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Estado de Minas

Livro 'Sobre os ossos dos mortos' obtém vendas expressivas no Brasil

A simbiose apontada por Assis Brasil é a força maior da notável obra da polonesa Olga Tokarczuk, Prêmio Nobel de Literatura


postado em 21/02/2020 06:00 / atualizado em 21/02/2020 14:08


“Entre história e personagem deve haver uma tal simbiose que faça pensar que ambos nasceram juntos e por si mesmos.” O ensinamento está no capítulo “O personagem, o poderoso da história, o irradiador da narrativa”, de Escrever ficção: um manual de criação literária, de Luiz Antonio de Assis Brasil, um dos grandes lançamentos de 2019. Ao hierarquizar os elementos essenciais de um romance, o escritor e professor gaúcho defende: “É o personagem, quando bem construído, que dá sentido a tudo que acontece na história”. 
A simbiose apontada por Assis Brasil é a força maior do notável Sobre os ossos dos mortos, da polonesa Olga Tokarczuk. Prêmio Nobel de Literatura 2018, Tokarczuk tinha até então apenas um livro lançado no Brasil: Os vagantes (Tinta Negra, 2014). Mas apenas a leitura do romance editado pela Todavia, intitulado a partir de uma citação do poeta William Blake (“Conduza seu arado sobre os ossos dos mortos”), já confirma o acerto da escolha da academia sueca. Tudo por causa da narradora, a professora de inglês aposentada Janina Dusheiko, que vive em uma região isolada da Polônia, onde o inverno gelado é marcado por um céu “escuro e baixo, que paira sobre nós como uma tela suja, onde as nuvens travam batalhas ferozes.” Autointitulada “loba solitária”, Janina prefere os animais aos seres humanos: “Nós temos a visão do mundo, mas os animais têm a percepção do mundo.” Tem especial aversão aos caçadores que tratam a floresta “como se fosse a sua própria fazenda – tudo o que havia lá lhe pertencia.” Reticente em relação à psicologia e sociologia, mas aficionada por astrologia a ponto de imaginar um canal de tevê (“Influência do Cosmos”) apenas sobre os efeitos dos astros e planetas na vida das pessoas, encanta-se com a transição do dia para a noite: “É no crepúsculo que os fenômenos mais interessantes acontecem, pois é quando as diferenças simples se apagam. Eu poderia viver num crepúsculo eterno.” 

A grande virtude do romance, e que certamente contribui para as vendas expressivas no Brasil (17 mil exemplares de três reimpressões da edição lançada em novembro), é a habilidade da autora em se apropriar de elementos do romance policial – crimes, investigações, pistas falsas, desfecho surpreendente – para tecer reflexões desencantadas sobre a relação do homem com a natureza e o próprio sentido da existência humana: “Todos nós seremos um dia nada mais do que um corpo morto”, observa Janina, ao comparar a morte a um “divórcio metafísico”: “Aquilo que se desprende do corpo suga um pedaço do mundo, e não importa o quanto foi bom ou mau, culpado ou imaculado, ele deixa atrás de si um grande nada.”

Contra a ironia

Perspicaz como a Miss Marple de Agatha Christie, mas muito mais suscetível a explosões emocionais, Janina Dusheiko chega a defender a ira como uma forma de sabedoria. Não gosta da ironia, que chama de “o armamento da impotência”: “Os irônicos sempre têm uma visão de mundo da qual se gabam triunfalmente.” Defensora da inconsciência como “um estado abençoado”, batiza com apelidos infantis as pessoas que cruzam o seu caminho por um motivo curioso: nomes e sobrenomes oficiais são “falta de imaginação”.  Reluta a interagir com desconhecidos, até porque tem na mira um tipo especial de visitante: “Pessoas que passam o dia inteiro vagando pela floresta por causa de cogumelos devem ser extremamente chatas”. Sobram críticas inclusive para a Polônia, um país de “individualistas neuróticos”. 

As observações da personagem estão atreladas à trama de forma tão coesa que até algumas frases feitas (“A prisão não está lá fora, mas dentro de cada um de nós”) se ajustam em uma narrativa que comporta inclusive um comentário inusitado sobre o fazer literário. Para Janina, as pessoas que dominam a escrita podem ser perigosas. “Levantam suspeitas de falsidade, que não são elas mesmas, mas um olho que está sempre observando, e transformando em frases tudo que observa; assim retira da realidade a sua qualidade mais importante – sua inexpressividade.”

Se, nos capítulos finais, há uma evidente rendição ao gênero policial com explicações um tanto apressadas depois de uma reviravolta que acena para um dos maiores clássicos de Agatha Christie, o que confere real grandeza a Sobre os ossos dos mortos é a convicção que Olga Tokarczuk empresta à visão fatalista de Janina Dusheiko. “Vivemos cercados. Se examinássemos de perto cada fragmento de um instante, nos engasgaríamos aterrorizados. Nosso corpo passa por um incessante processo de desintegração, em breve adoeceremos e morreremos. Nossos entes queridos nos deixarão, a recordação deles se dissipará na agitação; não sobrará nada. Apenas algumas roupas no armário e alguém numa foto, já irreconhecível. As lembranças mais preciosas se desvanecerão. Tudo tombará na escuridão e desaparecerá”. Uma senhora personagem de uma senhora escritora. 

“Com ou sem prêmio, é um livro magistral”

“Um livro tão poderoso, traduzido cuidadosamente direto do original polonês, enriquece o catálogo de toda editora. E a presença literária de Olga Tokarczuk, cada vez mais substantiva no mundo inteiro (na literatura, claro, mas também em outros campos, como a discussão cultural e política, uma vez que a autora mantém uma postura bastante crítica em relação ao ressurgimento do fascismo em sua Polônia natal), faz da literatura contemporânea um espaço mais inteligente, poético e crítico. Claro que o Nobel contribui para as vendas bastante expressivas de Sobre os ossos dos mortos. Mas também o romance, absolutamente cativante em sua mistura de thriller, sátira social e investigação sobre a natureza, se beneficia muito do boca a boca. É um livro magistral, com prêmio ou sem prêmio.”

Leandro Sarmatz, editor da Todavia

Sobre os ossos dos mortos
De Olga Tokarczuk
Tradução de Olga Baginska-Shinzato
Todavia
318 páginas
R$ 59,90 


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