Jornal Estado de Minas

Sétimo dia da morte do artista mineiro Marcelo Dolabela terá poesia em bar de BH


Nísio Teixeira *
Especial para o Estado de Minas

Amigas e amigos do poeta e artista multimídia Marcelo Dolabela convidam amanhã, a partir das 22h, no Butiquim Desde 1999 – Rua Mármore, 758, Santa Teresa, para a cerimônia de poesia de sétimo dia do artista, morto em 18 de janeiro passado em decorrência de um acidente vascular cerebral (AVC) sofrido em 2018. A missa de sétimo dia será celebrada hoje, às 19h, na paróquia Santo Antônio.



Bares, botequins e poesia rimam muito bem com Marcelo Dolabela. Gosto de pensar que meu derradeiro encontro com ele em vida aconteceu ali, numa habitual mesa do bar Xoc Xoc, no Edifício Maletta – aquela colada na parede da entrada. (À esquerda, claro!) Foi durante a noite de 27 de junho do ano passado que me encontrei com Marcelo Dolabela – ou simplesmente Dola, pra muita gente. Marcelo, ao lado da companheira Ná, apesar de ainda visivelmente emagrecido pelo AVC que o acometera cerca de uns oito meses antes, já estava com uma dicção sensivelmente melhor desde o nosso encontro anterior, apenas uns 20 dias atrás, que ocorrera no bar Ponto Savassi (outro ponto de parada dele, mas sempre aos sábados e em períodos mais esporádicos e cíclicos), com a Luciana Tonelli, amiga e editora.

Saí muito feliz e otimista daquele encontro na mesa do Xoc Xoc. A ponto de dispensar nova rodada no Ponto Savassi no sábado seguinte, porque tinha que terminar de corrigir uns trabalhos da universidade e rever um artigo. Pra mim, Dola estava numa curva ascendente de superação da doença e o velho hábito de sentar e prosear com ele seguiria adiante, ainda que com cerveja reduzida, pra não dizer inexistente. Infelizmente, todavia, não foi o que aconteceu. O quadro acabou se revertendo e culminou no falecimento do poeta.

Sua morte deixa uma profunda lacuna não só na produção artística mineira e nacional, mas também no movimento da poesia pelo cotidiano belo-horizontino. Afinal, a despeito de um temperamento mais circunspecto de saída, Dolabela exercia incrível poder de articulação nas mais várias instâncias e fronteiras. (Abro parênteses aqui para dizer que, apesar da nítida personalidade distinta de cada um, curiosamente, esse elemento de convergência o aproxima, de alguma forma, do músico e compositor Flávio Henrique, outra saudade que também nos deixava praticamente na mesma trágica data de janeiro, dois anos atrás. Em ambos havia esse caráter gregário, de convergência múltipla de ações – o que para mim era sempre algo admirável: “Como esses caras conseguem achar tempo para dar conta de tanta coisa?”. Acho que vamos ter que tomar muito tempo para conseguir mensurar, se é que isso um dia será possível, a perda desses dois artistas.)



E aí voltamos ao ponto. Ou à mesa. Ou ambos. Para além do Xoc Xoc ou Ponto Savassi, havia a Cantina do Lucas, La Greppia, Mineirinho 2, Banzai... a mesa de bar parece-me que era esse ponto de convergência onde a vida e a obra poética de Marcelo se conectavam com a poesia do cotidiano, tão defendida por ele. OK. De um lado, havia a casa do poeta, ou melhor, havia o acervo dele. Pra mim, Dolabela não morava numa casa, mas em um acervo incrível e organizado das mais variadas produções artísticas: poesias, discos, livros, cartazes... Morava e se demorava no acervo para dali rabiscar as obras. Local de criação. Como diria o amigo Danilo Jorge, em qualquer país sério, Dolabela organizaria esse acervo em um museu ou em uma universidade. Mas houve momentos em que teve de se desfazer de parte dele para poder pagar as contas. Do outro lado, as performances, shows, lançamentos, ações, mostras, a sala de aula/oficina... o lugar em que obra e artista encontravam-se plenamente com o público. Local de fruição.

Mas tinha sempre essa mesa de bar no meio do caminho em que criação e fruição sentavam pra conversar e tomar cerveja. Aposto duas geladas e um torresmo do Xoc Xoc como tudo isso era refinado ali nos bares da vida. As mesas do bar funcionavam como uma espécie de laboratório aberto de Dolabela para quem lá quisesse chegar. Ao redor da mesa, escambo artístico imaterial nas conversas, mas também trocas tangíveis: um CD ou livro por outro livro dele, algum convite ou o CD Substância. Claro que sobrava tempo e também havia alguma leitura crítica do que chegava ou do que estava na ordem do dia. E, nessas horas, quase sempre emergia o Dolabela das teorias engraçadas e dos bordões clássicos, o que gerou um neologismo entre alguns pares, o dolabelismo, que resumi num haicai “guilhermino” publicado pelo Carlos Barroso: Dolabelismo/pra tudo na vida uma teoria/para cada uma delas um aforismo. Nesses momentos, costumava gesticular com os braços e exclamar, como na ocasião abaixo:

–  Aí não xará! Pegar um texto, clicar no “selecionar tudo” e depois “centralizar” e dizer que é poesia? É bom também – mas podendo evitar é melhor!

Esse aspecto evidencia outro movimento da poesia cotidiana de Dolabela: a sua própria trajetória derivada do “poeta do mimeógrafo”, que já o colocava pra ter que dar conta de tudo mesmo: escrever, editar, publicar, distribuir, num momento histórico em que era imperativo que ação política e ação poética caminhassem juntas, braços dados ou não.

Nascido em 17 de setembro de 1957, em Lajinha, a 342 quilômetros de BH, Dolabela veio em meados de 1970 para a capital mineira estudar veterinária na UFMG, com a expectativa de voltar à cidade natal e trabalhar no meio rural. Todavia, desde lá já havia demonstrado inclinação para as letras e sua experiência inicial como discente na veterinária o fez rejeitá-la veementemente – ao ponto, inclusive, de ter se tornado vegetariano. Aí migrou para o curso de letras, estreitando também a convivência com estudantes de outros cursos da Fafich. Surge dali então o contato com o mimeógrafo e o grupo Cemflores, que incluía, além de Carlos Barroso, “Gatto” Jair Fonseca, Juca, Carlos Augusto Novais, Luciano Cortez, Ilka Boaventura, entre outros.



A meu ver, essa conjunção de autonomia criativa do poeta e sua inserção de contato no cotidiano – inclusive político – de seu entorno social sempre foi um aspecto caro ao Dolabela. Seu arco de interesse poético não se deteve apenas, então, na chamada “poesia marginal” (que não está necessariamente ligada a, digamos, uma poética do mimeógrafo), mas seus mais de 40 anos de carreira promovem um panteão do poético: da produção em poesia visual ao haicai; do poema improvisado ao soneto alexandrino; do poema-processo à canção de rock; do livro-objeto ao cinema; da poesia concreta ao vídeo. Precisamente porque a poesia, para Dolabela, deve ocupar inclusive o espaço da galeria, do muro, da canção, do palco, da tela do cinema e do vídeo.

– Tô falando! Aí, ‘aspas’ né?

“A Cemflores foi – e ainda é – meu jardim de infância, minha madureza e meu doutorado. Ali – aqui, aprendi tudo (ou quase). Política e poética. Militância e ânsia. Utopia e poesia. Tudo banhado no ácido de ser a alegria da prova dos nove”, escreveria Dolabela na publicação Cemflores – Lira dos Quarent'annos (1977-2017). Mais do que embrião para ação política e poética, do Cemflores também vieram três importantes grupos de rock da capital mineira: Dolabela puxou o Divergência Socialista; Rubinho Troll o Sexo Explícito (onde o futuro John “Pato Fu” Ulhoa tocava a guitarra); e Gato Jair o Último Número.

Dolabela nutria pela MPB e rock nacionais – afinal, há essa divisão? – também um grande apreço. Colecionista, adorava organizar e tabular tudo o que tinha. Esse caráter enciclopédico, dolabelismo típico, se revela não só na poesia, mas também no Dolabela professor (tipologia poética, tipologia do lead jornalístico...), e sobretudo em produções em torno da música, sendo a mais célebre delas o ABZ do rock brasileiro, lançado em 1987. E aí, para voltar à mesa do Xoc Xoc, Dola estava animado em toda a sua melomania para rever e repotencializar para uma nova edição deste trabalho – apesar do caráter gigantesco do empreendimento.



Mas, para mim, Marcelo não se importava com o tamanho das coisas que viria a fazer. Para ele, creio, o mais importante, sempre, era nunca ter medo de fazer tudo que fosse possível em termos poéticos. Assim, as mesas eram sempre visitadas por outros poetas, músicos, artistas, escritores, professores, jornalistas, discentes e ex-discentes, com quem também sempre desenvolvia alguns projetos – que o digam Ana Gusmão, Lidyane Ponciano, Brenda Marques Pena, Túlio Travaglia... Muitas parcerias gestadas ali.

Perder o amigo-poeta-músico no dia em que o então representante máximo da política cultural brasileira referenciou o nazismo tornava tudo ainda mais difícil. Também por razões paternais saí antes do sarau derradeiro de sua despedida na Casa do Jornalista, totalmente tomada já nas preliminares por colegas, familiares, amigas e amigos.

Mais tarde, pensando no sarau, envio uma mensagem para a Ná: “Sozinho em casa agora/depois de ninar Aurora/ainda não consigo acreditar/que meu dileto amigo foi-se embora! Uma honra e privilégio poder ter compartilhado tantas conversas e aprendizados com o Dola”. No dia seguinte, a resposta: “Também me sinto honrada. Falo devagar os versos de Drummond: 'Deus me deu esse amor na matureza. E por isso sou grato'”.



Dolabela já deixa de ser matéria (o corpo foi enterrado em sua Lajinha natal) para se tornar energia. Que rima com poesia. Que possa inspirar cotidianos de criação e fruição, além dos bares, como o de amanhã, na poesia de sétimo dia! Se “saudade é felicidade que ficou”, sigo sentindo falta dos dolabelismos...

– Eu tô falando! Cês brincam demais!


* Jornalista, professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)


Belo Horizonte, adeus

Nasci, como todos, do mesmo ovário;
vivi tanto, sem ter aniversário;
aprendi a lição do dicionário;
não tive endereço; não tive horário;

levei a cruz, fiz meu próprio calvário;
cri em fortunas, fui tolo e otário;
cumpri minha missão e fui missionário;
paguei, com meu sangue, o sal do salário;

a usura foi vil sobre meu erário,
me fez de escravo, me fez de operário,
me dando, em troca, um festim ordinário.

E se digo não, sou incendiário.
E o que me faltou não foi necessário,
foi apenas uma data no calendário.



Heiddeger's song # 1 e 2

1
palestras escritas em restos de nuvens
transformam as letras em pedras de sal
os ventos que vêm sob os pés da memória
sopram as pétalas do azul do caos
os anjos que olham os escombros da história
vão além da lei do bem e do mal

as palavras da tribo o nome de Deus
o eterno carimbo impresso no céu

2
como falar da verdade
na casa de Sheherazade
como falar de pecado
na casa de enforcado?

como falar consciência
na casa da violência?
como falar do poeta
de sua obra completa?

como falar de amor
no lar do torturador?
como falar de cultura
na casa da ditadura?

como falar de ruído
para quem não tem mais ouvido?
como falar poesia
depois do fim da utopia?

De puro sangue

eu     enquanto carne
eu     enquanto osso
eu     enquanto karma
eu     enquanto posso

posse de mim mesmo
resto sem um traço
resma de meu aço
a vida sem remorso



Maletta Revisited #86

eu estou nas maravilhas do mundo
no Coliseu da cidade
no naufrágio dos poetas
ouvindo Scheherazade

é o zum-zum da matilha do mundo
da Muralha da China, o barulho,
a baunilha dos vagabundos

única geração que ouve
a triste balada dos mouros
o transplante das décadas
a arcádia sem fé e sem ouro.



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o poeta não busca obra mas crise
vive para espalhar fome e problema
abre ao sol sua própria valise
e mostra que nem sempre traz poema

o poeta se anula na reprise
se nega quando canta o mesmo tema
por favor se chamar por um avise
para desde já desviar meu lema

quero trazer as gavetas vazias
nenhuma ideia para o próprio texto
que dos papéis se fartem os cupins

não quero meus dias nos folhetins
levem os versos deixem-me o gesto
prefiro morrer a viver manias