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''A servidão é uma realidade no Brasil de hoje'': livros narram trajetórias de famílias negras

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Dois dos principais prêmios internacionais de literatura em língua portuguesa, o Oceanos e o LeYa, reconhecem a voz de escritores que trazem para o centro da enunciação histórias de famílias negras, as relações que estabelecem e a relação com as mazelas da pobreza, do preconceito e da doença. Os romances mostram dramas que não são essencialistas, mas universais. No entanto, os lugares onde as narrativas se desenrolam podem ser melhor compreendidos tendo a diáspora africana como chave de leitura. Luanda, Lisboa, Paraíso (Companhia das Letras), de Djaimilia Pereira de Almeida, venceu o Prêmio Oceanos. Torto arado (Todavia), de Itamar Vieira Junior, foi agraciado com o Prêmio LeYa.





Luanda, Lisboa, Paraíso e Torto arado são épicos, que colocam em perspectiva as deformações de seus personagens para mostrar a vida de pessoas ordinárias. Djaimilia, com 37 anos, e Itamar, com 40, fazem parte de geração de escritores negros, de países lusófonos, que trazem para a literatura personagens que enfrentam mazelas que em perspectiva são reflexos dos processos de colonização e escravização do povo negro. Porém, são narrativas descoloniais, de escritores que se inserem no universo literário propondo novos jeitos de contar.



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Em Luanda, Lisboa, Paraíso, Djaimilia narra a travessia de Cartola e Aquiles, pai e filho, que deixam Angola rumo a Portugal em busca de tratamento médico para uma deformação no calcanhar esquerdo – numa “caravela” na direção contrária à de navegadores portugueses no século 15. Em alusão à lenda grega, Aquiles precisa se operar de problema de nascença quando completar 15 anos. Na busca da resolução, pai e filho seguem esperançosos para Lisboa.

Retorno aos locais de origem


Eles esperavam ser recebidos como portugueses, mas são surpreendidos. E o que é pertencimento quando se está em um entre-lugar? Séculos depois da escravidão, uma metáfora da presença dos negros mundo afora que, pela escravidão, guerra ou busca por melhores condições de vida (aí incluem tratamentos médicos), são despatriados, tendo que reconstruir a história em outros lugares. Muitas vezes, ao longo da história, não foi dada a possibilidade de retornarem aos locais de origem, sendo o único caminho construir outros modos de viver onde chegam.





(foto: Humberto Brito/Divulgação)
Assim ocorre com Cartola e Aquiles, migrantes de uma ex-colônia portuguesa, que viajam guiados pela esperança, mas que, no entanto, ao chegar são confrontados com o preconceito, jogados à pobreza e às dificuldades de Portugal em 1980. Deixam para trás a mãe, que, imobilizada por problemas de saúde, não pode seguir com o marido e o filho. Mesmo que esse não seja o mote, o livro permite pensar como Portugal inclui negros vindos de suas ex-colônias ou até mesmo como se constrói a cidadania dos negros que lá nasceram.

Apesar de compartilhar a mesma língua, os percalços de Aquiles e Cartola demonstram que a integração é desafiadora. As cartas trocadas entre Glória, em Luanda, e Cartola e Aquiles, no Bairro Paraíso, em Lisboa, são recurso literário empregado por Djaimilia, que ameniza a dureza da vida dos imigrantes e de alguma forma ameniza o sofrimento. Aquiles é “aquele preto coxo” para os outros, mas é o filho que toma conta do pai e é amado pela mãe. A Lisboa encontrada é mais uma forma de degredo: ao contrário do sonhado, são enxotados, colocados à margem como quem vem de uma ex-colônia para o serviço braçal.


Retrato do sertão brasileiro


O serviço braçal também marca os destinos das personagens Bibiana e Belonísia, de Torto arado. A ilustração de capa da obra, de Linoca Souza, recria a foto de Giovanni Marrozzini para a série intitulada Nouvelle Semence feita em Camarões, em 2010. A imagem, que circulou muito pelas redes sociais brasileiras em textos feministas, pode ser confundida, tranquilamente, com o retrato de mulheres do sertão nordestino. Das leituras possíveis nas camadas da imagem, pode-se ver a cumplicidade entre as duas mulheres de mãos dadas e, ao mesmo tempo, a atitude de combate e enfrentamento. Como uma cena captada em Camarões pode parecer tanto retratar o Brasil profundo descrito por Itamar? A resposta, creio, é a diáspora negra. E a ilustração de Linoca coloca nas mãos das mulheres no lugar do facão a planta conhecida como espada- de-são-jorge, um signo do candomblé.





Em Torto arado, Itamar conta a história das duas irmãs, que vivem com a família em uma fazenda na região da Chapada Diamantina, no interior da Bahia. As vidas delas se atam não apenas pelo laço consanguíneo, mas pelo infortúnio de traquinices das duas, que, quando crianças, uma delas teve a língua decepada por um punhal guardo numa mala da avó Donana. Prateada, a arma enfeitiça as meninas ao ponto de se ferirem.

Romance de estreia de Itamar Vieira Junior, Torto Arado venceu o Prêmio LeYa (foto: Divulgação)
A história se passa num cenário rural, em que o sustento é retirado do trabalho braçal. Numa lida dura, sem descanso e apenas ao custo de ter onde morar, mostra os resquícios da escravidão nas relações de trabalho. Belonísia narra a vida da “mulher da roça”, que acaba sendo a repetição do destino da mãe, da avó e da bisavó. A sina dessas mulheres se perpetua por meio da geração de filhos, que como elas terão a vida atravessada pela servidão. Itamar faz o retrato de muitas mulheres daquela região do Brasil, que, por muitas razões, assumem o comando dos seus lares e das famílias.

Linguagem invisível

A língua cortada de Belonísia, que a faz emudecer, é metáfora potente da invisibilidade de alguns grupos no Brasil e a luta para se fazer ouvir. “Numa democracia, todos deveriam ter voz. Mas, a gente vive sistema muito imperfeito, determinado segmento tem voz e a maioria não tem voz”, pondera Itamar.





Torto arado
. De Itamar Vieira Junior
. Editora Todavia
. 264 páginas
. R$ 42,18

Belonísia, como narradora e personagem central, é uma escolha de Itamar por um outro lugar na literatura brasileira. O escritor, que estreia com esse romance, percebeu a ausência de protagonistas vindas de grupos subalternizados no país da servidão. As escolhas narrativas marcam a literatura desse baiano com ascendência indígena e negra, que sonhava, desde a infância, em ser escritor, mas postergou o sonho por ter que se dedicar aos estudos. Tornou-se geógrafo para buscar o sustento. A cultura dos esquecidos pela sociedade também é evocada em “A oração do carrasco”.

“Esses temas têm aparecido até o momento que eu escrevo, porque era uma necessidade que eu tinha, sempre me lembro de Toni Morrison, que dizia: ‘Se você quer ler um livro e não o encontrou, então escreva’. Percebi que, em nossa literatura contemporânea, poucas vezes os negros e indígenas apareciam como personagens principais.



Luanda, Lisboa, Paraíso
. De Djaimilia Pereira de Almeida
. Companhia das Letras
. 200 páginas
. R$ 59,90

Predominava, e é natural em uma sociedade extremamente desigual como a nossa, que a classe média branca tenha acesso aos recursos para escrever e publicar. Grande quantidade de obras tinha como protagonistas homens brancos oriundos da classe média”, observou. Itamar se insere numa linhagem de autoras negras que buscam na experiência, na vivência matéria-prima para a escrita e se reconhece devedor de Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves.

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