Esforço, esmero e invenção se encontram novamente na Olympio, a classuda revista mineira que reúne contos, poesias, perfis, memórias e outros gêneros literários, além de ensaios visuais, em um só volume. O número 2 vem com um ingrediente a mais: a indignação. “Para onde estamos indo nesta marcha desenfreada rumo ao passado e ao atraso?”, pergunta o editorial da revista, que também provoca: “Para que serve a literatura neste entardecer de sombras?”. A resposta, ainda segundo o editorial, “não é rançosa, nem melancólica, nem tampouco desesperadora. Ao contrário, respiramos aqui a alegria e a confiança de pensar com liberdade, de escrever com liberdade.”
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23ª edição: O futuro do cinema brasileiro começa em Tiradentes''A servidão é uma realidade no Brasil de hoje'': livros narram trajetórias de famílias negrasLivro narra violento fim do Arraial do Curral del Rei e criação de BHO encontro do Saara com o sertão de Rosa em A cidadela, de Maurício Meirelles'Não se humilha, não' recomenda amor próprio e outros conselhos Bordadeiras de Caeté registram em livro pontos históricos da cidadeLetras do New Order inspiram romance geracional 'Controle'Livro desmitifica glamour de Paris para estrangeirosMuros do mundo contemporâneo barram migrantes Dois clássicos da literatura e do cinema são lançados em quadrinhos“Enquanto o homem estiver observando a vida de fora, ele está condenado a uma espécie de erosão”, alerta Krenak, autor de um dos best- sellers de 2019: Ideias para adiar o fim do mundo (Companhia das Letras), 30 mil exemplares vendidos. Uma das reflexões de Krenak ganha maior relevância depois das enchentes que alagaram e devastaram Belo Horizonte nas últimas semanas: “O céu, apesar de parecer leve, é muito pesado; ele pode cair e rachar a terra.”
Idealizadora e uma das editoras da revista, a escritora Maria Esther Maciel explica a decisão de destacar o depoimento do líder indígena: “Num contexto de destruições desenfreadas, vide os desmatamentos, as queimadas, as rupturas de barragens em Mariana e Brumadinho, a dizimação de comunidades indígenas em diversos lugares, o extermínio de espécies animais e vegetais, creio que a escolha de Ailton Krenak se justifica plenamente, por ser ele uma das principais vozes nativas a se posicionar de maneira consistente, contundente e original diante do agora do Brasil e do mundo”.
Krenak em Belo Horizonte
Krenak é um dos convidados para o lançamento neste sábado, na Livraria da Rua, a partir do meio-dia, com a presença dos quatro editores: Esther Maciel, José Eduardo Gonçalves, Julio Abreu e Maurício Meirelles. Também será relançado o primeiro número, de 2018, agora com nova identidade visual.Além de Krenak, a contundência está representada na revista por um trecho das memórias do poeta Ricardo Aleixo (Cruz e Sousa & o lugar do negro), pela representação das diásporas contemporâneas, na visão do angolano Kalaf Epalanga, e pelo resgate do poeta Adão Ventura (1939-2004), apresentado pelo escritor Carlos Herculano Lopes, e autor dos seguintes versos: “Para um negro/ A cor da pele é uma sombra/ Muitas vezes mais forte que um soco/ Para um negro/ A cor da pele/ É uma faca/ Que atinge/ Muito mais em cheio/ O coração”.
As 280 páginas do número 2 da Olympio, contudo, comportam expressões artísticas que vão além da indignação. A (re) descoberta dos versos “anfíbios” da manauara Astrid Cabral, os ótimos contos de Gustavo Pacheco, José Eduardo Gonçalves e Evando Nascimento (este último, com apresentação de Sérgio Sant’anna), o resgate de valiosos escritos de Octavio de Faria e Mário Peixoto, a terna reconstituição da infância em Araraquara (SP) do diretor teatral Zé Celso Martinez Corrêa pelas lembranças do amigo Ignácio de Loyola Brandão... “Não há o que não haja”, como professa o lema da revista.
Convite a colaboradores
“Sem abrir mão da imaginação e dos sentidos, a Olympio vem tentando exercitar, de maneira explícita, a diversidade de autores e olhares sobre o país e o mundo contemporâneo. Convidamos colaboradores de diferentes gerações, estilos e procedências sociais, étnicas e geográficas”, destaca Maria Esther.
Para José Eduardo Gonçalves, “a cultura está no epicentro de uma guerra ideológica e muitas conquistas da sociedade civil estão em risco. Portanto, uma revista literária não pode ignorar o triste e alarmante horizonte de sombras. A revista precisa apontar para esta escuridão e dizer que a cultura não vai esconder ou se acovardar”, defende o editor, que resume o posicionamento da Olympio: “Uma revista de literatura e arte tem a obrigação ética de se insurgir contra essa onda retrógrada.”
Ou, nas palavras escolhidas para a conclusão do editorial: “Nós ficaremos ao lado dos que resistem. Na floresta, no teatro, nos livros. Na cultura, que a tudo atravessa. Na vida, que nos espanta todos os dias.”
Olympio – Literatura e arte
Lançamento do número 2 da revista e relançamento do número 1, com os editores e Ailton Krenak. Editoras Tlön e Miguilim, 280 páginas. R$ 54 cada exemplar. Sábado, 8 de fevereiro, a partir do meio-dia. Livraria da Rua – R. Antônio de Albuquerque, 913, Savassi, Belo Horizonte. A revista pode ser encontrada também em BH nas livrarias Ouvidor, Quixote, Scriptum, Leitura, Canto do Livro e Usina das Letras.
Artigo
Gerações em revista
José Eduardo Gonçalves *
A tradição literária é forte em Minas, especialmente em Belo Horizonte. A cidade mal havia nascido e já em 1901 e 1902 registra a existência, ainda que breve, das revistas Minas Artística e Horus, respectivamente. Como bem disse o historiador e economista João Antônio de Paula, em seu livro Livraria Amadeu (Editora Conceito, 2006), as gerações literárias de Belo Horizonte criaram revistas que, de certo modo, tentavam expressar referências culturais, estéticas e mesmo políticas de seus autores.
A geração modernista criou A Revista, que teve três números entre 1925 e 1926, tendo Carlos Drummond de Andrade como um de seus diretores, o poeta Emílio Moura como redator e Pedro Nava como colaborador. Foi uma revista ousada e disposta à expe- rimentação. Como reação a este grupo modernista, em 1929, surgiu o suplemento Leite Criôlo, que circulou como encarte de O Estado de Minas.
Em 1946, surgiu a revista Edifício, que reuniu a geração de Francisco Iglesias, Sábato Magaldi e Autran Dourado, entre tantos outros. Essa geração, que reunia não só escritores, mas também jornalistas e professores, distinguiu-se da anterior por um “engajamento mais explícito e militante”, como diz João Antônio. Um ano depois, Hélio Pellegrino criou a revista Nenhum, que não passou do primeiro número. Nos anos 1950, surgiram as revistas Vocação, Tendência e Complemento. Esta geração Complemento, segundo o professor Wander de Melo Miranda, é a primeira que vai romper “radicalmente” com o tradicional que dominava a cidade nos campos da cultura, do comportamento e da política.
Os anos 1960 viram surgir a revista Estória, que durou seis edições. A década de 1970 registrou um forte movimento de resistência, com o aparecimento (e quase sempre o precoce fechamento) das revistas Bel’Contos, Silêncio, Circus e Inéditos. De lá pra cá, a cena editorial literária minguou (a revista Palavra, editada entre 1999 e 2000, era dedicada à cultura em geral). A se destacar apenas a respeitável continuidade, até os dias de hoje, do Suplemento Literário de Minas Gerais, fundado por Murilo Rubião, em 1966. Como se vê, já se passaram alguns anos. Neste sentido, o escritor Silviano Santiago já disse, sobre a Olympio, que “esse trabalho editorial, quase inédito em termos das últimas décadas, garante o retorno de Minas ao mapa literário contemporâneo”. Eu diria que há uma nova geração que se apresenta para dar o seu recado.
* Jornalista, editor e escritor. Foi editor da revista Palavra
Poemas
Aniversário
Nicolas Behr
esperando, desde cedo,
aquele telefonema
que não virá
do amigo profundo,
desconhecido, talvez morto,
talvez nem nascido ainda
no orelhão
o fio pendurado
balança
• • •
Enredo
Thaís Guimarães
A voz é uma aranha que se enrola
num fio longo e invisível que nos toca
espera as moscas mortas
por seu veneno ácido
se torna uma lagarta peluda
solta gosma e raiva silenciosa
A voz fina corta
a ponta de um bisturi
As mãos se tornam patas
Opera-se a metamorfose
A aranha rasga a frágil teia
se enrosca na própria cabeleira
A lagarta transmuda-se
em bruxa que vagueia
Os insetos tensos
respiram antes do ataque:
salto na loucura
voo no escuro
Os insetos
caem
• • •
Passarês
Astrid Cabral
Entre folhas secas ou verdes
canta ao balcão da janela
um pássaro estrangeiro.
Tal o olhasse sem enxergá-lo
conheço-lhe o passarês
sem jamais decifrar-lhe a voz.
Não é de hoje que me aflige
essa terrível surdez
a vedar-me sua msensagem.
Céus, são tantas as linguagens
que sempre me deixam à margem
cega ao que pássaros sabem.
Trechos
• Ailton Krenak
“Ecologia não é você adaptar a natureza ao seu gosto. É você estar dentro do gosto da natureza.”
“Não creio que as cidades possam ser sustentáveis. As cidades nasceram inspiradas nas fortalezas antigas que tinham a função de proteger a comunidade humana das intempéries, dos ataques das feras, das guerras. Em tempos de paz elas vão ficando mais permeáveis, mas chamar de ‘sustentável’ um lugar que confina milhões de pessoas é uma licença meio exagerada. Algumas cidades são verdadeiras armadilhas; se acabar o suprimento de energia morre todo mundo lá.”
“Nossa história está entrelaçada com a história do mundo. Mas o país despreza essa história (…). Um desprezo tão grande que fica descartada a possibilidade de uma reconciliação da nossa ideia de povo e de país como território.”
• Ignácio de Loyola Brandão
Zé Celso, que nunca será feio
“Éramos unha e carne. Eu seguia, silente e fascinado, o Zé, como sigo até hoje, sua divina loucura, irracionalidade, arrojo, briga, facilidade verbal, audácia, o mundo maravilhoso que criou, cria, vai criar, sua capacidade de analisar globalmente, de visualizar cenas, de colocar o mundo e o Brasil sob uma perspectiva tão lúcida, mas tão lúcida que, muitas vezes, fica a falar sozinho num mundo uniforme, globalizado, fodido, chato, dominado pela ganância, dinheiro, assepsia, popularização. Fico deslumbrado com a sua ausência de medo, eu que tenho medo de tudo.”
• Ricardo Aleixo
Cruz e Souza & o lugar do negro
“É óbvio que Cruz e Sousa é negro. E é poeta. E se sabia negro, com toda a ambivalência que a palavra ainda hoje comporta. Só nessa medida pode ser considerado um 'poeta negro', ou um 'negro poeta', tanto faz. Importa é ler a sua poesia, separar nela o que é mera exibição virtuosística de um simbolista ainda preso, no plano formal, à estética parnasiana, e o que resiste a um cotejo com, por exemplo, as obras do maranhense Maranhão Sobrinho (1879-1916) e do baiano Pedro Kilkerry (1885-1917), para nos restringirmos ao contexto do simbolismo brasileiro, em sua 'face mallarmaica' (Haroldo de Campos). O resto não importa.”
Entrevistas com os editores
Maria Esther Maciel
(escritora e idealizadora da Olympio)
Quais as principais diferenças entre o primeiro e segundo números da revista?
Os princípios que norteiam os dois números são os mesmos: a transversalidade, a pluralidade e a diversidade. Mas o volume de textos aumentou no segundo número e o projeto visual foi totalmente reformulado. Com a parceria feita com a Editora Miguilim, o Estúdio Guayabo passou a atuar como nossa equipe de design e reformulou todo o trabalho gráfico. Agora temos uma revista em novo formato, com recursos visuais mais ousados. O primeiro número, que estava esgotado, também mereceu uma reformatação e está sendo relançado com nova roupagem.
Por que o editorial afirma que a nova edição está “carregada de indignação”? E o que é possível fazer com esta indignação?
Diante do cenário catastrófico do Brasil atual, não há como não nos indignarmos. Cultura, educação, meio ambiente, direitos humanos, tudo está sendo desmantelado por esse governo retrógrado, perverso e irresponsável. Buscamos trazer para este segundo número da Olympio reflexões, depoimentos, imagens, criações poéticas e ficcionais que se ofereçam como contrapontos a esse cenário. Tanto que o “personagem” principal da edição é o líder indígena Ailton Krenak, com suas ideias instigantes sobre como “adiar o fim do mundo”, sua sensibilidade social e ecológica, seu olhar crítico sobre o que tem acontecido no nosso país. Buscamos transformar a indignação em arte, poesia, pensamentos não ortodoxos, de forma a fazer frente, via sensibilidade e reflexão crítica, a este momento desalentador em que vivemos.
Julio Abreu
(designer)
Como se chegou à linguagem gráfica do segundo volume e à unidade com o número um?
A Olympio é uma revista independente, dirigida pelos quatro editores e financiada com recursos próprios, mas que só consegue se viabilizar, efetivamente, com o aporte de parcerias fundamentais. A primeira edição contou com o apoio da Editora Autêntica. Agora, a segunda edição só foi possível com a entrada das editoras Tlön e Miguilim, em associação que pretende ser defi- nitiva. Foi o editor da Miguilim, Alexandre Machado, quem defendeu a ideia de um novo conceito de design e nos provocou a reformular o projeto gráfico. A proposta apresentada pelo Estúdio Guayabo nos agradou bastante, de forma que não só a adotamos como decidimos aplicá-la na reedição da Olympio 1, que estava esgotada. Com isso, nós temos agora uma unidade visual entre as duas edições. É com esta cara que a revista vai seguir adiante.
Como se chegou à imagem da capa? O que ela representa?
Diferentemente da Olympio 1, em que a imagem da capa foi retirada do ensaio visual do Eustáquio Neves publicado na revista, a Olympio 2 traz na capa uma imagem que não se desloca de nenhum conteúdo. A imagem da capa tem essa autonomia, queríamos que desse conta da diversidade de textos que compõem a revista, por isso uma imagem autônoma e mais conceitual. Acreditamos que foi um bom achado. Trata-se de um trabalho de Nydia Negromonte, Bússola, um objeto de bronze: uma faca fincada num chuchu. A bússola determina uma direção, uma orientação, que nos coloca questões ligadas à espacialidade. Mas por sua forma, evoca também o relógio de sol de jardim, inserindo-o então numa dimensão temporal. Dessa maneira, o objeto torna-se uma síntese espaço-temporal. E responde bem ao que o leitor encontrará neste número.
Maurício Meirelles
(arquiteto e escritor)
O que mais o impressionou no depoimento de Ailton Krenak?
Ailton Krenak é um pensador – não apenas da cultura indígena e de seus modos de ser e de estar no mundo, mas um pensador que transita pela tradição do pensamento ocidental em áreas como antropologia, etnologia, filosofia. Ele é um xamã cultural, já que tem a habilidade de cruzar as fronteiras entre os universos “indígena” e “não indígena”, por assim dizer, administrando as conflituosas relações entre eles. Essa característica está presente em sua fala, inclusive, já que Ailton usa o pronome “nós” para se referir ao coletivo humano, de uma maneira ampla, ou especificamente ao grupo humano dos indígenas, dependendo do contexto em que ele se coloca. Ailton Krenak é também um escritor. Mas, em vez de escrever os textos, ele os elabora de maneira oral, seguindo a tradição de seus antepassados. Ele tece poeticamente as histórias e organiza suas ideias à medida que fala. Ou seja, é um processo de escrita em que a presença do outro é fundamental.
Como foi o trabalho de recuperação de uma importante passagem da biografia de Ailton Krenak na Assembleia Nacional Constituinte? O que há de revelador no episódio?
A atualidade da manifestação que Ailton Krenak fez ao Congresso Nacional, em 1987, evidencia a permanência e a importância das questões levantadas por ele durante a Constituinte: o direito dos povos originários ao território que já ocupavam milhares de anos antes da chegada dos primeiros europeus a esse lugar, que, só então, passou a se chamar Brasil. A ação de Ailton foi fundamental para a inclusão, na Carta de 1988, dos dispositivos que asseguram aos indígenas direitos legais não apenas às suas terras, mas também à sua autodeterminação. Direitos constitucionais que vêm sendo sistemática e intencionalmente desrespeitados pelo governo federal – a quem cumpre protegê-los. Naquela performance em que Ailton, vestindo um terno branco – ele tinha sido impedido de entrar no plenário com a roupa casual que usava –, pinta o rosto com a pasta de jenipapo, assistimos ao nascimento simbólico não apenas de um dos principais líderes e ativistas indígenas do país, mas também de um artista. Usando seu corpo como território de ação biopolítica, Ailton Krenak antecipa, já em 1987, algumas das preocupações centrais da arte contemporânea.