Ao longo do último século, com a expansão das metrópoles e o protagonismo dos automóveis, as ruas foram deixando de ser ponto de encontro para ser passagem. Circulam mercadorias e corpos que trabalham, num constante vaivém, enquanto o homem se enclausura cada vez mais em concreto e telas multiconectadas. Essas mudanças ocorreram de forma acelerada no período que separa A alma encantadora das ruas (1908), do cronista e jornalista João do Rio (1881-1921), e O corpo encantado das ruas, do historiador Luiz Antônio Simas, recém-lançado pela Civilização Brasileira.
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O corpo encantado das ruas é um conjunto de 42 pequenos deliciosos ensaios distribuídos em 175 páginas. Ali, Simas discorre sobre ruas, encruzilhadas, terreiros, sonoridades. Resistência e reexistência. Os textos são devorados com a mesma ânsia que as crianças avançavam sobre os saquinhos de São Cosme e Damião, cuja capa do livro imita as tradicionais embalagens de papel.
Quanto de João do Rio tem neste seu trabalho?
Simas: João do Rio é aquele personagem que está entre o amor profundo pela rua e um certo estupor. Porque, ali, a gente tinha um Rio de Janeiro que era uma cidade em combate: a de padrão parisiense, mas ao mesmo tempo uma cidade marcada pela experiência civilizatória dos africanos. Esse embate é muito curioso: o Rio é uma cidade fundada para espantar franceses, oficialmente, e que num certo momento tenta ser francesa para negar que é africana. A minha ideia era revisitar as ruas do Rio, pouco mais de 100 anos depois do João do Rio, e ver que a rua continua sendo um cenário em disputa. Se lá atrás tinha a ideia de dar o recorte civilizatório europeu às ruas, hoje temos outros embates: o avanço das igrejas neopentecostais, o discurso da segurança pública. Entender esses enfrentamentos das ruas foi meu objetivo.
Simas: João do Rio é aquele personagem que está entre o amor profundo pela rua e um certo estupor. Porque, ali, a gente tinha um Rio de Janeiro que era uma cidade em combate: a de padrão parisiense, mas ao mesmo tempo uma cidade marcada pela experiência civilizatória dos africanos. Esse embate é muito curioso: o Rio é uma cidade fundada para espantar franceses, oficialmente, e que num certo momento tenta ser francesa para negar que é africana. A minha ideia era revisitar as ruas do Rio, pouco mais de 100 anos depois do João do Rio, e ver que a rua continua sendo um cenário em disputa. Se lá atrás tinha a ideia de dar o recorte civilizatório europeu às ruas, hoje temos outros embates: o avanço das igrejas neopentecostais, o discurso da segurança pública. Entender esses enfrentamentos das ruas foi meu objetivo.
O livro fala de uma rua de cultura de saberes sofisticados. Mas, como você escreve, “somos educados para desprezar as culturas da síncope, ou seja, as que subvertem”. Por quê?
Simas: É fruto do preconceito, do racismo estrutural brasileiro. Esse medo é feito para desqualificar os saberes que não têm viés eurocêntrico, fundado na ignorância, no preconceito, no desconforto que o Brasil sente de admitir, de perceber a força das culturas ameríndias e africanas. São saberes que para sobreviver na cidade elas operam em gramáticas não normativas: na gramática do corpo, do tambor. Estamos encapsulados na ideia do cristianismo, na ideia da razão iluminista, do saber que se manifesta apenas nas culturas letradas. E o alargamento dessas gramáticas é uma intenção do meu trabalho.
O livro chega num momento de resistência...
Simas: Hoje você tem uma cidade marcada por um crescimento espantoso do neopentecostalismo e ele trabalha na tentativa de desqualificar e demonizar as referências de culturas de terreiros, de culturas africanas. Costumo dizer que a rua, hoje, está espremida entre a cruz e o mercado. O corpo encantado das ruas é uma tentativa de mostrar que as ruas do Rio esvaziadas perdem força, se desmobilizam, vão perdendo o corpo, a alma. Elas vão ficando desencantadas. Hoje isso é uma tarefa política da maior relevância, porque existe um processo de extermínio, genocídio no campo físico e da cultura. Falar disso é crucial.
Como essas culturas sobrevivem, de geração para geração, à escravidão, aos preconceitos?
Simas: Se toda diáspora é uma dispersão, um fenômeno de aniquilamento, de sequestro de identidades, toda cultura de diáspora é de reconstrução coletiva, um fenômeno agregador, que cria estratégias de transmissão dos saberes. Quando falo de escola de samba, roda de candomblé, capoeira, ali existem elementos de construção de identidade, de rede de proteção social, de sociabilidade, que vão passando de geração em geração, operando em gramáticas que não são as normativas. Porque são culturas de frestas, de síncope, que a rigor têm que driblar a normatividade para que consigam sustentar toda a potência, seus saberes. São códigos internos.
Como você imagina as ruas daqui a um século?
Simas: A gente vive uma distopia esvaziadora das ruas, das sonoridades, dos corpos. Tenho uma perspectiva que é muito vinculada à ideia da fresta. Acho que o maior desafio para quem for escrever outro livro daqui a 100 anos – fazendo um exercício de ficção –, será perceber onde está a brecha, a fresta, como é que essas culturas foram violentamente submetidas e subalternizadas pelo processo histórico e como redefinem estratégias para sobreviver. O grande mistério será entender o que estará preenchendo a síncope daqui a 100 anos.
O CORPO ENCANTADO DAS RUAS
. De Luiz Antonio Simas
. Civilização Brasileira
. 175 páginas
. R$ 34,90