Jornal Estado de Minas

De anjos a exterminadores

Parasita vai muito além da representação visual da luta de classes



O marxismo criou a expressão “luta de classes” – se não a criou, pelo menos a transformou num utensílio do idioma. Ou seja, uma expressão que qualquer estagiário de redação usa com plena convicção de que sabe do que está falando. Foi o que aconteceu com “trauma” de Freud, “paradigma” de Thomas S. Kuhn ou “quântico” de Max Born.



Não importa quem inventou o termo. Na verdade, nem importa quem o gravou na linguagem popular, um suporte mais duradouro do que o mármore. Importa que após esse ato de nomear uma coisa abstrata ela se torna estranhamente concreta e as pessoas mais variadas (inclusive jornalistas culturais não remunerados, como eu) se julgam no direito de botá-la no bolso e sacá-la sempre que for preciso.

Planejei falar do filme coreano Parasita, Palma de Ouro em Cannes em 2019 e o grande vencedor do Oscar 2020, sob a ótica da luta de classes, mas essa luta não é uma guerra tão nítida quanto – por exemplo – a guerra entre as formigas e os cupins. O que acontece entre os ricos e os pobres é luta, mas em certos aspectos é dança, em outros aspectos é intercurso sexual, em outros é esporte radical, em outros é jogo de cena, em outros é bestialização coletiva...

“Luta”, apenas, não descreve a relação que neste filme de Bong Joon-ho une a família rica (os Park) e a família pobre (os Kim). As duas são simétricas: pai trabalhador, mãe atarefada e cheia de angústias, filha lindinha, filho voluntarioso. Dentro desse quadro, cada um dos oito personagens cresce no seu próprio formato, atira-se no caminho sem volta de suas próprias decisões, sejam pensadas ou aleatórias.



A “luta” entre as classes, em termos como estes, tem algo de sedução e algo de estupro, tem algo de convivência pacífica e de vizinhança em pé de guerra, tem algo de libido predatória e algo de nojo controlado. Como se fosse uma luta entre iguais, mas com armamentos distintos.

Não será nenhum spoiler se eu disser que, por uma combinação de circunstâncias, a família de favelados consegue empregar um dos seus membros na casa da família rica; e depois, um segundo; e depois, um terceiro... E por aí vai.

O objetivo deles é previsível, e o resultado disso também. Conheço (aqui do lado de fora da tela) dezenas de histórias pitorescas sobre empregados que, no primeiro piscar de olhos dos patrões, aprontam uma, em sua ansiedade de sentir o gostinho do conforto e do consumo.



Quando vou numa casa bem rica, como a arquitetônica moradia da família Park, tenho às vezes a fantasia de que me empreguei ali como mordomo e que, mais dia, menos dia, a família vai passar férias fora e eu ficarei durante uma semana inteira por dono da casa, sozinho. A partir daí, como dizem as sinopses na web, “mayhem ensues”. Instala-se o caos.

Algumas pessoas de classe baixa têm atitude contraditória na reação à riqueza: há admiração, sonho, mas também surge o impulso da destruição quando está ao alcance. Porque (aí é minha “mente rica” que interpreta) a gente só dá valor ao que conquistou com esforço, e quando um grupo de gente maltrapilha se apossa de uma adega, de uma despensa, de uma mansão, por que razão deveria tratar aquilo com reverência e parcimônia? O grande exemplo cinematográfico disso é a ceia dos mendigos no Viridiana (1960) de Luís Buñuel.

Parasita é um exemplo interessante da figura narrativa que denomino A Tomada, por inspiração do conto Casa tomada (1951), de Julio Cortázar: uma situação em que pessoas permitem que seu ambiente seja gradativamente invadido, de forma aparentemente casual e pacífica, por pessoas estranhas que de repente tomam o controle de tudo.



Outro exemplo clássico disto é uma história de terror que nada tem de terror, mas que até hoje me dá arrepios quando me lembro dela (como ocorreu ao ver esse filme). É o conto de Hugh Walpole A máscara de prata (1932), que incluí na minha antologia Freud e o estranho – Contos fantásticos do inconsciente (Casa da Palavra, 2007). 

Existe algo ominoso, algo cruelmente veraz na sua brutalidade: o vulcão virtual de violência que jaz sob cada jardim gramado onde uma família rica recebe convidados chiques – para uma festa-coquetel, para um casamento ao ar livre, um aniversário de criança...

Nesse filme, lembrei-me também, inexplicavelmente, do clássico pouco conhecido da ficção científica As esposas de Stepford, livro de Ira Levin, filme de Bryan Forbes. Lembrei-me do arrepiante almoço ao sol no filme Corra! (Get out), de Jordan Peele, em que um rapaz negro aceita o convite para um fim de semana na mansão dos pais da noiva. 



Todo roteirista pode bem avaliar as possibilidades de variados efeitos quando encaixamos uma cena de festa seguida por uma cena de carnagem. Carnagem é o que cada espectador está esperando ver, por este ou aquele motivo. Parasita é um desses filmes em que numa ocasião social cheia de tensão civilizada começa a se quebrar uma casca com força, e a gente sabe que alguém vai matar alguém de maneira horrenda. O bom é saber isso possível em cada um deles. E quando acontece, a surpresa é igual, a plausibilidade também.

A luta de classes é sempre encarada como o equivalente sociológico ao choque de placas tectônicas. As histórias humanas são as faíscas produzidas por esse atrito. “Luta” é adequado, mas “parasitismo entre classes” talvez fosse um termo mais interessante, porque abriria caminho para comparações possivelmente úteis.

As duas famílias também são parasitas das telecomunicações. Tudo que fazem é mediado por selfies, wi-fi, mensagens, videofone, telefonemas, código Morse. Pode-se igualmente dizer que, se como dizia William Burroughs, “a linguagem é um vírus do espaço exterior”, então as webcomunicações são um vírus criado em laboratório e que está nos parasitando até agora.



Opor um núcleo rico e um núcleo pobre significa a possibilidade de jogar com cumplicidades recíprocas, quando convier à história, e antagonismos declarados, quando for o caso. As chanchadas de Oscarito e Grande Otelo não cansavam de arremessar essa dupla de toscos-simpáticos nos ambientes mais grã-finos da época. E, como em Parasita, instalava-se o caos.

Bong Joon-ho, sobre Parasita


Para pessoas de diferentes condições sociais, a vida em conjunto num mesmo espaço não é coisa fácil. É cada vez mais o que ocorre num mundo triste como o nosso: as relações humanas baseadas na coexistência ou na simbiose não podem se sustentar, e um grupo é levado a assumir uma relação parasítica quanto ao outro. No interior de um mundo assim, quem poderá apontar seu dedo contra uma família que batalha, uma família travando uma verdadeira briga pela sobrevivência, e chamá-los de parasitas? Eles não eram parasitas desde sempre. Eles são nossos amigos, são nossos vizinhos, nossos colegas de traba- lho. Tudo que aconteceu foi que eles foram empurrados por sobre a borda de um precipício. Ao ser a descrição da vida de pessoas comuns que caem numa tragédia inevitável, o filme é: uma comédia sem palhaços, uma tragédia sem vilões, e nele tudo conduz a um enfrentamento violento e uma queda de ponta-cabeça escada abaixo. Estejam convidados a assistir à ferocidade incontrolável desta tragicomédia.


* Braulio Tavares é escritor, poeta, tradutor e pesquisador de literatura fantástica. Artigo originalmente publicado no blog https://mundofantasmo.blogspot.com