Michelangelo – Uma vida épica, Martin Gayford
750 páginas, Cosac Naify
(hoje estoque da Amazon)
Irascível, obssessivo, teimoso, grosseiro, misantropo e avesso a banhos. Muitos são os adjetivos pejorativos atribuídos a Michelangelo Buonarrotti (1475-1564), mas todos caem por terra diante de uma pequena palavra: gênio. Nestes tempos sombrios em que uma praga bate à nossa porta e nos obriga ao isolamento social, o livro é uma ótima companhia. E, neste caso, que companhia. Michelangelo – Uma vida épica, do filósofo e historiador de artes inglês Martin Gayford, é uma biografia ilustrada detalhada do pintor e escultor italiano que mudou a história da arte. O livro conta sua vida conturbada, o processo de construção de obras eternas – Pietá, A criação de Adão, o maravilhoso afresco do Juízo final da Capela Sistina, Davi, Moisés – como se fosse a saga de um herói da mitologia clássica, numa Europa em profundas transformações com o Renascimento e a Reforma protestante. Michelangelo, ao longo dos seus 89 anos, conviveu com 11 papas e era tão respeitado, apesar do seu mau humor, que chegou a desafiar vários quando era por eles chamado para esculpir, o que era uma temeridade para uma época em que os pontífices eram poderosíssimos, inclusive comandavam exércitos. E o mais interessante é a grande rivalidade com outro gênio da humanidade e conterrâneo, Leonardo Da Vinci, que era seu oposto, bon-vivant, gentil e elegante e sempre à frente de um séquito por onde ia. Durante alguns anos, ele duelaram em nome da arte nas ruas de Florença.
• Paulo Nogueira
Dostoiévski: Um escritor em seu tempo, Joseph Frank
1.098 páginas, Companhia das Letras
Gostaria de indicar a genial biografia de Joseph Frank sobre o também genial literato Fiódor Dostoiévski, que pode ser encontrada em 5 volumes pela Edusp, e num só volume condensado pela Companhia das Letras. Frank apresenta um retrato detalhado e sensível do escritor russo, e mostra como a literatura constituiu a biografia (e não o contrário). Por isso, os romances e contos de Dostoiévski condicionam a organização da vida e do livro, mostrando como a cultura não é produto, mas produz uma vida como essa. Ao mesmo tempo, o autor apresenta um retrato da rica história cultural russa, com sua política conturbada. O livro combina, portanto, em doses certas, o gênero biografia com história intelectual e crítica literária. Vida e obra não se separam; estão juntas. Numa nota pessoal, testemunho a imensa importância dessa obra na elaboração da biografia que escrevi sobre Lima Barreto, a qual, seguindo o exemplo e a metodologia do “mestre” Frank, não faz da literatura um reflexo da vida do escritor, mas a constitui. Imperdível.
• Lilia Schwarcz, historiadora e antropóloga, autora de, entre outros, Lima Barreto, triste visionário
Getúlio (trilogia), Lira Neto
1.762 páginas, Companhia das Letras
Uma das melhores biografias políticas já lançadas no país. O trabalho de pesquisa é espetacular e o autor escreve muito bem. Muitos ficam desanimados porque são três volumes, que, juntos, somam quase duas mil páginas. Mas creio que é um ótimo projeto para essa quarentena (acho que todos devem fazer projetos de aperfeiçoamento intelectual durante esses dias, como cursos na internet, ler livros e ver filmes com algum propósito).
Outra vantagem do trabalho de Lira Neto é que aprendemos muito sobre a política brasileira da primeira metade do século 20. Getúlio foi um grande estadista, chegou ao governo liderando um movimento insurrecional depois de perder uma eleição; foi um ditador e depois voltou ao poder ganhando uma eleição. Em tempos em que os estadistas sumiram do Brasil, vale conhecer o maior deles.
• Jairo Nicolau, doutor em ciência política, autor do livro História do voto no Brasil, entre outros
Mauá: um empresário do império, Jorge Caldeira
560 páginas, Companhia das Letras
A biografia do Visconde de Mauá, principal empresário brasileiro do Segundo Reinado, tem muito a dizer para o Brasil de hoje. No final do século 18, o Brasil e os EUA tinham padrões de renda semelhantes. Um século depois, o “irmão do Norte” havia se tornado uma potência industrial emergente, ao passo que aqui tinha-se uma economia agrário-exportadora, com um PIB per capita muito inferior.
A história de vida de Irineu Evangelista de Souza, o Visconde de Mauá, mostra bem a razão do atraso econômico brasileiro durante o século 19. Ajuda a desmistificar a figura do imperador Pedro II, um homem comprometido com o atraso econômico, aliado daqueles que se opuseram à industrialização. Leitura fundamental neste momento em que o Brasil passa pelo mais intenso processo de desindustrialização do planeta.
• Jorge Alexandre Neves, professor titular do Departamento de Sociologia da UFMG e pesquisador do CNPq
Nelson Rodrigues: o anjo pornográfico, Ruy Castro
464 páginas, Companhia das Letras
Ruy Castro se debruça sobre as muitas e complexas vidas dentro de um mesmo personagem: Nelson Rodrigues! O gênio, o canalha, o visionário, o patife reacionário, o amigo inconfiável, o pai e amante protetor foram reunidos numa narrativa que trata uma importante parte da história da sociedade brasileira no século 20. Castro insere Nelson numa trama da vida real, e balanceia as escolhas do personagem – a capacidade de ação – diante do inexorável, as estruturas sociais. Assim, conseguimos viajar literariamente entre as marcas de uma infância permeada de catástrofes como a gripe espanhola, até o sucesso das grandes peças de teatro que escandalizavam a conservadora sociedade brasileira. Um livro para se revoltar e se espantar, rir e chorar. Mas também para compreender as criações das redações de jornais e a vida dos jornalistas e suas relações com o meio artístico nacional. Repito: Nelson foi um dos maiores intérpretes e construtores do espelho da classe média urbana brasileira. E apresentava o que via pelo buraco da fechadura, seja o sexo, a traição, o amor ou a morte em diversos meios, teatro, crônicas, contos, novelas, etc. Em O anjo pornográfico, Nelson foi desnudado por Castro: encontramo-nos e nos espantamos de ser nós mesmos no espelho!
• Vítor Peixoto é doutor em ciência política pelo Iuperj, professor da Universidade do Norte Fluminense
Darcy Ribeiro, Candido Alberto Gomes
152 páginas, Massangana
Neste momento de confinamento, a biografia do mineiro Darcy Ribeiro é uma luz a “energizar” nossa autoestima. Antropólogo, educador, político, Darcy fundou a UnB, foi ministro da Educação, senador, ministro-chefe da Casa Civil, entre outros cargos. Exilado, trabalhou com Salvador Allende. Fundou o Museu do Índio e criou o Parque Indígena do Xingu. Seus estudos de antropologia são referenciais. Com O povo brasileiro, Darcy redimensiona nossa nacionalidade. Sua reflexão sobre nossa formação nos envia às nossas origens, à história que como brasileiros fomos construindo. Somos a maior presença neolatina no mundo. Somos uma “nova Roma”. Aliás, melhor que Roma porque fomos lavados em sangue índio e negro. Essa nossa singularidade nos estimula a nos reinventar, desafiados a construir uma sociedade nova e pujante.
• Robson Sávio Reis é doutor em ciências sociais e coordenador do Núcleo de Estudos Sociopolíticos da PUC Minas
Wander Piroli: Uma manada de búfalos dentro do peito, Fabrício Marques
256 páginas, Conceito editorial
Esta biografia registra os caminhos de Wander Piroli, grande escritor, mas, sobretudo, um grande ser humano, um homem adorado pelos amigos e que, ele próprio, também era uma espécie de personagem da cidade de Belo Horizonte, sobretudo do Bairro Lagoinha.
Fabrício Marques traz à luz traços marcantes da personalidade de um escritor anárquico, iconoclasta, que não via a literatura como razão para viver, mas que, ao contrário, via na vida razão para escrever. É a vida que Wander Piroli celebrava. O livro, além de leitura interessantíssima, acaba por trazer esse alerta que é uma grande mensagem de Piroli: a vida primeiro.
• Adriane Garcia, poeta, autora de Arraial do Curral del Rei: a desmemória dos bois
Carolina, uma biografia, Tom Farias
402 páginas, Malê
Recomendo uma bela biografia de uma grande escritora brasileira, que ficou tempo demais confinada dos leitores brasileiros por causa de sua origem social e da cor de sua pele. A escritora é Carolina Maria de Jesus, autora de Quarto de despejo, Casa de alvenaria e Pedaços de fome. No ótimo Carolina, uma biografia, Tom Farias narra a trajetória da escritora, sua pobreza, o desemprego, a doença, muita superação, o sucesso de Quarto de despejo e o esquecimento em razão do preconceito. A biografia é um merecido êxito editorial e dá a Carolina sua verdadeira dimensão humana e literária. Após ler a biografia, tenho certeza de que todos se interessarão em conhecer os livros de Carolina Maria de Jesus.
• Sergio Abranches, sociólogo e escritor
De amor e trevas, Amós Oz
624 páginas, Companhia das Letras
Híbrido de romance e autobiografia, a obra é um relato sobre a infância e a adolescência do autor, tendo como pano de fundo a formação do estado de Israel. As guerras, as relações familiares e personagens como Fânia Mussman e Yehuda Klausner, pais de Amós, fazem desta história uma obra inesquecível. Amós, um pacifista em prol dos dois Estados, não deixa ninguém indiferente quanto a uma solução que contemple a convivência pacífica entre Palestina e Israel.
• Itamar Vieira Júnior, escritor, autor do romance Torto arado
Metrópole à beira-mar – O Rio moderno dos anos 20, Ruy Castro
496 páginas, Companhia das Letras
Um dos mais importantes biógrafos brasileiros, Ruy Castro se supera a cada projeto. Em Metrópole à beira-mar, o autor realiza a proeza de, numa só obra, entrelaçar relatos sobre centenas de personalidades e instituições a deleitosos “causos” e interpretações históricas. Tudo, tudo como forma de “biografar” não apenas as figuras seminais à conformação, no Brasil, de novíssimos “territórios” culturais (e políticos, sociais, comportamentais etc.), mas, principalmente, as múltiplas faces do zeitgeist (o “espírito do tempo”), responsáveis por eletrizar a mais privilegiada das gerações. Trata-se, afinal, dos homens e mulheres que puderam, cada qual ao seu modo, experienciar e estimular – conforme nos revelam os próprios capítulos do livro – “o aroma dos salões”, “a luta literária”, “o país dos vinte anos”, “a cidade em convulsão”, as “vozes nas nuvens”, “os visitantes do futuro”, “os lábios sem beijos”, “os corpos e almas” ou “a revolução dos bambas”. Para além do primoroso estilo de Ruy, o livro apresenta saborosa iconografia (fotografias, obras de arte, material publicitário, rótulos de discos ou capas de revistas), capaz de nos transportar, numa espécie de “máquina do afeto”, rumo ao vasto Rio dos poéticos (e turbulentos) anos 1920.
• Maurício Guilherme Silva Jr., jornalista, professor universitário e pesquisador
Viver para contar, Gabriel García Márquez
476 páginas, Record
A justificativa é óbvia: o livro ajuda a compreender como o autor criou a sua cosmogonia literária. Além disso, lê-se como um romance. Eu aconselharia a ler o livro juntamente com as coletâneas de textos jornalísticos do autor, publicadas no Brasil em cinco volumes pela Record, com tradução e prefácio de Léo Schlafman: Textos caribenhos, Textos andinos, Da Europa e da América, Reportagens políticas e Crônicas. Tenho estado a ler as edições originais, em espanhol. Há peças soberbas; pura literatura.
• José Eduardo Agualusa, escritor, autor de O vendedor de passados, entre outros romances
Mea Cuba, Guillermo Cabrera Infante
518 páginas, Companhia das Letras
Acerto de contas do autor com seu passado familiar, afetivo e político. Híbrido e fragmentário, reúne crônicas, ensaios, entrevistas, testemunhos, perfis biográficos. Craque dos jogos de palavras, o autor mostra aos leitores brasileiros por que não é recomendável entrar numa bodega de Havana e pedir uma pinga.
Pinga lá é outra coisa, bem diferente.
• Álvaro Lins e Silva, jornalista e crítico literário
Leonardo Da Vinci, Walter Isaacson
640 páginas, Intrínseca
Difícil pensar num personagem histórico que seja tão interesse quanto Leonardo Da Vinci, o gênio italiano do Renascimento. O cara se meteu com quase tudo e levou conceitos de áreas que vão de engenharia à medicina para a arte que lhe fez eterno. Hoje, temos cristalizada a ideia de Da Vinci como um dos seres humanos mais singulares que já passaram pela Terra, mas acompanhar como foi sua trajetória cheia de perrengues e provações é uma grande lição.
• Rodrigo Casarin, crítico literário (blog Página Cinco)
O Tiradentes, Lucas Figueiredo
520 páginas, Companhia das Letras
Baseada numa extensa pesquisa histórica que inclui fontes primárias tão diversas quanto “relatórios secretos, cartas, inventários, processos judiciais e relatos de época” – como anota o escritor e jornalista Lira Neto na apresentação do extraordinário livro de Lucas Figueiredo –, a biografia do alferes Joaquim José da Silva Xavier tem na linguagem uma de suas maiores realizações. Desenvolvida com maestria, a trama, que em diversas passagens se assemelha a um thriller cinematográfico, nos transporta às vilas e encruzilhadas do final do século 18, onde, através de personagens históricos nos quais se entrevê também a dimensão humana, conhecemos as conspirações e as circunstâncias políticas locais e internacionais que influenciaram a tentativa de sublevação ocorrida na região das minas de ouro. Com domínio pleno dos recursos narrativos que normalmente só encontramos nos bons livros de ficção, mas mantendo-se rigorosamente fiel ao registro histórico, o autor maneja com habilidade os detalhes circunstanciais – em seu texto, estes estão a serviço da trama principal, e não o contrário –, poupando o leitor do exercício de paciência infinita exigida pela leitura de algumas biografias.
• Maurício Meirelles, arquiteto, escritor e um dos editores da revista Olympio