Em 2 de abril, chegarão aos cinemas dois filmes baseados num dos casos mais emblemáticos da crônica policial brasileira. A menina que matou os pais e O menino que matou meus pais, dirigidos por Maurício Eça e que adaptam a história de Suzane von Richthofen, que, aos 18 anos, participou das mortes dos próprios pais, o engenheiro Manfred von Richthofen e a psiquiatra Marísia von Richthofen. O casal foi morto na noite de 31 de outubro de 2002, a golpes de barra de ferro na cabeça, enquanto dormia. Os executores foram o então namorado de Suzane Daniel Cravinhos, e seu irmão, Cristian Cravinhos, à época com 21 e 26 anos.
De acordo com a produção dos longas, a proposta de contar a mesma história sob perspectivas diferentes (serão sessões alternadas nas mesmas salas) é oferecer ao público a chance de analisar e de chegar à própria conclusão sobre os fatos, já que, depois de presos, Suzane e Daniel iniciaram uma troca de acusações sobre quem foi o verdadeiro mentor dos crimes.
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Longe, aqui.Em 'O retalho', jornalista francês conta como se fingiu de morto no atentado ao Charlie HebdoSocióloga decifra a imagem da mulher ao longo dos séculosPorta para o inferno: livros contam rotina de horrores em AuschwitzPara o jornalista Ullisses Campbell, porém, não há qualquer dúvida quanto a isso. Basta uma olhada no título de seu livro, Suzane: assassina e manipuladora, para perceber que qualquer suposição ou mínimo atenuante de culpa esbarra numa sólida convicção de que toda a costura do plano foi feita pela filha, que, dotada de comportamento “insidioso e narcisista”, usou o namorado para matar seus pais. E mais: a partir de informações apuradas ao longo de três anos, o autor prova que a mentora dos assassinatos continuou a se valer da astúcia e da sedução, em seu período de cárcere, para manipular as pessoas segundo seus interesses.
A reação de Suzane veio por meio de um pedido de proibição de lançamento ao Tribunal de Justiça de São Paulo, acatado, em novembro de 2019, pela juíza Sueli Zeraik Armani, que alegou não ser a obra “de interesse público” e de trazer “prejuízo irreparável a Suzane von Richthofen”. Foram 37 dias de censura, até ser derrubada pelo Supremo Tribunal Federal, que fez valer a liberdade de expressão e, de quebra, forneceu à editora um subtítulo a ser ilustrado na capa como etiqueta de marketing.
“O livro que a Justiça proibiu”, portanto, não traz qualquer depoimento de sua personagem principal, apesar de o autor ter tentado entrevistá-la em três ocasiões. Sendo assim, Campbell se valeu do mesmo artifício usado pelo repórter e escritor norte-americano Gay Talese em seu célebre ensaio Frank Sinatra está resfriado. Reza a lenda que Talese insistia numa entrevista com o cantor, mas seus assessores sempre desmarcavam em cima da hora, alegando que ele estava adoentado. A solução foi escrever o longo perfil a partir de depoimentos extraídos de amigos e inimigos de Sinatra, inaugurando o chamado jornalismo literário.
Ou seja: reviver os detalhes dos fatos por meio da colagem de informações advindas de uma série de fontes, tendo a ficção como um tipo de adesivo. Para a formulação do seu livro, Campbell realizou centenas de entrevistas com personagens que se relacionaram, antes e durante o regime prisional, com Suzane e os irmãos Cravinhos, entre detentos, agentes penitenciários, advogados, familiares e amigos, além de consultar o processo penal, de aproximadamente seis mil páginas. O resultado vai além de um documento investigativo, fornecendo ao leitor uma radiografia profunda do caso, na qual se remonta o passo a passo do plano, os detalhes horripilantes da noite do crime, a prisão e o pagamento da pena, sempre calcados no lado humano dos atores da trama, entre as vítimas e os algozes, da reconstituição de diálogos a de seus perfis psicológicos.
Cronologicamente, a história tem início em junho de 1999, quando Andreas, irmão de Suzane, ganhou um avião para prática de aeromodelismo, em seu aniversário de 12 anos. Na tarde daquele dia, os pais o levaram até o Clube Escola de Aeromodelismo, no Parque Ibirapuera, de modo a buscar um instrutor para ensiná-lo a pilotar. Marísia queria o melhor, e contrataram Daniel Cravinhos, expert na atividade, com participação em competições internacionais. Suzane preferiu ficar em casa, mas, quando o pai a obrigou a levar o irmão nas aulas seguintes, ela conheceu Daniel, com quem mais tarde engataria uma relação de apego obsessivo.
O autor narra as minúcias da atração, do primeiro beijo, da transa que tirou a virgindade dela, dos encontros inocentes que passaram a ser regados a bebidas alcoólicas, maconha e outras drogas. Durante um tempo, Manfred conteve a preocupação de Marísia, acreditando ser um amor juvenil, porém, quando o namoro transformou radicalmente o comportamento de Suzane, o ultimato que ele impôs para o fim acabou sendo o que motivou a sua morte e a de sua esposa.
Aqui, vale destacar o ambiente frio e cheio de regras que era cultivado no lar dos Richthofen. Descendente de alemães, Manfred seguia até o ruhetag, tradição no qual os domingos são reservados ao silêncio absoluto. O casal era também arrogante e se valia do poder financeiro para se enxergar elevado socialmente. Portanto, diante da insistência da filha em manter o relacionamento com um rapaz de classe social mais baixa, desvirtuando o futuro que planejaram para ela, ameaçaram mandá-la estudar na Alemanha.
Neste momento, surge a Suzane manipuladora, que arrasta o irmão para esse mundo de transgressão e drogas, articulando mentiras e jogando pessoas umas contra a outras. Inteligente, com fluência em três idiomas, prestou vestibular e entrou na faculdade de direito, de modo a construir um álibi para seguir encontrando-se com Daniel, embora garantisse aos pais que tinha terminado o namoro. Uma amiga forjava sua presença nas aulas, até Marísia descobrir o esquema e confrontar a filha, que, para se livrar da punição, inventou que seu pai mantinha um caso extraconjugal. Mais tarde, na fase em que o plano de matar os pais estava em execução, Manfred também seria falsamente acusado de abuso sexual por Suzane, numa forma de convencer de vez Daniel e Cristian a cometer os assassinatos.
Os capítulos seguintes dão conta da noite do crime e como as ações dos envolvidos para se distanciar da cena acabaram por aproximá-los dela. A frieza de Suzane ao receber a notícia da morte dos pais foi o primeiro sinal de alerta. Dias depois do enterro, ela também fez um churrasco à beira da piscina, com música alta e drogas, para comemorar seu aniversário. Quando interrogados, os namorados disseram que estavam num motel e apresentaram a nota fiscal, numa tentativa grotesca de enganar a polícia.
Enfim, uma série de atos pueris e autossabotagens que culminaram na condenação do trio, amplamente explorada pela imprensa de programas de TV a séries documentais. Então tem início o tempo na cadeia, e o livro atinge a sua melhor parte ao reconstituir, com profusão de detalhes, uma fase da história até então invisível ao grande público.
Campbell segmenta seu foco de observação em três pontos: a descrição do universo singular da cadeia, a rotina dos condenados e as histórias de personagens secundários que, de forma direta ou indireta, associaram-se com Suzane e os Cravinhos. É interessante notar, por exemplo, como Suzane entendeu de imediato que precisaria de aliados para sobreviver e, depois, fortalecer-se no cárcere. Foi assim que escapou de uma rebelião, na qual a líder de uma facção criminosa queria matá-la a todo custo (entre os jurados de morte na cadeia estão aqueles que assassinaram os pais).
No episódio mais contraditório do livro, ela seduz um promotor público visando ser transferida de penitenciária e, quando consegue, acusa-o de assédio sexual. Na prisão, Suzane também demonstra que o plano de assassinar os pais não era apenas motivado pela conquista do amor e da liberdade, num esforço de convencer o irmão Andreas a escrever uma carta que a manteria como herdeira do patrimônio milionário dos Richthofen.
Um comportamento comum entre os condenados é que os três buscaram novos relacionamentos dentro e fora da cadeia; inclusive, paralelamente. Enquanto tinha mulher e filha do lado de fora, Cristian mantinha um apimentado caso homossexual com um preso. Suzane também se relacionou com uma detenta, num episódio de grande repercussão nacional, pois a revelação foi feita durante uma entrevista dada ao apresentador Gugu Liberato (pela qual recebeu R$ 120 mil).
O que o livro conta é que o namoro era, mais uma vez, uma artimanha para alcançar um objetivo. Sandra Regina Ruiz Gomes, conhecida como Sandrão, era quem mandava na cadeia, de modo que o interesse de Suzane era ocupar o posto da namorada depois que Sandrão fosse transferida; o que aconteceu. Hoje, segundo Campbell, o poderio da filha que encomendou o assassinato dos pais ecoa pelos corredores da penitenciária de Tremembé, tendo uma pedófila como cão de guarda.
“Com alto nível de egocentrismo, Suzane possui a tendência a superestimar o seu valor pessoal e a desprezar as necessidades alheias. Esse aspecto aponta para a presença de condutas de potencial risco para a sociedade em geral e para aqueles com quem convive”, escreveu o promotor Paulo José de Paula a respeito do direito de a famosa presa cumprir o resto da pena em regime aberto.
Em janeiro, circulou pelas redes sociais o comentário de que a paulista Ana Flávia Gonçalves, suspeita de ter tramado a morte dos pais e do irmão, com a ajuda da namorada, seria mais cruel que Suzane, pois esta ao menos poupou o irmão. A afirmativa não poderia estar mais equivocada, pois, embora vivo, Andreas é mais uma vítima da ruína que sua irmã ocasionou a todos à sua volta. De fato, se há algo que Suzane von Richthofen construiu foi essa imagem que será eternamente lembrada em todo caso de parricídio no Brasil.
Sérgio Tavares é jornalista e escritor, autor dos livros Cavala, vencedor do prêmio Sesc de Literatura, e Queda da própria altura.
SUZANE: ASSASSINA E MANIPULADORA
De Ullisses Campbell
Editora Matrix
280 páginas
R$ 57