Jornal Estado de Minas

ENTREVISTA

Milton Hatoum: 'Literatura é um antídoto à miséria do mundo'


Para Milton Hatoum, escrever é escavar. Lembranças, impressões, imagens fragmentadas vêm à tona no exercício da escrita. Em seus romances, ele revisita sentimentos ilhados, aparentemente mortos, que voltam a assombrar seus personagens (e, provavelmente, também o escritor). Não é diferente em Pontos de fuga (Companhia das Letras), segunda parte da trilogia O lugar mais sombrio, iniciada em 2017 com a publicação de A noite da espera.


Se há uma mudança geográfica no espaço ficcional, com a transferência de Brasília para São Paulo, a excelência da narrativa epistolar sobre um grupo de jovens à sombra da ditadura militar é preservada, talvez até ampliada no volume que chega às livrarias na primeira semana de novembro. “No fundo, quis fazer uma pesquisa ou sondagem da vida de personagens, num ambiente político truculento”, diz o autor de romances como o premiado Dois irmãos e Relato de um certo Oriente (que acaba de completar 30 anos).

A seguir, uma entrevista com o autor, nascido em 1952, em Manaus, e que, como o seu protagonista, Martim, estudou arquitetura na Universidade de São Paulo nos anos 1970.




Quais as principais diferenças entre A noite da espera e Pontos de fuga?
Há, primeiro, uma mudança do espaço romanesco. A noite da espera se desenvolve em Brasília e nas cidades satélites. No Pontos de fuga, a ação é ambientada em alguns bairros de São Paulo, centros simbólicos do romance. A tribo de Brasília se desfez, mas alguns personagens reaparecem em São Paulo, formam um novo grupo numa república de estudantes. As histórias do Pontos de fuga falam dos conflitos particulares dessa república.

Quais os avanços, no novo livro, na educação sentimental e social de Martim?
As relações afetivas do Martim com a mãe (Lina), a namorada (Dinah) e o pai (Rodolfo) são aprofundadas. De um modo geral, Pontos de fuga narra a passagem da juventude à maturidade, e não apenas a do Martim. É quando a vida ultrapassa uma linha de sombra, e muita coisa fica para trás: a ingenuidade, as ilusões, algumas ambições... A vida numa comunidade rompe o isolamento de Martim, mas é na solidão que ele elabora sua escrita, as memórias que está reescrevendo em Paris. Cada personagem reflete sobre si mesmo e sobre os outros. No fundo, quis fazer uma pesquisa ou sondagem da vida de personagens, num ambiente político truculento.



“Eu precisava ler durante a viagem, ler para não enlouquecer.” Também pode ser um caminho para enfrentar o Brasil de hoje? Ler para não enlouquecer?
Sim, para quem gosta de ler... Ou para os que podem ler. A leitura pede tempo, concentração e reflexão. Muitos brasileiros não têm tempo para ler, ou não tiveram uma formação educacional que os possibilite ler bons livros. A leitura depende da educação. Para milhões de jovens de famílias pobres, filhos de desempregados ou de pais que vivem precariamente, a leitura de um bom livro só pode ser feita na escola pública. De certo modo, os dois volumes da trilogia falam da formação de leitores, pois cada personagem expõe suas leituras preferidas, e alguns se amparam nos livros lidos. A leitura pode ser um dos antídotos às adversidades e à miséria do mundo e, ao mesmo tempo, uma possibilidade de refletir sobre isso.

“Até o câmpus, meu único refúgio, era um lugar arriscado, fortaleza frágil.” Como vê a universidade nos dias de hoje? Refúgio do conhecimento? Uma frágil fortaleza?
Grande parte da melhor pesquisa científica é feita nas universidades públicas, um dos alvos do atual governo, que trata estudantes e professores como baderneiros ou inimigos. É um absurdo. Esse governo se recusa a entender que o crescimento econômico sustentável depende do ensino e da pesquisa de qualidade. Durante a ditadura a ameaça era física, e isso é abordado nos dois romances. Hoje, o corte de verbas destinadas à educação, as acusações descabidas e acintosas, e as ameaças nem sempre veladas têm como objetivo provocar uma morte lenta das instituições de ensino e pesquisa. Mas a universidade pública será sempre um centro irradiador de conhecimento, de reflexão, de produção de pesquisa e saber. Os estudos e pesquisas científicos, as artes e a literatura são formas de resistência à barbárie, e não apenas no Brasil.



Em passagens diferentes, há reflexões e afirmações sobre o poder da memória: “Tua memória sabe esconder certas coisas”. “Talvez o esquecimento seja mesmo uma das formas de memória.” “A memória é uma voz submersa, um jogo perverso entre lembrança e esquecimento.” A memória é matéria-prima para a criação? A literatura também pode ser vista como um jogo, ainda que não perverso, entre lembrança e esquecimento?
Sim, um jogo de que participam narradores e personagens, peças que se movem num espaço-tempo de conflitos, ou num ardiloso tabuleiro de xadrez, como aparece num grande poema de Jorge Luis Borges: “Que deus detrás de Deus o ardil começa/de pó e tempo e sonho e agonias?”. Aliás, uma das frases citadas na pergunta é um verso de um poema desse escritor argentino, cuja obra é glosada em outras passagens do romance. Certos episódios e cenas do passado são parcialmente esquecidos, mas são justamente os lapsos ou lacunas que dão força à imaginação. O passado não deve ser esquecido. Ele renasce na literatura e em outras linguagens, mas sempre em sintonia com o nosso tempo.



“Por que os brasileiros prometem tanto?”, pergunta um estrangeiro. Somos um país de promessas? Frustradas ou cumpridas?
As promessas de quase todos os políticos são armas eficazes do populismo, essa praga tão recorrente na política, e não apenas na América Latina. Brasília foi uma promessa que se cumpriu, ou uma utopia realizada, como diz o personagem Sergio San. Mas foi também em Brasília que aconteceu “o toque militar de recolher”, como afirma o mesmo personagem. A ditadura destruiu o projeto educacional de Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira, frustrou todas as promessas de um futuro mais civilizado.

“O exílio é uma aprendizagem, uma prova difícil de adaptação, mas qualquer pessoa pode se sentir no exílio em seu próprio país.” Você já se sentiu exilado no Brasil? Quem são os exilados em nosso país?
Milhões de brasileiros que vivem precariamente sonham em viver em outro país. Em 1905, quando Euclides da Cunha fez uma longa viagem à Amazônia, escreveu que os seringueiros eram “expatriados em sua própria pátria”. No romance, há personagens que partem, sem desejar ir embora. E há também os que, mesmo constrangidos, preferem permanecer em seu lugar. São temas do Pontos de fuga. A própria literatura é uma forma de exílio.

“Alguém se livra do medo?”, pergunta um dos personagens. Qual o seu maior medo, como escritor? E o que você faz para tentar se livrar dele?
O desejo e o prazer de escrever prevalecem sobre o medo. Sinto insegurança, mas me esforço para que a narrativa me agrade. Somos o primeiro leitor do que escrevemos. 



“A cada 20 ou 30 anos, Moloch troca de cara”, diz um dos personagens, o Nortista, em carta datada de 1980. “Serão novos tempos de errância, pesadelos em plena vigília, desonra do corpo e da mente. Ainda assim, há esperança, amargura e euforia, tudo misturado. O eterno ditirambo do Brasil. Violência, sofrimento, risadas. Promessas, imposturas...” A profecia do Nortista se concretizou?
O Nortista escreve em 1980, mas ele intuía, ou sabia que na história da nossa República a democracia é ameaçada a cada 20, 30 anos. Não houve no Brasil uma verdadeira revolução burguesa. A Revolução de 1930 foi uma reforma de setores da elite. Não houve mudanças profundas. As questões estruturais do Brasil não foram resolvidas em nenhum governo. Houve algumas conquistas na área social, na educação, mas os vícios e iniquidades permanecem vivos: o patrimonialismo, a violência, o mandonismo, o conluio vergonhoso entre os três poderes, o descaso por uma educação pública de qualidade, a falta de saneamento básico e de um projeto digno de habitação social.

“Como viver num tempo trágico e numa terra trágica?”, pergunta o Nortista. Você tem a resposta?
Não. Suponho que o Nortista tampouco tenha. Mas a ausência de uma resposta pode ser preenchida pela ficção, que não responde a nada, mas sempre indaga, com a perplexidade de quem entra num labirinto e não vê saída.

Pontos de fuga termina com a chegada dos anos 1980. Quais características da década de 1970 acredita que foram representadas nos dois primeiros volumes de O lugar mais sombrio? E como a década de 1980 será enfocada na terceira e última parte da trilogia?
Os dois romances aludem a uma busca pelo sentido de vida de uma parte da minha geração. Uma parte pequena, porque a maioria dos jovens daquela época não participava do movimento estudantil nem estava ligada na política. O desafio para os personagens era lidar com a opressão do Estado e da família, e como enfrentar ou driblar essa opressão, sem nunca renunciar ao amor, que ocupa um lugar central nos dois romances. Como sempre, era a liberdade que estava em jogo, e isso serve para todo sistema autoritário, de qualquer matiz ideológico. Tentei encontrar uma forma que desse sentido à vida e à experiência histórica. As artes e a literatura sempre traduzem um anseio libertário, são movidas pelo devaneio e pela imaginação solta. A tribo de Brasília era formada por atores e atrizes, como se o teatro fosse a metáfora de um desastre inevitável.  Na verdade, a personagem Dinah é a única verdadeira atriz, no palco e na vida. O último volume é narrado por uma personagem feminina, que aparece no Pontos de fuga. Na história que ela conta, estão latentes o consumismo e o individualismo exacerbados dos anos 1980. É a época da ideologia triunfante de Thatcher e Reagan, cuja versão mais cruel e violenta na América do Sul foi o neoliberalismo do ditador Pinochet. Não por acaso o Chile está em chamas.



PONTOS DE FUGA
de Milton Hatoum
Companhia das Letras
240 páginas
R$ 49,90 

Três perguntas para...

Stefania Chiarelli

Pesquisadora de literatura brasileira contemporânea, professora de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense e autora do livro Vidas em  trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum (Annablume,2007)

Como a anunciada trilogia O lugar mais sombrio, iniciada com A noite da espera (2017) e que chega ao segundo volume, Pontos de fuga, se insere na obra de Milton Hatoum?
Hatoum nunca escondeu ser a memória o motor de sua escrita. Sondar o passado, dar a ele novos sentidos, sempre foi a tônica de sua produção ficcional. Leitor atento de Machado de Assis e Graciliano Ramos, o autor exercita essa tradição memorialística em sua prosa. A noite da espera, que discute diretamente a ditadura militar, não se afasta disso, mas deslocou o eixo amazônico presente em Relato de um certo Oriente (1989) e Dois irmãos (2000) para Brasília e Paris – cenários explorados no romance. Além do mais, a anunciada trilogia, como projeto literário, causa curiosidade e merece atenção por propor uma espécie de tríptico em que se farão presentes questões diretamente relacionadas ao cenário político brasileiro e dialogar diretamente com a atualidade. O momento pede uma literatura participante.

Relato de um certo Oriente completou 30 anos em 2019. O que o romance de estreia, por você estudado em Vidas em trânsito, representa para a obra do escritor manauara?
No final dos anos 1980, Hatoum faz sua estreia no cenário literário brasileiro com uma obra que de cara recebeu a chancela da crítica, sendo bem recebida no meio acadêmico. Para o chamado leitor comum, o romance deslocou o interesse do previsível eixo Rio/São Paulo para outras geografias, já que a narrativa transita em uma certa Amazônia, onde vivem personagens oriundos de um certo Oriente, profundamente marcados pelo convívio com a população local. Ou seja, não se encontra ali uma generalização do índio, ou do imigrante libanês, ou mesmo do brasileiro, mas uma mistura muito particular de todos esses elementos, o que confere a essa narrativa um lugar ímpar em nossa literatura. Falando em lugar, esta é outra questão relevante: a dicção, o tom encontrado pelo escritor dialoga com uma linhagem da prosa literária brasileira, que o coloca próximo de autores como Raduan Nassar e Lúcio Cardoso. Não à toa, criadores que mergulharam fundo nos abismos familiares e nas tramas de um patriarcado em ruínas. Nada mal: são grandes autores.

Como a literatura de Milton Hatoum ajuda a compreender os impasses brasileiros?
Creio que Hatoum traz em sua prosa a busca por dizer algo sobre a sociedade brasileira, suas origens e autoritarismo. Fugindo da doutrinação, essa literatura nos diz muito sobre nosso país e nosso tempo. São crianças indígenas criadas "como se" fossem de casa, mulheres silenciadas pelo machismo dos maridos, imigrantes a nos mostrar que a ideia de nação homogênea é uma ficção, filhos cujos pais transmitem heranças danosas, entre outras imagens. E Hatoum apresenta essas tramas protagonizadas por narradores que sobrevivem para contar uma história, personagens cuja ligação com a palavra lhes permite lidar com o sofrimento e a exclusão.  Em um mundo cada vez mais marcado pela retórica vazia da tolerância, em que na prática se assiste ao crescimento vertiginoso de cercas e muros, creio ser fundamental uma literatura que traga esses elementos à baila, não como mero assunto ou pauta atual, mas como drama encenado na linguagem. Como a matriarca libanesa que, na proximidade da morte, volta a falar árabe, ou a indígena que “traduz errado” de sua língua para preservar uma criança do sofrimento. Em um tempo de enorme descrédito à educação no Brasil e tamanho desrespeito aos professores, é comovente lembrar que Nael, o narrador de Dois irmãos, é o curumim que cresce como agregado de uma família de imigrantes e se torna professor, resgatando a memória familiar a partir desse lugar. Somos seres da linguagem, e nela se encontram muitas formas de resistir.



TRADUÇÃO DE FLAUBERT
(foto: Quinho)

Além de Pontos de fuga, o nome de Milton Hatoum volta à evidência nas livrarias este ano com o lançamento de Três contos (Coleção Fábula, Editora 34, 144 páginas), de Gustave Flaubert (1821-1880). Hatoum traduziu as histórias do autor de Madame Bovary, publicadas pela primeira vez em 1877, com o editor e tradutor paraense Samuel Titan Jr.. O resultado do trabalho a quatro mãos resultou em edição primorosa dos contos Um coração simples, A legenda de São Julião Hospitaleiro e Herodíade. “É uma espécie de testamento literário, histórias exemplares, não tanto pelo tom cândido e piedoso que os jornais da época quiseram ver, mas por recolherem todos os temas e preocupações do autor em sua prosa mais madura”, explica Titan Jr. na apresentação. “A precisão e o ritmo melódico da frase, sempre lapidar, o esforço de estilo, a escolha de cada palavra, a eliminação de qualquer descrição gratuita, tudo isso cria dificuldades para o tradutor”, conta Hatoum. “A linguagem de Flaubert suprimiu todos os excessos de seus antecessores ilustres: Stendhal, Balzac, Zola, embora tenha dependido deles. Numa carta, Flaubert afirmou, com sua habitual crueldade: 'Se Balzac soubesse escrever, que homem ele teria sido!'. Mas sem Ilusões perdidas, Flaubert não teria escrito A educação sentimental”, acredita o tradutor, citando outras duas obras-primas da literatura. (CM)