferença. Se há algum lema que os guia, é: continuaremos sempre os mesmos.
Em nome de continuar sempre os mesmos, recusam-se até a estudar. E depois vêm falar de escola e universidade… Com qual autoridade? Se recorressem a Freud, por exemplo, saberiam que a sexualidade está já presente na criança. Obviamente, não como a dos adultos, isso está posto. Mas, mesmo tendo boas condições, trabalhando em cargos relevantes, eles não estudam. Estudar seria um perigo: estudar muda. E eles não podem mudar. Mudar é um risco às suas crenças. Aferram-se a elas. Acreditam, assim, parecerem respeitáveis e durões, quando, de fora, percebemos o arremedo de ressentimento e fragilidade. Não seria problema, se o papel ao qual se prestaram não afetasse nossas vidas, a arte, a cultura e a educação no país.
Nesse caso, talvez o problema seja a sexualidade da mulher – e haver uma mulher que escreva sobre o corpo sem que ele passe por certo prisma do prazer masculino heterossexual, mas sim, quando o faz, pelo que ele tem de opressivo. Para o deputado, “é lamentável pessoas que têm a condição de escrever uma coisa dessas”. É o que ele disse, direcionando sua fala não só para a obra como para a autora. Triste.
O cerceamento ao imaginário parte de quem se ressente da vida vivida de uma forma que eles não vivem. Uma mulher que gosta, é o horror para esses tipos. Como demonstrou recentemente o prefeito carioca, pastor Marcelo Crivella, ao menosprezar sentença oficial de uma juíza porque a juíza gosta de usar vestidos, manter seu cabelo arrumado e fazer tatuagens:
“A juíza tem seus 40 anos e é muito bonita. Uma beleza de parar o trânsito, mas não precisa praticar, né? Não precisa praticar. Interessante, porque é difícil encontrar mulher teimosa. Isso é raro, não é gente? Normalmente, elas concordam, né? Normalmente…”
Nota-se como precisamos ler Angélica Freitas. Dava até para fazer um poema com isso. Um poema, como alguns do livro, que expusesse a indigência mental, a pobreza da visão de mundo, a sensibilidade tosca de certos sujeitos. Um poema que impactasse, ao escancarar discursos que procuram cercear o outro. A poesia, pelo contrário, não procura cercear, ela é via de contato com o outro. Outra linguagem, outras ideias, sensações. Outras formas de olhar para as coisas, os corpos, as palavras, para si mesmo. E para a própria poesia. Que adolescentes conheçam a diversidade na poesia, uma poesia tão fértil que alguém de mentalidade regressiva infelizmente queira restringir sua circulação, é algo que só podemos louvar. O triste é termos de conviver com agentes de poder cujos discursos não expandem nada, não têm nenhum interesse pela vida, por suas possibilidades, pela diferença, e apenas celebram a si mesmos, em seu marasmo e amargura.
No dia seguinte à sessão na Assembleia, a moção de repúdio foi aprovada.
Uma canção
popular (séculos 19-20)
uma mulher incomoda
é interditada
levada para o depósito
das mulheres que incomodam
loucas louquinhas
tantãs da cabeça
ataduras banhos frios
descargas elétricas
são porcas permanentes
mas como descobrem os maridos
enriquecidos subitamente
as porcas loucas trancafiadas
são muito convenientes
interna, enterra
*Leonardo Villa-Forte é autor de Escrever sem escrever: literatura e apropriação no século XXI (ensaio/teoria), O princípio de ver histórias em todo lugar (romance), O explicador (contos) e Paginário (intervenções urbanas)