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Estado de Minas

23ª edição: O futuro do cinema brasileiro começa em Tiradentes

Tema da edição deste ano é A imaginação como potência e os desafios diante das novas políticas públicas


postado em 17/01/2020 06:00 / atualizado em 08/05/2020 17:10

Exibição de longa em 2018: este ano, a mostra de Tiradentes apresentará 113 filmes(foto: JACKSON ROMANELLI/UNIVERSO PRODUÇÃO %u2013 25/1/2018)
Exibição de longa em 2018: este ano, a mostra de Tiradentes apresentará 113 filmes (foto: JACKSON ROMANELLI/UNIVERSO PRODUÇÃO %u2013 25/1/2018)

Um atentado terrorista recente no Brasil lembrou um filme, em especial uma cena. Dois homens discutem. Um violento e outro melancólico. Um não pode ser sem o outro. O violento, com inflexão de guru, diz que “uma nação se tempera na porrada. Mesmo os americanos, com essa babaquice de democracia, vez ou outra dão uma zerada na 'negrada' deles. Se a gente vai ficar dando força pra leseira dessa 'baianada' de merda, vamos chegar aonde?”.

O melancólico toma comprimidos e o violento avisa derradeiro “eu sou sua única chance”, o melancólico replica “você é o fim” e entra em um Opala vermelho, vai embora levantando poeira em uma pedreira de ambiência meio primitiva, meio apocalítica. De costas enquanto observa seu duplo melancólico se afastar, o violento, que se chama Salesiano, tira o blazer e se vê em seu ombro um símbolo, que em um movimento a câmera revela ser o sigma integralista, que aparece como uma assombração que, enfim, traz à tona uma imagem mais profunda da violência do que o mero tribalismo urbano protofascista. Gongórico e fantasmagórico.

A cena é de Garotas do ABC, de Carlos Reichenbach. Lançado em 2003, muita gente disse que colocar em cena o símbolo integralista era coisa "implausível", uma fantasia descabelada do Carlão porque esse ideário pertencia ao passado e talvez o diretor não conhecesse com precisão o movimento para relacioná-lo a um grupelho fascistoide no século 21 no ABC Paulista.




Apesar da falta de compreensão típica de quem só admite realismo, naturalismo e análise crua dos fatos no cinema, essa fala tinha a seu favor um evento: naquele ano tomou posse um presidente que havia sido operário no ABC e, migrante nordestino, subia ao poder em uma transição tranquila: a democracia, enfim, funcionava. Ele estava na contramão do apocalipse fascista preconizado pelo personagem de Selton Mello. 2003 era, aparentemente, o enterro de tipos como Salesiano.

Dezessete anos se passaram e ver esse filme hoje surpreende porque, entre outros deslumbres, conseguiu ir além do objetivismo histórico que muitas vezes é calcado em uma lógica temporal refém dos eventos imediatos. Reichenbach evoca por meio de uma imaginação exuberante nossa modernidade anômala as estruturas duradouras e semiocultas de uma sociedade como a brasileira, em que coexistem diferentes tempos “que se adiantam e se atrasam”, como escreveu o sociólogo José de Souza Martins, em uma trama composta por elementos poéticos e contradições na forma de um melodrama de aventuras.




Esse acesso do filme ao fascismo recalcado e sua desambiguação não se deu, necessariamente, por agenciar os sentidos mais literais e evidentes na vida social contemporânea em 2002/2003, mas, sim, por explorar o imaginário social em uma fábula de amplo repertório simbólico – moderno e arcaico – em que temos, por exemplo, a violência “sagrada” do cangaço, a máquina de sonhos da indústria cultural (da música, do cinema) e também os símbolos pátrios àquela altura aparentemente desbotados (no caso, os do Exército, caros à família da protagonista Aurélia) e, como já dissemos, a letra sigma, o símbolo do integralismo, que condensa um conteúdo recalcado no imaginário social e que reaparece de maneira distorcida e deslocada, mas significativa.

O diretor não quis dizer que Salesiano e sua gangue eram mera e simplesmente o integralismo recauchutado, mas aponta ali – na violência e no chamamento à ordem – o mesmo elã que animou o integralismo no Brasil e que, não superado, era nosso “esqueleto no armário”.

"Esse desafio da imaginação na sua potência é o que nos interessa aqui e o que pode estimular um debate profícuo nesse momento do país"

Na época, Garotas do ABC foi acolhido com alguma condescendência e pouca compreensão. Não é pra menos: existia algo de anacrônico na sua recusa ao naturalismo, na inversão que realizava nas lógicas sociais binárias e da linguagem que não se conciliava com as expectativas cultivadas por um público acostumado aos filmes mais convencionalmente políticos.

O filme forçava a imaginação nos seus limites e isso é sempre motivo de alguma estranheza. Um gesto de liberdade como esse, fundado na imaginação rebelde, é capaz de conceber outras narrativas para nosso passado e desvendar alguns vetores possíveis de interpretação do presente. Não faço aqui uma defesa lírica ou romântica da imaginação na criação artística (no caso, cinematográfica), mas a proposição é pensá-la como um exercício necessário de transfiguração da miragem da realidade e que se recusa a responder às expectativas cultivadas – sejam elas nobres ou vis.

Atual circunstância política

Retomar um filme de quase duas décadas atrás como Garotas do ABC para falar de hoje e de nossa vida pública, falar de cinema e do papel do cinema não é uma escolha aleatória ou conveniente. Esse desafio da imaginação na sua potência é o que nos interessa aqui e o que pode estimular um debate profícuo nesse momento do país.

Um momento em que ocorre uma disputa entre formas de entender o passado e formas de projetar o futuro. Nossa atual circunstância política é o retorno de um passado recalcado (como o sigma embaixo do blazer do protofascista de Garotas do ABC), ainda que se apresente falsamente como futuro, como novo.

Conjunturalmente, não é só uma ruptura que vemos, mas um esforço (ainda que celerado) de mudança de paradigmas em uma obscenidade perversa. Assistimos a isso sentados em resignação lamuriosa ou, no melhor dos casos, em resistência reativa que “bota a boca no trombone” com pouco ou nenhum resultado efetivo.

Quando acontece uma violência não basta só “resistir”, mas se reinventar e buscar uma estratégia nova. A imaginação nos sugere não só a reconfiguração de nossas práticas sociais e políticas, mas também de nossos paradigmas.

Temática da mostra

Pensando em todas essas questões, “A imaginação como potência” é a temática da 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes e sugere a imaginação como a via privilegiada para desafiar a noção convencional de realidade (a interpretação dos fatos) e de realismo (no caso, a representação estética desses fatos) em um momento de constrangimento aos imaginários que estão fora dos padrões normatizados, uma guerra que não se dá só no campo institucional, no caso das políticas públicas, mas também no campo simbólico, no que diz respeito à produção cultural como um todo.

Exibição de longa em 2018: este ano, a mostra de Tiradentes apresentará 113 filmes(foto: Arte: Lélis)
Exibição de longa em 2018: este ano, a mostra de Tiradentes apresentará 113 filmes (foto: Arte: Lélis)


Em 2019, foi possível reconhecer que os filmes buscaram não só o testemunho crítico dos tempos passado e presente, mas a produção de imagens que se lançaram a imaginar outros mundos, outras possibilidades de existência. E, ainda, que as imagens possam também nos servir mais como sublimação do que como ruptura de nossas convencionais lógicas sociais e de linguagem. É importante admitir como o cinema tomou parte no processo cultural, ainda que seu alcance seja menor do que foi no passado e o acesso à maior parte dos filmes realizados é coisa ainda muito restrita.

Neste ano que começa, a Mostra de Cinema de Tiradentes revela uma produção que vem à luz sob a influência de um processo coletivo que gestou o escândalo que foi o ano de 2019. De um lado, a potência da imaginação em muitos filmes se deu por meio da fabulação, em uma poética da angústia e do medo em que o mundo imaginado revela um outro olhar para esses impasses, rompendo, em muitos casos, com uma noção vulgar de realismo que muitas vezes se provou mais esterilizante do que criativa no cinema brasileiro.

"O diretor não quis dizer que Salesiano e sua gangue eram mera e simplesmente o integralismo recauchutado, mas aponta ali - na violência e no chamamento à ordem - o mesmo elã que animou o integralismo no Brasil e que, não superado, era nosso 'esqueleto no armário'"

Por outro lado, é possível ver em alguns trabalhos o gesto criativo que não vai trabalhar a partir da distopia, mas vai criar imagens e procedimentos de linguagem com referenciais que devem muito pouco (ou nada) aos modelos em voga no mercado de cinema de autor internacional. Há fenômenos bem variados, que vão desde o diálogo com o cinema de gênero (ficção científica, terror), passando por filmes que evocam em sua narrativa outras noções de temporalidade e cosmogonias (afro, indígena), identidades (sobretudo LGBTI) e, também nos deram filmes identificados como documentário, mas que se lançam a criar imagens fora do arbítrio do real.

O cinema é um lugar de disputas simbólicas, que podem dar forma (e um sentido) sensível às novas ideias e perspectivas e, também, criar fissuras nos consensos que sustentam os modos de uma comunidade e uma sociedade entenderem e enxergarem a si próprias, sua história, suas feridas abertas e suas possibilidades, como foi o caso já citado de Garotas do ABC, tão mal compreendido em 2003 e que hoje se apresenta revelador por sua capacidade profética que, diferentemente do clichê que pode sugerir, não prediz o futuro, mas reconhece e anuncia uma dimensão menos visível do real e do presente, onde residem o passado (seus fantasmas, sombras, traumas) e as possibilidades de um futuro.

O nosso compromisso com o cinema brasileiro é aprendermos a olhar, perscrutar e discutir esses filmes hoje, é entender o peso e a medida do que as fabulações e fantasmagorias nos dão a ver. É injusto que tenhamos de esperar duas décadas para consolidar no nosso imaginário os seus sentidos potentes e deflagradores. A imaginação nos convida a deixar de ser vítimas do passado e reféns do futuro. A sua potência é a irrupção do novo, que detona com a insipidez criativa e, nos melhores casos (sempre os mais excitantes e perigosos), pode nos levar responder e agir hoje.

*Francis Vogner dos Reis é jornalista, mestre em meios e processos audiovisuais pela ECA-USP, crítico de cinema e coordenador curatorial da 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes.


23ª MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES

Locais: Centro Cultural Yves Alves, Largo das Fôrras, Larga da Rodoviária, Escola Estadual Basílico da Gama
Data: De 24 de janeiro a 1º de fevereiro
Tema: A imaginação como potência
Homenagens: atores Antônio e Camila Pitanga
Programação gratuita:
Exibição de 113 filmes (31 longas, 1 média e 81 curtas)
39 mesas de debates, performances artísticas e musicais, oficinas de lançamentos de livros


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