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Rogério Menezes: ''A vida é nó que nunca se desata''

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"Nunca sei exatamente sobre o que vou escrever, mas vou escrevendo como se o ritmo da minha respiração atravessasse o peito, descesse pelo braço, explodisse em palavras pelos dedos da minha mão direita, rompesse a escuridão da noite, varasse a cidade inteira e me varasse também."



A passagem acima é reveladora de uma das principais virtudes de 2%2b1, novo romance do baiano Rogério Menezes: o ritmo. O escritor maneja as palavras com destreza e fluência e, sem perder o fôlego, alterna as vozes narrativas de Izac e Manoela (“humanos, demasiado humanos”, na definição do autor) em estruturas bem diferentes, mas igualmente eficientes ao objetivo do autor. “Dos três romances que publiquei, dois (Três elefantes na ópera, em 2001, e Um náufrago que ri, de 2010), apesar da aparência fantasiosa com a qual sempre revesti minhas tramas, mesmo as mais ‘realistas’, tudo era baseados em fatos que eu havia vivido em diferentes momentos de minha vida: 2 1 é completamente autoral, mas não tem nenhum personagem que seja inspirado em pessoas que conheci”, conta Menezes. Jornalista de formação, ele comenta o atual momento da profissão original.

“O jornalismo dá (ou melhor, dava) demasiado espaço ao que chama de verdades – hoje os factoides imperam, e essa então dita verdade jornalística me atrapalhou muito”, acredita, antes de refletir: “Verdade e mentira nunca são conceitos absolutos e sempre foram cercados de juízos de valor que tentam nos enfiar goela abaixo desde que nascemos. Não quero que meus romances reflitam essas ‘verdades’. Hoje, para a minha literatura, a invenção é mais importante que a memória”, defende, antes de concluir: “A memória é traiçoeira. A invenção trai essa memória traiçoeira. Eu sou essa invenção que trai essa memória traiçoeira”. Ou, como está escrito em um dos trechos mais inspirados do romance, a primeira publicação da editora Nassau: “Minha memória é apenas enorme bola de fogo que corre sem parar em alguma rua que nunca vira, na qual nunca morei, e nada mais”.



Qual o ponto de partida do romance 2 1?
Sem intenção nenhuma fazer de blague, eu digo: o ponto de partida do meu novo romance é a chegada, e a chegada, de fato, é a morte, ‘porto seguro’ para onde estamos todos caminhando, única e inexorável certeza que o errático ato de viver nos permite decifrar. Todo o resto nos é mistério: enigmas, charadas, jogos de sorte e azar, equações nunca resolvíveis, e becos sem saídas. A morte é absoluta. A vida, não. Em mundo no qual todos morremos – mas nem todos nascemos – só os mais, digamos, competitivos, vivemos – e vivemos em direção à morte, e a nenhum outro ‘lugar’ –, eu abro mão sem pejo algum daquele velho chavão da dramaturgia literária ou não: os personagens morrerão ou não?. Diante desta falsa questão tão presente no senso comum, mas tão absolutamente estúpida – a vida não tem spoiler, todos nós morreremos, questão de hora e lugar – eu, escritor, parto (tanto no sentir de parir quanto de partir) de onde tudo realmente ‘começa’, no fim. Os meus dois personagens estão mortos quando a trama é tecida-escrita-cerzida, e finalmente contada ao leitor – e há nesse meu truque mezzo-machadiano, mezzo billywilderiano mais humor do que terror. Uma boutade que talvez possa resumir a minha forma de enxergar a existência humana: – Nada tema, a morte nos acolherá. A logística dramática dessa narrativa com final de domínio público, no entanto, tem o mesmo, e surpreendente, e inusitado, e inesperado movimento dos homens-sempre-no-calor-da-hora, em eterno combate com ele mesmo e com os outros, e que, apesar de nunca sabermos o que nos pode acontecer na próxima curva, não nos deixamos abater por essa ‘porra-louquice’ do, chamemos assim, destino, e deixamos que o rio siga o curso que tiver que seguir – that’s life, folks!

“Tento escrever no mesmo ritmo que respiro. Para não perder o fôlego.” Como chegou aos diferentes ritmos que marcam 2 1?
O bom escritor, para usar jargão futebolístico, tem que procurar jogar em todas as posições, de goleiro a centroavante, de Gilmar e Bellini a Cristiano Ronaldo e Messi. Ou seja 1, se não tivermos essa destreza, essa versatilidade, esse ‘domínio de bola’, melhor tentar outro ofício. Ou seja 2, se não mergulharmos de cabeça na erraticidade da vida, se ficarmos esperando a “musa” literária, se não nos fundirmos com a ‘pegada’ arrebatadora que a vida nos impõe, o escritor não chegará a lugar nenhum. Ou seja 3, se não formos até o osso, se não nos afundarmos nas nossas próprias loucuras e idiossincrasias e nas loucuras e idiossincrasias alheias, a grande literatura não se edifica, não se erige, não se sustenta, e desmorona feito esses barracos miseráveis construídos de qualquer forma e em qualquer lugar e nas quais as gentes pobres deste país de merda se deixam esmagar. Enfim, se eu não tiver ‘pegada’, não ‘pego’ a grande literatura, e eu almejo ‘pegar’ a grande literatura.



“Escrevia com muita fome de escrever”, afirma a narradora da primeira parte do livro. Como saciar essa fome em um país que aparenta, a cada ano, ter número cada vez mais reduzido de leitores? 
Preciso confessar: sou ambicioso literariamente. Não escrevo apenas para o aqui e o agora, quero perdurar como escritor, e por isso procuro escrever sobre coisas que perdurem, e não sobre temas tatibitates. O Brasil hoje é um caminhão desgovernado descendo ladeira abaixo – e, neste contexto de miserabilidade política e social no qual o próprio ato de ter o que comer é luxo, o que se poderá dizer do ato de ler, de comprar livros? Neste zeigeist das trevas no qual estamos imersos, sei, jamais saciarei essa fome. Mas não escrevo apenas para os que ora vivem, mas também para os que estão vindo e para os que virão depois de nós, e eles, os jovens, o eterno ‘poder jovem’, virarão este país de ponta-cabeça e, trilhando jornadas iluministas por vir, a literatura e a arte em geral se tornarão artigos de primeira necessidade.

“Não tenho nenhuma resposta para absolutamente nada.” E quais são as respostas que a literatura pode fornecer?
A grande literatura, tal e qual a filosofia, nunca busca responder a nada. Limita-se a disparar perguntas procedentes ou não que poderão levar o ser humano a, por exemplo, perceber que a dor humana é pandemia sem cura. A vida é nó que nunca se desata. Ponto. Sigamos. Não haverá outra coisa a fazer a não ser atravessar com estoicismo o rubicão a que cada um de nós é reservado sabe-se lá por quem. Há quem acredite em deuses e a eles atribuam poderes secretos. Eu prefiro crer que eu sou o meu próprio deus, e sei (sei?) que só posso contar comigo mesmo – miseravelmente, percebi, em mais de 30 anos em divãs de analistas, quen nem comigo mesmo poderei contar, pois costumamos nos sabotar com certa periodicidade.

Na apresentação do livro, o seu editor cita as referências ao cinema que estão incorporadas ao texto. Quais são os seus cineastas favoritos e como eles influenciaram a sua escrita?
Só não fui diretor de cinema porque na minha adolescência não tive dinheiro para comprar uma super-oito. Mas leio e vejo filmes desde sempre. Com 8 anos, assisti ao filme Barravento, de Glauber Rocha, e ver a esplendorosa beleza da atriz Luiza Maranhão está cravado na parte frontal do meu crânio feito prego de veludo preto. Até os 10, li as obras completas de Jorge Amado, editadas em capa dura vermelha, que havia na estante lá de casa. Li Angústia e Vidas secas, de Graciliano Ramos, o melhor escritor brasileiro de todos os tempos. A partir dos 15, quando fui estudar em Salvador, vi todas as grandes obras-primas do cinema do século 20 produzidas até então. De Teorema, de Pier Paolo Pasolini, a Blow Up, de Michelangelo Antonioni. No teatro, assistir a O Rei da Vela, dirigido por Zé Celso Martinez Correa, se fez luz na minha loucura juvenil. Ouvi o disco Tropicália trocentas vezes, assisti ao filme A bela da tarde, do meu amado Buñuel, mais de 50 vezes, por motivos estéticos e sexuais que não vêm ao caso. Muita gente diz que eu escrevo como se fizesse filmes. Se você me perguntar o romance que me marcou a ferro e fogo como escritor, não vacilo. Cravo Os demônios, de Dostoiévski, que eu costumo chamar na intimidade de ‘Deustoiévski’. Se você me perguntar o filme mais marcante, tenho certa dificuldade de apontar. Foram muitos.


Das entrevistas que fez com escritores brasileiros na atividade como jornalista de cultura, quais as mais marcantes? Guardou algo que eles falaram que se aplica à sua literatura? Quais escritores estrangeiros, vivos ou mortos, gostaria de ter entrevistado?
Não entrevistei muitos escritores. Mas tive cinco conversas, em épocas diferentes, com Jorge Amado, aquela cara que foi o Monteiro Lobato da minha infância, e isso me foi enorme privilégio. Ele me disse milhares de coisas bacanas, parte registrada em jornais em que trabalhei, outras perdidas em gravadores que emperraram e fitas cassete que perdi. A frase dele que me marca e me marcará enquanto o meu cérebro funcionar é a seguinte: “Escrever é maldição. Sim, uma danação da qual você só se livra quando morre”. Gostaria de ter entrevistado Roberto Bolaño e Amos Oz, dois gigantes da literatura contemporânea. Houve um autor brasileiro que morreu jovem, antes dos 30, que eu gostaria ter convivido e entrevistado e, quiçá, namorado: Victor Heringer, autor de dois romances geniais.

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• De Rogério Menezes
• Bissau Livros
• 182 páginas
• R$ 40
• Pode ser comprado pelo site     da editora:bissaulivros.com