A sugestão é do próprio Machado de Assis no primeiro capítulo de Memórias póstumas de Brás Cubas: começar pelo fim, não pelo começo, contar a morte antes mesmo de contar a vida. O motivo nem só irônico é tornar o escrito “mais galante e mais novo”. Pois bem, dos nove ensaios de Andréa Sirihal Werkema recolhidos em As duas pontas da literatura: crítica e criação em Machado de Assis, que tem lançamento neste sábado, na Casa Relicário, dois são dedicados não exatamente a Machado, mas a José de Alencar, e estão localizados ao fim do livro, bem depois das leituras voltadas para o Bruxo do Cosme Velho. O motivo não é tão óbvio. Afinal, o escritor romântico que foi Alencar, além de 10 anos mais velho que Machado, era precursor direto e motivo de inspiração ao mais novo, o que talvez sugira ordenamento diferente, com os textos a respeito de Alencar quem sabe a abrir a reunião de ensaios.
Há mesmo quem acredite que a crise por volta dos 40 anos de idade que levou Machado ao salto qualitativo na produção dos romances, justamente com Memórias póstumas, só foi possível por causa da morte do “pai espiritual” que era Alencar, em 1877, um ano antes de Machado começar a escrever o romance da virada pessoal, publicado em 1880, na Revista Brasileira, e, no ano seguinte, como livro. Quando se pensa na sugestão do escritor argentino Jorge Luis Borges de que um escritor atual é quem influencia um mais antigo, ao estabelecer um parâmetro para aquilo que os leitores devem entender e buscar como rede de influências, o círculo se fecha e passa a fazer sentido. Nem sempre é para frente que se anda. Machado pode ter mais influência sobre o modo como lemos hoje José de Alencar do que se deixou influenciar pela obra do escritor romântico. A criança é o pai do ancião, dizia Machado, citando alguém ou a si mesmo nessa situação. Talvez esteja certa a autora em colocar Alencar ao fim do livro, em resumo.
Vertente única
“Não caiamos na armadilha de imaginar um Machado de Assis nascido pronto, cânone”, justifica Werkema a localização dos textos a respeito de Alencar ao fim do volume. O que se discute e bem é a formação de Machado, tanto leitor, o que ele também foi, aliás bastante sofisticado, quanto autor e crítico. O ângulo escolhido pela doutora em literatura brasileira pela UFMG e professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) para abordar a obra machadiana é a defesa do que se chama, na apresentação feita por Roberto Acízelo de Souza, de “fim evidente” que existe na proposta intelectual do escritor, “atar as duas pontas da literatura: crítica e criação” como um só movimento. Em vez de tomar as duas partes em separado, como normalmente se faz, ela escolhe ler as vertentes como manifestação de um mesmo gesto sagaz de Machado, o que faz todo sentido e, agora sim, começa a justificar cada vez mais a localização dos ensaios de Alencar, se os argumentos anteriores não estavam suficientes.
Que leituras Machado fez dos românticos que vinham antes dele, sobretudo de Junqueira Freire e Álvares de Azevedo, é o que preocupa Andréa Werkema no primeiro ensaio. Ao mesmo tempo em que Machado precisa deixar o passado para trás para romper com ele, deve aprender a ler aquilo mesmo que vai ser superado. O Brasil nesse momento é novo como país e produz literatura ainda titubeante e precária. Alguns saltos se fazem necessários, como se preparar para eles?
Machado o faz com leituras sofisticadas e olhar atento para além do alcance de que os precursores são mais ou menos dotados, um olhar bifurcado a observar o que se faz no país, mas também lá fora. À medida que aponta os limitantes o escritor se prepara para fazer os avanços necessários, talvez o maior deles, se livrar de uma ideia restrita de nacionalismo. Como ela diz no segundo ensaio ainda sobre o mesmo tema, o escritor prefere “antes lançar dúvidas, desestabilizar certezas e provocar desconfianças em relação a um cânone nacionalista que ameaçava homogeneizar uma compreensão do que fosse literatura brasileira”. A questão não é enxergar literatura brasileira, como Werkema aponta bem, mas tratar de literatura, ponto. “Como uma forma de atestar a maioridade enfim de nossa literatura nacional, exatamente pela afirmação de sua universalidade.” É o que ela reconhece, mais tarde, como “uma mentalidade literária finalmente autônoma entre nós”, esse nós aí referência à nação em busca de identidade, conceito tão complicado entre brasileiros e que ocorre também no campo literário, como não podia deixar de ser.
Degrau elevado
O esforço de Andréa Werkema no miolo do ensaio dedicado à força da obra de Machado na formação do cânone do século 19 brasileiro é o de não isolar o escritor como gênio solitário no âmbito da literatura, mas incluí-lo numa serialização, mesmo que a obra possa ser lida como apogeu um tanto peculiar e distinto do arcabouço anterior. Aqui o problema se torna mais complexo quando se admite a “tese da integração de Machado à série de nossos escritores oitocentistas, ao contrário daqueles que fazem dele caso à parte, irrupção de genialidade sem explicação que não por teorias pseudorromânticas ou genética pri- vilegiada.”
A obra machadiana apresenta um degrau bem mais elevado, ruptura numa série que vinha lá com alguma eficiência mais ou menos periclitante no esforço por ser articulada e é muito difícil não ouvir as vozes qualificadas que ficam realmente a se perguntar, como faz o crítico Roberto Schwarz, autor de dois estudos brilhantes que – sobretudo o segundo, Um mestre na periferia do capitalismo – reorientaram o modo de ler o escritor. “Que pensar do imenso desnível entre as Memórias póstumas de Brás Cubas e a nossa ficção anterior, incluídas aí as obras iniciais do mesmo Machado de Assis?”, ele questiona. E há John Gledson, outro nome de peso quando se trata de Machado, que fala em “transformação sísmica” para se referir ao livro responsável pela virada. Parte da resposta, me parece, vem no próprio conjunto de ideias do segundo texto de Schwarz, ao ler um subsolo político e social particularmente perspicaz na superfície literária deste livro de Machado. Ao que se poderia acrescentar uma dose da argumentação de Harold Bloom (aliás, um admirador do Bruxo do Cosme Velho) como primeiro argumento em defesa de livro que se qualifica para entrar no cânone: resiste à releitura?. Pois é o que faz a obra de Machado, parece mais ler o(s) leitor(es) do que se entrega para ser decifrada. Daí tantos esforços a acumular fortuna crítica.
A obra machadiana apresenta um degrau bem mais elevado, ruptura numa série que vinha lá com alguma eficiência mais ou menos periclitante no esforço por ser articulada e é muito difícil não ouvir as vozes qualificadas que ficam realmente a se perguntar, como faz o crítico Roberto Schwarz, autor de dois estudos brilhantes que – sobretudo o segundo, Um mestre na periferia do capitalismo – reorientaram o modo de ler o escritor. “Que pensar do imenso desnível entre as Memórias póstumas de Brás Cubas e a nossa ficção anterior, incluídas aí as obras iniciais do mesmo Machado de Assis?”, ele questiona. E há John Gledson, outro nome de peso quando se trata de Machado, que fala em “transformação sísmica” para se referir ao livro responsável pela virada. Parte da resposta, me parece, vem no próprio conjunto de ideias do segundo texto de Schwarz, ao ler um subsolo político e social particularmente perspicaz na superfície literária deste livro de Machado. Ao que se poderia acrescentar uma dose da argumentação de Harold Bloom (aliás, um admirador do Bruxo do Cosme Velho) como primeiro argumento em defesa de livro que se qualifica para entrar no cânone: resiste à releitura?. Pois é o que faz a obra de Machado, parece mais ler o(s) leitor(es) do que se entrega para ser decifrada. Daí tantos esforços a acumular fortuna crítica.
A questão inegável é que Machado está no centro do cânone brasileiro, o que leva Werkema a se indagar se ele se encontra aí “por sua capacidade de organizar a literatura brasileira – força literária – ou por sua capacidade de estar ao mesmo tempo dentro e fora da literatura brasileira?”. É uma pena que não haja uma resposta, mesmo com a advertência da autora de que se trata de uma indefinição temporária. Gostaria de saber e suponho que o leitor interessado também. Esse, aliás, pode ser considerado um ponto de hesitação. Às vezes, os temas são levantados pelas orelhas, como lebres, olhados com certo espanto e depois devolvidos sem respostas. Que Machado fizesse isso na obra era divertido, irônico, provocador, parte estruturante da composição. Que o ensaio seja forma aberta também é aceitável até certo ponto. Mas o sucesso de um ensaísta decorre da capacidade de correr riscos e andar no fio da navalha. E Werkema o faz, aqui e ali, como ao ousar levantar a voz em questionamento a ideias do próprio Schwarz; a autora diz ter se sentido incomodada quando se deparou com a leitura que Schwarz faz de Alencar em Ao vencedor as batatas, com o modelo usado para a análise, “em certa medida, alheio ao romance de Alencar”. E a partir daí, mesmo que respeitosamente, pondera os próprios senões. Não é pouca coisa. Um dos pontos altos da argumentação de Werkema está em, de maneira divertida, tratar os quatro romances anteriores a Memórias póstumas como “subgêneros do romance romântico”, chamados, de maneira provocadora, de “romances de casamento”. Claro que com a pegada machadiana, ou seja, o casamento não mais visto como triunfo do amor entre os envolvidos, como faziam os românticos, mas como resultado de estratégias argutas de protagonistas à procura de ascensão social (às vezes com resultados um tanto amargos, como ocorre em Iaiá Garcia, o último dos livros da primeira fase). A aproximação que Andréa Werkema faz com os romances ingleses do século 18, muito interessante e com possibilidades paródicas, fica na sugestão e não ganha desdobramentos. Outra lebre. É possível vislumbrar a autora escrevendo um livro inteiro, e muito rico, a respeito do assunto.
Outro ponto elevado do conjunto de ensaios está na aproximação dos prólogos que funcionam como moldura em Memórias póstumas – um do próprio Machado, outro do personagem, Brás Cubas – com o texto escrito em 1798 “Carta sobre o romance”, de Friedrich Schlegel, publicado na revista Athenäum. A indicação do gênero, aposta Werkema, “se é que se faça necessária, deve vir de dentro da obra – romance”. Que é o que faz Machado. “A obra em si mesma é tudo”, está dito em “Ao leitor”, o prólogo de Brás Cubas. E, ao apresentar um ou dois senões, eu diria que, mesmo com a advertência de Werkema na nota preliminar de que “eventuais redundâncias e repetições” são quase inevitáveis, a repetição por quatro vezes do mesmo trecho do ensaio crítico “A nova geração”, de Machado, torna-se excessiva. O que leva a outra reflexão: tamanha é a fortuna crítica machadiana (os levantamentos de José Galante, Jean-Michel Massa e Ubiratan Machado, este último até o ano de 2003, estão aí para quem quiser verificar), que talvez seja hora de se pensar num estudo híbrido da vida e obra do escritor. Afinal, há muito a falar sobre o mundo habitado pelo escritor: os fatos históricos do século 19, a antropologia, o contexto brasileiro, minibiografias espargidas de amigos como Joaquim Nabuco, Quintino Bocaiuva, José Veríssimo, até mesmo algo de Pedro II, quem sabe alguma coisa do Barão de Mauá e sua obsessão industrial e banqueira... Um grande caldeirão que não se esqueça de analisar as desigualdades econômicas e sociais, inclusive na face mais áspera e desumana – a escravidão – e os projetos urbanísticos que sempre se esqueceram das populações marginalizadas. Eis outro ponto de partida para se retirar mais uma lebre da inesgotável cartola do mágico Machado.
* Paulo Paniago é professor de jornalismo da Universidade de Brasília.
TRECHO DO LIVRO
“O momento em que Machado de Assis exerceu a crítica literária (estabeleço em aproximado as décadas de 1860 e 1870) coloca-o estrategicamente entre o Romantismo que perdurava ainda, os parnasianos, decadentistas e ‘baudelairianos’ que começam a transformar os paradigmas poéticos do fim do século, e a ficção de cunho realista/naturalista que vem, por um lado, continuar, e, por outro, se opor ao projeto vitorioso do romance alencariano, todos esses movimentos literários observados com atenção pelo jovem crítico Machado de Assis. Além do mais, o passado clássico, tesouro de que todo o Ocidente tem o seu quinhão, nunca é perdido de vista por nosso escritor. O apelo à tolerância para com os diferentes estilos literários, expresso algumas vezes nos escritos críticos de Machado de Assis, demonstra mais do que apenas o cuidado em agradar a gregos e troianos: demonstra uma preocupação ininterrupta em ver uma obra para além de seu enquadramento imediato em uma escola – para além de seu cerceamento por uma norma, por um modo estabelecido
de fazer.”
As duas pontas da literatura: crítica e criação em Machado de Assis
. De Andréa Sirihal Werkema
. Relicário
. 148 páginas
. R$ 36,90
. Lançamento: amanhã (23), das 11h às 15h, na Casa Relicário (Rua Machado, 155, casa 1, Bairro Floresta, BH)