Belo Horizonte é uma coleção de múltiplas histórias contadas em livros por autores diversos, cada um envolvido diretamente com o tema descrito. Arraial do Curral del Rei – A desmemória dos bois é o 34º título da Coleção BH. A cidade de cada um, da Conceito Editorial, lançado neste sábado (9), nos jardins internos do Palácio das Artes. Em celebração ao projeto único no país, que completa 15 anos, e retrata uma cidade em movimento, serão relançadas as edições revistas de Cine Pathé, de Celina Albano, e Pampulha, de Flávio Carsalade.
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Segundo Sílvia Rubião, a Coleção BH tornou-se uma inesgotável crônica literária, em que a cidade é a grande protagonista. "Escolhidos sempre por sua ligação afetiva com um determinado lugar, os autores partem de suas vivências pessoais para compor um imenso painel de pertencimento e identidade. Creio que valorizamos assim, depois de 34 edições, uma cidade múltipla e diversa, que tem no patrimônio cultural uma de suas maiores expressões", acrescenta ela.
José Eduardo Gonçalves salienta que, diferentemente de uma coleção típica da historiografia, a ligação do escritor com determinado lugar, condição para que participe do projeto, oferece o olhar generoso, afetivo das memórias e vivências. É assim que Wander Piroli foi o autor de Lagoinha. Fernando Brant tratou do Mercado Central.
"À medida que os títulos começaram a chegar, fomos procurados por pessoas propondo novos livros. Temos hoje a consciência de que esta é uma coleção que não tem fim, pois a cidade está em constante movimento, sempre se refazendo, crescendo e surgindo novos lugares. Muita coisa para falar e o que escrever sobre ela", explica, adiantando que há dois novos volumes sendo escritos neste momento, um deles sobre Venda Nova.
O Arraial do Curral del Rei
Em Arraial do Curral Del Rei – A desmemória dos bois, 34º título da coleção BH. A cidade de cada um, da Conceito Editorial, Adriane Garcia aborda o encantamento com a linda cidade que nasce e, ao mesmo tempo, que se choca com o desencantamento da promessa não cumprida dos benefícios do progresso. Excludente, este chega para poucos. "O projeto de Aarão Reis se constrói como se aqui fosse tábula rasa. É violento, não considera aqueles que viviam no local, dispensa o registro de sua memória. Trata-se da planta de uma cidade ideal, desenhada, e não só os habitantes, mas também a natureza, os rios, as paisagens, vão ter de se submeter", afirma Adriane Garcia, escritora e historiadora.
Eram excelentes as condições oferecidas pelo Arraial do Curral del Rei para que ali fosse implantada a primeira cidade planejada da República: o lugar registrado nos livros de história para a fundação de Belo Horizonte estimula a imaginação do idílico. Agradável era o clima; cortadas por rios e córregos, belas eram as paisagens entre as serras do Curral e de Contagem, da Piedade e Vale do Paraopeba. Aqui, a 100 quilômetros da então capital, Ouro Preto, o engenheiro Aarão Reis arrancaria de sua prancheta, inspirado no modelo das mais modernas cidades do mundo, Paris e Wa- shington, os traçados das avenidas em diagonal.
Era o progresso, o triunfo republicano. "Belo Horizonte foi construída para ser o marco zero. E isso não é verdade, pois quando foi colocada nesse lugar existia aqui uma gente, uma história, desde o século 18. E a essa gente desse arraial, que se chama do Curral del Rei, não é dada nenhuma escolha. São despejados. E, obviamente, com a indenização que recebem, não conseguem adquirir terras na nova capital. O sonhado progresso não chega para essa população", afirma Adriane Garcia.
Censo: dois terços da população era preta ou parda
O arraial em 1897 tinha cerca de 2,6 mil habitantes, segundo registro do padre Francisco Martins Dias, autor da obra Descriptivos de Bello Horizonte, lançado em julho de 1897, cinco meses antes da inauguração da nova capital.
E é reconstituindo o contexto histórico da fundação da capital mineira, que Adriane Garcia tece em versos a teia de personagens ficcionais que habitavam aquele lugar, sobre os quais não restou memória. "O arraial, ao final do século 19, não era um lugar idílico. Era um lugar de muitos pretos, pardos e pobres, de divisão de classes, pessoas que se sentavam por grupos na igreja, conforme a sua posse", afirma Adriane Garcia. Ela observa que 25 anos antes da construção da capital, no censo de 1872, fica demonstrado que pretos e pardos constituíam dois terços da população local.
"Quando vai instalar a capital, quem está dentro do arraial vai sair. Quem está fora e tem posses vai entrar. Então, está substituindo pretos e pardos pelos brancos. É nesse sentido um projeto higienista", afirma a autora, que indaga: "Quem construiu a capital, já sabemos. Mas quero saber dos despejados. Belo Horizonte é herdeira dos despejados. E por que não se pergunta sobre a memória deles?”
Sem mãos pro trabalho, sem força nas pernas
O velho Tião, no meio da mata
Como perdeu tudo
Se não tinha nada?
Choupana de barro, batido na vara
Caindo aos pedaços, casa de cupim
Comendo farinha, molhada na água
Como perdeu tudo
Se não tinha nada?
Lá vai Tião rumo a Deus sabe quando
Lá vai sem sapatos, que Tião nunca tem
Trouxa de pano, camisa e duas calças
A roupa do corpo e a gamela quebrada
Como perdeu tudo
Se não tinha nada?
O sol escaldante, cavalo nem boi
As terras de Tião eram do coronel?
Que ainda debocha e soa a bravata:
Como perdeu tudo
Se não tinha nada?
Sinais de resistência no Arraial
"Pelos registros históricos, a impressão que fica é que quando construíram a capital disseram para as pessoas: vocês têm de sair. E elas foram. Mas houve resistência", diz a autora, que num mosaico de fragmentos encontra inúmeras pistas. Na Revista do Arquivo Público Mineiro, por exemplo, ela pinça a história do jornalista europeu Alfredo Camarate, que, tendo procurado no arraial os serviços de um alfaiate para que lhe fizesse umas calças, dele ouviu a recusa do serviço, com a gentil indicação de outro profissional, que seria "melhor e mais barato".
Adriane afirma: "O jornalista achou que tal fôra por tacanhice. Mas eu aposto em resistência: não quis prestar o serviço àqueles que chegavam para desalojá-los". Sobre o episódio, assim escreveu Alfredo Camarate: "E fui-me cismando... na balança da minha consciência, os novos bens que trará a este povo a conquista vertiginosa dos progressos do século e as antigas virtudes patriarcais deste povo, que irão esvaindo nas fórmulas positivas e interesseiras dos povos ultracivilizados. Filósofos e moralistas dirão, uns, que Belo Horizonte ganha, outros, que Belo Horizonte perde!"
Sobre a reação dos antigos moradores do Arraial do Curral del Rei face à ameaça do despejo, de fato, não há registro. Nas entrelinhas dos textos da época, a autora garimpa histórias e as transforma em versos, ao estilo de Cecília Meireles, em Romanceiro da Inconfidência:
Josina Rodrigues
A lavadeira
Esperou o último minuto
E botou uma corrente na porta
Segura à corrente, do lado de fora
Josina espera que seu ato
Pare o delegado
O delegado é compassivo
Paralisa os seus homens em fila
E lhe dá mais uma hora
Josina tem uma hora
Para tirar seus pertences
Josina tem 50 minutos
Para carregar o passado
Josina tem meia hora
Para esquecer trinta anos
Josina tem 20 minutos
Para parar de chorar
As filhas de Josina
Socorridas por vizinhos
Há muito estão na carroça
Josina tem 10 minutos
Para trazer seus brinquedos.
"Assim como na Guerra de Canudos, que acontece quase na mesma época, a fundação de Belo Horizonte também se dá sobre uma violenta política higienista. A pergunta que faço: que República é essa que nasce? E temos os mesmos vícios estruturais que são os mesmos que vivenciamos hoje", constata a autora. Para Adriane Garcia, os herdeiros dos antigos moradores do arraial, assim como os seus ascendentes despejados, ocupam hoje as periferias e favelas da capital. "São esses os herdeiros dos despejados", diz. "Estamos falando do passado, mas também do presente", afirma ela
ARRAIAL DO CURRAL DEL REI
De Adriane Garcia
Editorial
151 páginas
R$ 25