Jornal Estado de Minas

O encontro do Saara com o sertão de Rosa em A cidadela, de Maurício Meirelles

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"A minha trajetória como arquiteto influencia na concepção desse objeto que seria fisicamente impossível" (foto: Rodrigo Sampaio/Divulgação)

Uma fortificação com estrutura labiríntica onde acontecimentos estranhos conduzem a uma reflexão sobre os limites da razão e como a insanidade, em muitos momentos, pode conceder lentes mais apropriadas para ver o que nos cerca. Tanto no plano do enunciado, quanto da própria linguagem, o texto convoca o leitor para uma experiência de vertigem em A cidadela (Editora Miguilim), o segundo romance do arquiteto e escritor mineiro Maurício Meirelles. A obra será lançada neste sábado (7) na Livraria da Rua, na Savassi, na Região Centro-sul de BH.


A história permite que você, leitor, entre numa misteriosa fortificação na região ocidental do deserto do Saara, no continente africano. Conduzida por dois engenheiros militares da Legião Estrangeira, a aventura é tecida na interseção que o autor cria entre a arquitetura e a literatura. A obra permite uma experiência sensorial, que parte do texto da estrutura imaginária, passa pelas imagens das ilustrações das páginas e se completa no formato do livro. “(…) a narrativa que ele traz se sustenta num equilíbrio instável entre a arquitetura do texto e a irrealidade plausível da história narrada”, escreve a professora e crítica literária Maria Esther Maciel, que faz a apresentação do livro.

O autor parte de relato atribuído ao tenente F. Martinez acerca dessa edificação perdida, cuja existência nunca foi comprovada. Na época de sua descoberta, questionado quanto à veracidade, o testemunho foi encontrado pelo filho de Martinez, o historiador franco-argelino Nourdin Martinez, em 1978. Mas os primeiros relatos sobre a Cidadela vêm de comerciantes que atravessavam o Saara no fim do século 19. Eles falavam da “Kasbah de Ferro”.


Confira as edições anteriores do Podcast Pensar

O olhar do arquiteto

A história tem como personagem principal a Cidadela, “antagonista que se contrapõe aos heróis”, os engenheiros militares embrenhados na busca por militares desaparecidos numa expedição. A Cidadela se revela como estrutura labiríntica – e, também por isso, Maurício adianta que pode ser lida como devaneio arquitetônico e especulação filosófica. “A minha trajetória como arquiteto influencia na concepção desse objeto que seria fisicamente impossível”, diz.



A construção rica e detalhada da fortificação é possível graças ao narrador, um dos engenheiros especialistas em artefatos de guerra, que atribui sentido à construção incomum, fugindo à compreensão, aos sentidos atribuídos pela razão. O protagonismo não está nos personagens humanos. A fortificação é que nos intriga. É apresentada à medida que os personagens se perdem nos labirintos.

(foto: A cidadela, segundo livro de Maurício Meirelles)


A incursão nesse universo ficcional que se apresenta na estrutura monumental impossível de ser construída dentro dos parâmetros da engenharia, leva ao questionamento de até onde pode ir a razão, o quanto ela é capaz de nos guiar.

A obra se apresenta em diversas camadas. “O livro ilustrado possui várias camadas de leitura. A partir do texto que origina a história, você tem nível de leitura que é uma história contada por palavras. Outra camada é a narrativa visual. As ilustrações não estão totalmente em função da história. Criam outra camada de sentido, têm autonomia. Terceiro nível de leitura é o livro como objeto.”


O traçado do ilustrador Adams Carvalho dialoga com o texto, ajudando a criar a ambiência dessa fortificação. As páginas vazias rementem ao silêncio dos espaços monumentais e abrem a narrativa para as impressões dos leitores.



As cores do projeto gráfico, elaborado pelo Estúdio Guayabo, não são meras escolhas estéticas. Constroem a ambiência do espaço onde a narrativa se passa. Numa das leituras possíveis, o azul noturno da capa e do miolo remete à escuridão da fortificação e o ocre, ao deserto. Duas ou mais camadas de leitura emergem do texto e da imagem.

Diálogo com Borges

Na epígrafe, excerto do conto O imortal, do escritor argentino Jorge Luis Borges, ficam evidentes os diálogos mantidos com esse escritor.“Este palácio é obra dos deuses”, pensei primeiro. Explorei os recintos desabitados e corrigi: “Os deuses que o construíram morreram”. Notei suas peculiaridades e disse: “Os deuses que o construíram estavam loucos.”



A citação indica que a narrativa também transitará por esse lugar onde a grandiosidade de uma edificação coloca seus construtores nesse lugar de deuses, da invenção, mas que também é o lócus da loucura e da alucinação. A conclusão possível é que as edificações tão grandiosas não podem ser frutos da razão, mas da loucura de quem as planejou.



Maurício Meirelles estreou como escritor com Birigui (Miguilim, 2016). Finalista do 59º Prêmio Jabuti, em 2017, a obra integra a coleção The White Ravens, da Internationale Jugendbibliothek de Munique, na Alemanha. Em Birigui, ele apresenta o universo infantil. Narra a história de um filho que vai, pela primeira vez, à caça com o pai. As narrativas de Birigui e de A cidadela partem de geografias diferentes.

A primeira narrativa tem “eco fundo” em Guimarães Rosa e volta-se ao universo íntimo do sertão. Já em A cidadela, a ambiência remete ao universo exterior e ao que ele pode dizer às subjetividades. No entanto, apesar de partir de geografias aparentemente tão distintas – sertão brasileiro e deserto africano –, as obras têm em comum a aridez e a relação entre pai e filho, algo que interessa muito a Maurício, que tem no seu filho o primeiro leitor de seus livros. 

A cidadela

De Maurício Meirelles
Editora Miguilim
272 páginas
R$ 54
Lançamento: 7/3, das 13h às 16h, na Livraria da Rua – Rua Antônio de Albuquerque, 913, Savassi, BH