“Meu querido Sr. Ginoux,
Esta é para pedir-lhe a gentileza de mandar minhas duas camas, que ainda estão com vocês pelo trem lento. Acho que seria prudente esvaziar os colchões, pois a compra de palha nova não será mais cara do que o dinheiro pago pelo carreto. Com relação ao resto da mobília o que haveria? Ainda tem o espelho, por exemplo, que eu gostaria de ter. Poderia, por gentileza, colar tiras de papel no vidro para evitar que quebre? Mas as duas cômodas, as cadeiras e mesas, vocês podem guardar pelo trabalho que tiveram comigo, e se houver despesas extras, por favor me avisem (…) Sinceramente, à sua disposição, Vincent.”
O trecho é de carta de maio de 1890. O remetente: Vicent van Gogh (1853-1890). Após grave colapso e de um surto em que chegou a decepar parte de sua própria orelha esquerda, o pintor, que se internara voluntariamente num asilo em Saint-Rémy-de Provence, no Sul da França, escreve dias antes de ter alta a Joseph Ginoux, amigo e antigo senhorio na cidade vizinha de Arles, onde Van Gogh vivera naquela que mais tarde chamaria de Casa Amarela.
Tal era a pobreza deste que um século depois se tornaria um dos mais icônicos pintores da história, cujos quadros alcançam cifras de US$ 75 milhões, que o atormentado Van Gogh se preocupa em solicitar ao amigo que a palha dos colchões seja esvaziada para economizar com o frete. E é nessa carta que o genial artista de enérgicas pinceladas, perspectivas inventivas, cores e contornos contrastantes – e, claro, trágica vida – lista o inventário dos móveis de seu quarto, que lhe inspiraram as três versões da obra O quarto, hoje em exibição no Museu de Van Gogh, em Amsterdã, no Art Institute of Chicago e no Museu d'Orsay, em Paris. Dias depois de escrevê-la, Van Gogh partiu para Paris, de lá seguiu para Auver-sur-Oise, onde cometeu suicídio dois meses depois.
Essa carta integra a maior coleção particular de manuscritos do mundo, do historiador de arte, escritor e editor brasileiro Pedro Corrêa do Lago, que há 50 anos em busca obsessiva mundo afora, já reúne cerca de 100 mil autógrafos – não simples assinaturas, como frequentemente associadas à palavra, mas todo tipo de documento escrito a mão, como bilhetes, desenhos, partituras e fotos. São registros com a caligrafia de personagens, de conteúdo significativo, relacionados a eventos que marcaram quase nove séculos de história da humanidade. O mais antigo com assinaturas de quatro papas, firmado em 1153; o mais recente, de Stephen Hawking, na forma de uma digital, em 2006.
Essa viagem no tempo foi levada entre junho e setembro de 2018 à Morgan Library & Museum, em Nova York, um dos espaços culturais mais importantes daquela cidade. Foram pinçadas do colossal acervo 140 peças para a exibição, preciosidades essas agora reunidas na obra A magia do manuscrito, Coleção de Pedro Corrêa do Lago, Editora Taschen. Em bela edição de capa em linho, o livro foi publicado em inglês, francês, italiano, espanhol e alemão, com texto de Christine Nelson, curadora de manuscritos literários e históricos da Morgan Library & Museum, prefácios de Colin B. Bailey (diretor da Morgan Library & Museum) e do artista Vik Muniz.
“O valor de um manuscrito autógrafo foi verificado no momento em que os homens começaram a adorar sua própria espécie, a enxergar os escritores do passado como uma plataforma para o pensamento futuro. Eu sempre considerei que nossa história deve ter começado com o primeiro ato de autoria”, afirma Vik Muniz, ao apresentar a obra e o autor da coleção. E se na Grécia Antiga a reverência dos atenienses aos manuscritos de seus principais escritores – considerados tesouros públicos – teve em Aristóteles um organizar de grande número de documentos antigos, o incêndio da lendária biblioteca de Alexandria, maior repositório conhecido de manuscritos originais de todos os tempos, representou a ruptura simbólica com o conhecimento antigo. Para Vik Muniz, outras coleções importantes da Antiguidade, consumidas pelas chamas, como as bibliotecas de Celsus e Pérgamo, na Anatólica, contribuíram para o fato de que, desde o final do Império Romano, nenhum manuscrito original antigo sobrevivesse.
“Foi só a partir da época de Petrarca, no século 14, que o interesse pela recuperação do conhecimento dos escritores do passado seria revivido. A Renascença trouxe um novo culto à celebridade que foi fortalecido pela popularização da alfabetização e um investimento renovado na vida social. Desde então, cheques bancários, listas de compras, rabiscos em guardanapos, notas de suicídio, todas essas coisas efêmeras manuscritas que ajudam a completar a colcha de retalhos infinitamente complexa da história têm fascinado cada vez mais acadêmicos e leigos”, afirma Vik Muniz.
Segredos e encantos dos manuscritos
Desde a adolescência, Pedro Corrêa do Lago, filho de diplomata, descobriu o prazer em descortinar o mundo mágico dos manuscritos. Nas palavras do escritor austríaco Stefan Zweig, também colecionador, que segundo anota Christine Nelson no texto De amor e magia inspiraram o título do livro, o hábito foi assim explicado: “(…) conheço bem a magia do manuscrito, e sei que dar um escrito a mão é também transmitir um segredo – um segredo que se revela apenas por amor”. É assim que, da coleção de Pedro Corrêa do Lago nasce a obra A magia do manuscrito. Nela, a roda da civilização se faz presente no campo das artes visuais, da literatura, da ciência, da filosofia, além de muitos personagens históricos.
Cartas e documentos trazem à tona relações pessoais, intrigas e decisões de reis e de seus conselheiros. Da chegada ao trono inglês de Elizabeth I, em 1558, à revolução cubana sob o comando de Fidel Castro, em 1959. Há itens de personagens em todos os cantos do mundo: manuscritos de Mary Stuart (1542-1587, rainha da Escócia), Simón Bolívar (1783-1830), Mata Hari (1876-1917), Benjamin Franklin (1706-1790), Sun Yat-sem (1866-1925), Hirohito (1901-1989), Mahatma Gandhi (1869-1948) e Leon Trotsky (1879-1940). Fotos autografadas de Touro Sentado (1831-1890), Abraham Lincoln (1809-1865), Grigory Rasputin (1869-1916) e Emiliano Zapata (1879-1919) também integram o acervo da edição. Em 1502, Lucrécia Borgia (1480-1519), a lendária mulher por trás do poder no Renascimento, escreveu ao cunhado enquanto seguia para se casar. Já Henrique VIII (1491-1547) escreve ao então rei da França Francisco I sobre as negociações de paz
Diálogos, passos e ecos de gênios saltam da obra. Charles Darwin (1809-1882) desabafa em 1871 a uma colega com quem havia se desentendido a respeito da sua teoria da evolução: “Eu tenho sempre o consolo de ter feito o melhor que podia”. Ada Lovelace (1815-1852), pioneira da computação, comenta em carta a obra Cosmos, de Alexander von Humboldt, e a obra Vestígios da história natural da criação, até então de autoria anônima: nega ser autora de Vestígios, que antecipava as descobertas de Darwin.
A caligrafia de sir Isaac Newton (1642-1727) desenha uma árvore diferente daquela que assistiu à maçã cair, insight que o levou ao desenvolvimento da lei universal da gravitação: a sua própria árvore genealógica. Foi resultado de pesquisa minuciosa sobre a sua ancestralidade, naquele 1705, quando foi condecorado pela então rainha Anne, da Inglaterra. Albert Einstein (1879-1955), em busca da “teoria de tudo”, trabalha equações matemáticas, e Stephen Hawking (1942-2018) “assina” uma cópia de seu best-seller Uma breve história do tempo, de 1993, com sua digital.
A caligrafia de sir Isaac Newton (1642-1727) desenha uma árvore diferente daquela que assistiu à maçã cair, insight que o levou ao desenvolvimento da lei universal da gravitação: a sua própria árvore genealógica. Foi resultado de pesquisa minuciosa sobre a sua ancestralidade, naquele 1705, quando foi condecorado pela então rainha Anne, da Inglaterra. Albert Einstein (1879-1955), em busca da “teoria de tudo”, trabalha equações matemáticas, e Stephen Hawking (1942-2018) “assina” uma cópia de seu best-seller Uma breve história do tempo, de 1993, com sua digital.
Um legado da civilização
Maquiavel (1469-1527), Immanuel Kant (1724-1804), Adam Smith (1723-1790), Karl Marx (1818-1883), homens que marcaram a história do pensamento político e econômico, deixam rastros de seu legado na obra. Assim como em pleno Iluminismo francês, Louise Dupin (1706-1799) preparava uma página – texto seminal sobre o pensamento feminino da Europa Ocidental – nunca terminado, escrita por seu assistente de pesquisa Jean-Jacques Rousseau (1712-1778).
Embora 60% da coleção de Pedro Corrêa do Lago seja de manuscritos lusos-brasileiros, para a mostra de 140 peças em Nova York – e consequentemente para o livro que dela se originou – foram selecionados manuscritos de apenas cinco brasileiros: Machado de Assis (trechos de um dos seus últimos trabalhos, O escrivão Coimbra, 1907), Santos Dumont (desenhos de seus dirigíveis, 1929), Villa-Lobos (manuscrito de peça baseada em cantos indígenas, 1929), Tom Jobim (a partitura original autografada de Chega de saudade, 1958) e Oscar Niemeyer (esboço do Congresso Nacional, 1964, e texto, 1970).
De todos os campos do conhecimento ressoam as vozes que constituem nossa civilização. E se, por um lado, ecos do disruptivo Van Gogh perfilam numa carta-inventário, a tosca mobília que compõe três entre os mais famosos quadros do planeta, por outro, o amigo dele Paul Gauguin (1848-1903) relata em carta de 1889 os dias de tormento que passou com o colega, em Arles: “Eu pretendia ficar um ano no Sul (da França) trabalhando com um amigo que também é pintor. Infelizmente, esse amigo tornou-se louco varrido e, por um mês inteiro, vivi sob o medo constante de um acidente mortal ou trágico (…)”.
O destinatário que a leu, à época, jamais imaginaria a quem Gauguin se referira. Gauguin, que também teve uma vida de dificuldades econômicas, privações e doenças, despede-se de seu interlocutor demonstrando consciência da dimensão de sua obra: “Você reconhecerá aquele maluco com quem se encontrou uma vez brevemente. Eu sei o que me espera, e prossigo calmamente de infortúnio em infortúnio até o final – mas também sei que o granito perecerá, mas a minha obra não perecerá”.
ENTREVISTA/Pedro Corrêa do Lago
O que é uma coleção de manuscritos e como desenvolveu esse interesse?
A palavra que melhor define o que coleciono, infelizmente, virou sinônimo de uma coisa muito limitada: o autógrafo. Mas o autógrafo não quer dizer uma simples assinatura. Autógrafo é qualquer coisa escrita a mão, com a própria letra. Na verdade, o que interessa ao colecionador é o conteúdo. Eu não sou colecionador de assinaturas, mas sou colecionador de autógrafos. Então, o manuscrito de um poema do João Cabral, mesmo não assinado, é um autógrafo maravilhoso. Como, por exemplo, o cartão do Freud para um paciente americano: ele escreve 20 horas, 2 mil shillings. Resume a psicanálise, quer dizer, na própria letra do Freud uma cobrança por 20 sessões. Outro exemplo, uma pessoa como Monet, ao fazer um empréstimo de mil francos no início de sua carreira, deixou como garantia em cartório 35 quadros dele. Hoje, 35 quadros de Monet valem US$ 100 milhões. Na exposição da coleção na Morgan Library, em Nova York, teve um pedaço de papel rasgado, que foi o primeiro encontrado a mão por Marcel Proust, quando nele escreveu a primeira versão dos três primeiros parágrafos de um dos volumes daquela que é considerada a obra literária mais importante do século 20, Em busca do tempo perdido. A inspiração dele se materializou naquele papel, naquele momento, que agora está na minha mão. Então, tenho 10 minutos congelados da inspiração dele, tenho o momento de criação de uma ideia que foi compartilhada por dezenas de milhões de leitores no mundo nesse século e é considerado um grande momento da li- teratura. A coleção toda gira em torno do prazer. É algo que enriqueceu minha vida ao longo dos últimos 50 anos com inúmeras alegrias: a alegria de encontrar a peça, de estudá-la, porque tem conteúdo mais importante do que imaginado, alegria de revisitá-la, de compartilhá-la com pesquisadores, de exibi-las ou imprimi-la num livro. Tenho inúmeros documentos em torno de personagens importantes da história, como Napoleão, Einstein, Freud, Picasso. Comecei aos 13, 14 anos, mas a coleção se desenvolveu quando descobri que existia um mercado para isso, muitos leilões na Europa. Viajava muito pelo mundo, meu pai era diplomata, fui comprando um pouco no mundo inteiro, de particulares, em leilões, de marchands especializados. Enfim, virou uma coleção que me dizem hoje os especialistas que é a maior coleção privada do mundo.
Quantos autógrafos tem a sua coleção? Como arquiva esses documentos e qual o valor estimado?
São mais de 100 mil manuscritos. Guardo em arquivos à prova de fogo. São pastas suspensas de quatro gavetas, só que reforçadas. O fabricante alemão garante que pode queimar a mil graus durante uma hora no entorno deles, que o interior continua intacto. Protege também da água. Sou obrigado a guardar isso num quarto térreo, porque os arquivos pesam meia tonelada por cada metro quadrado. Você me pergunta sobre o valor da coleção. É inestimável. Diria por exemplo que um manuscrito como o de Van Gogh foi uma carta que adquiri de um marchand inglês, há oito anos. Quando vi a carta – tinha sido antes vendida num leilão e também oferecida em catálogo por um marchand americano muito importante –, me dei conta de que nenhum deles reparou que se tratava de inventário dos móveis que compunham o quarto de Van Gogh, provavelmente o quarto mais famoso da pintura ocidental. Essa carta teria sido muito mais cara se tivessem percebido, porque o que faz o valor de um autógrafo é o conteúdo do manuscrito. Evidentemente, relacionada com o quarto, a carta ganhava outro significado. Comprei-a em 12 prestações e a troquei por outros projetos também. Custou algo como um carro importado
A sua coleção tem personagens brasileiros?
Tenho uma coleção internacional e uma coleção luso-brasileira, em torno da cultura de língua portuguesa. Tenho coisas importantes de Fernando Pessoa, Eça de Queiroz, Machado de Assis, dos imperadores, enfim, a história de Brasil e Portugal é tão ligada, que eu diria que a maior parte, ou seja, 60 mil dos 100 mil autógrafos, são da coleção luso-brasileira. O livro se refere à exposição que fiz na Morgan Library e para lá fiz seleção de 140 peças. Coloquei cinco brasileiros, mas tentei, na medida do possível, escolher nomes conhecidos do público. Entre os brasileiros escolhi Niemeyer, Villa Lobos, Tom Jobim, Machado de Assis e Santos Dumont. São nomes brasileiros muito respeitados lá fora. Não por falta de talento, mas por falta de centralidade. Talvez a nossa arte e literatura não são tão conhecidas internacionalmente.