Fabio Mechetti*
Especial para o EM
Existem alguns ícones na história mundial que, independentemente da cultura, época, geografia, sistema político ou qualquer outro paradigma, são reconhecidos universalmente, pela relevância de suas contribuições para a sociedade como um todo.
Com seus cabelos revoltos – como que projetando externamente a rebeldia de seus pensamentos –, suas marcas faciais decorrentes de um surto de varíola, roupas um tanto extravagantes para o seu tempo, e uma personalidade controversa que, ao mesmo tempo, atraía seguidores e afastava influentes detratores, essa figura ímpar na história da civilização celebra neste ano uma importante efeméride. Não, não estamos falando dos 77 anos de Mick Jagger, mas sim dos 250 anos de Ludwig van Beethoven.
Em todas as partes do mundo, orquestras e outras instituições culturais, como a Filarmônica de Minas Gerais, preparam-se para festejar, depois do controle da pandemia do coronavírus, um dos mais importantes nomes da produção artística de todos os tempos. Criador de mais de 100 obras monumentais, das quais se destacam nove sinfonias, trinta e duas sonatas para piano, cinco concertos para o instrumento, inúmeras peças de câmara, obras religiosas e uma ópera, Beethoven se transformou praticamente no grande representante da força da música clássica no âmbito da cultura global como um todo.
Sua obra não é tão extensa quanto a de outros compositores, nem necessariamente mais diversificada. Assim como outros compositores na história da música, ele também vivia com dificuldades financeiras, e seu sucesso na época era relativamente pequeno, embora por muitos respeitado. Sua personalidade o afastava mais das pessoas do que as aglomerava em torno de si. E, após o avanço da surdez que o acometeu, ele se distanciou ainda mais da vida pública e do convívio social.
Como então esse gênio musical conseguiu atingir o grau de idolatria que ele ocupa no imaginário humano? Certamente, não foi através de publicidade, assessores de imprensa ou da difusão contemporânea típica das redes sociais. O cultivo de sua imagem vem diretamente de sua obra.
Independência criativa
Beethoven foi um dos primeiros compositores da história a buscar independência, tanto das regras teóri- cas que ditavam como a música deveria ser formatada, dentro de padrões definidos por décadas, senão séculos, antes dele, mas também a independência enquanto indivíduo criativo. Em cada forma musical em que ele atuou, Beethoven conseguiu não somente cristalizar as tradi- ções do passado, mas foi capaz de propor novas soluções, ideias, transformações estruturais e semânticas que influenciaram as gerações posteriores em todos os níveis estéticos. Suas sinfonias, por exemplo, apontam para um caminho que somente décadas mais tarde pôde ser compreendido e aplicado por outros gênios que o sucede- ram. Seus quartetos de corda, especialmente os compostos nos últimos anos de sua vida, expandem ao máximo a capacidade de um sistema tonal centenário em se manter em pé.
Outra característica pioneira de Beethoven vem a ser uma outra independência: a do jugo do gosto do público e dos mecenas que o apoiavam. Depois de anos em que sua criação visava agradar a possíveis patrocinadores e ao gosto do público em geral, Beethoven vem a defender a singularidade do artista em produzir aquilo que brota livremente de sua individualidade, visando elevar a arte pela arte, a excelência por excelência, pois são esses va- lores que se tornam eternos.
Em decorrência dessa postura, e como manifestação de uma filosofia interna que refletia o pensamento pós-Revolução Francesa, Beethoven via na música a ex- pressão maior dos aspectos de liberdade que mantêm sua importância até os dias de hoje. Em sua única ópera, Fidelio, a heroína arrisca a vida para bravamente lutar pela liberação de seu esposo, preso injustamente por questões políticas. A Sinfonia nº 3 Heroica, originalmente dedicada ao libertador Napoleão, transforma-se em uma homenagem ao verdadeiro herói: não aquele que pelo poder virá a impor sobre outros uma conduta unilate- ral, mas aquele que defende a diversidade e o diálogo em prol de um pensamento que vise à emancipação da sociedade.
Ser revolucionário não significa apenas propor rupturas, mas, através de suas realizações, construir novos valores que venham a consolidar progresso, união, irmandade, liberdade, respeito humano ao indivíduo e à sociedade em geral. E é na força elétrica de sua música que essa revolução se expressa há 250 anos e nos próximos que ainda virão.
*Diretor artístico e regente titular da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais
O gênio na sua casa
Indicações do maestro Fabio Mechetti
Sinfonias 4 e 7, com Carlos Kleiber e a Concertgebow de Amsterdam.
https://www.youtube.com/watch?v=d3-jlAamGCE
Sinfonia 3, Seiji Ozawa e a Orquestra Saito Kinen do Japão
https://www.youtube.com/watch?v=QAsEAQn7WCc
Sinfonia 9, Ricardo Muti e a Orquestra Sinfônica de Chicago
https://www.youtube.com/watch?v=rOjHhS5MtvA
Sinfonia 5 - Orquestra Revolucionária e Romântica, John Eliot Gardiner
https://www.youtube.com/watch?v=lNtb-ly1I_k
Abertura Leonora No. 3 - Orquestra Filarmônica de Viena, Leonard Bernstein
https://www.youtube.com/watch?v=vHwBEiYPOlU
Nona Sinfonia de Beethoven - Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, Fabio Mechetti.
Gravação na Sala Minas Gerais, 19/12/2015.
Nesta sexta-feira, dia 3 de abril, às 20h30, o vídeo será disponibilizado no canal da Filarmônica no YouTube –
www.youtube.com/filarmonicamg
Entrevista
Arthur Dapieve (Escritor e crítico musical, programador do Prelúdios, da rádio Batuta, no site do IMS)
Carlos Marcelo
Você ministrou um curso na Casa do Saber do Rio de Janeiro sobre Bach, Mozart e Beethoven. Quais as principais diferenças entre os três compositores e o que há de mais admirável em cada um deles?
Eles são o suprassumo dos três períodos mais importantes, férteis e populares na história da música clássica: o Barroco, o Classicismo e o Romantismo. Nesse percurso, além de mudanças formais na música em si, o compo- sitor foi ganhando graus crescentes de autonomia em relação ao empregador ou ao mecenas. Bach era funcionário da Igreja Luterana, que amava; Mozart rompe com a sua Igreja Católica e passa a compor por encomendas seculares; e Beethoven se afasta das encomendas seculares em prol de sua própria necessidade de expressão. Os três traba- lhavam pra burro, logo, os três eram gênios. Bach é o principal responsável por ouvirmos a música que ouvimos, em todos os gêneros, ao organizar as notas da escala. Mozart compunha com tal facilidade que nos põe para louvar o espírito humano. E Beethoven, bem, Beethoven...
Como a vida de Beethoven se refletiu em sua obra?
De uma forma ou de outra, a vida de qualquer compositor, de qualquer artista sempre se reflete em sua obra, por extensão ou por contraste. Dependendo do ponto de vista, Beethoven foi o último dos classicistas ou o primeiro dos românticos. Nesse período, a utopia, mais que a realidade, do artista que só presta contas a si mesmo se torna tão forte na cultura ocidental que perdura ainda hoje (apesar da máquina já setentona da pop music!). Daí essa associação imediata entre vida e obra quando pensamos nele. A vida de Beethoven em si também ajudou nessa embaralhação, pois teve todos os ingredientes de agrado dos românticos: a vida amorosa infeliz, a luta contra a surdez, o senso de danação, as vicissitudes extremas da História europeia... Tipo "ruim demais para não ser verdade".
Qual a contribuição de Beethoven para as sinfonias? Que elementos são mais marcantes nas sinfonias do compositor?
Ele transforma a sinfonia praticamente num sinônimo de música clássica, transforma a sinfonia na peça central do repertório clássico por cerca de 150 anos. Nesse período, compositores que ou não eram bons sinfonistas ou, pior, nem compunham sinfonias eram tidos como de segunda ca- tegoria. Por quê? Porque Beetho-ven escreve nove sinfonias que têm características únicas, cada uma com sua personalidade distinta, além de serem belíssimas e carregarem a certeza de sua própria importância. O classicista Haydn, por exemplo, compôs mais de 100 sinfonias. Duas dúzias são brilhantes, mas mes- mo essas não têm o grau de dife- renciação que as de Beethoven têm, em certo grau exatamente pelas liberdades relativas proporcionadas pelo Romantismo.
Quais as suas sinfonias favoritas do compositor e por quais motivos?
A Terceira, dita Heroica, e a Nona, dita Coral. Uma é, na verdade, a primeira em que Beethoven joga todas ou quase todas as suas cartas porque a Primeira e a Segunda, embora ótimas, ainda são bem reverentes a Haydn e a Mo- zart. Poderiam quase passar pe- las últimas sinfonias de um ou de outro... Quase, por favor, note bem. Já a Terceira é monumental, em todas as dimensões, independentemente de se saber que ela chegou a ser dedicada a Napole- ão, que enganou Beethoven co- mo enganou muita gente no começo de sua trajetória. Gosto, em particular, da longa marcha fúnebre, que constitui seu segundo movimento. Já a Nona é, possivelmente, a mais importante sinfonia jamais escrita. Tão im- portante que foi sua duração que fez os engenheiros da Sony arbitrarem quando duraria um CD... O bastante para a Nona caber num só disco, ou seja, algo entre 70 e 80 minutos. Há o achado de, pela primeira vez, se inserirem vozes numa sinfonia, que só pode parecer óbvia porque sabemos disso em retrospecto... E há o golpe de misericórdia estética de se encerrar com a Ode à alegria, uma das melodias mais sublimes e memoráveis, para não dizer pegajosa, de toda a história.
Como Beethoven influenciou ou- tros compositores e a música do século 20?
Ele meio que disse "sejam vocês mesmos", não há limites para a música ou para o espírito hu- mano. Isso valia para suas sona- tas para piano, seus quartetos de cordas, mas sobretudo para suas sinfonias. O único gênero clássico no qual Beethoven foi, diga- mos, modesto foi a ópera, tendo composto apenas uma, Fidelio, de grande música, mas de estrutura dramática menos bem calibrada que algumas de Mozart, por exemplo. Por isso, não é um clichê vazio se dissermos que não existiriam Brahms, Wagner, Mah- ler, Schoenberg e Shostakovich, para ficarm apenas em cinco ou- tros gigantes, se não tivesse existido Beethoven. Ele também está presente, por exemplo, na Sinfonia nº 3, de Gorécki, a mais popular do século 20, que também usa vozes.
Você lançou um livro chamado Do rock ao clássico. Se Beethoven fosse um astro do rock, quem seria? Se não no estilo, ao menos na trajetória? Quais de suas sinfonias são mais rock’ n’roll?
Beethoven foi o Chuck Berry de seu tempo. Se este compôs Roll over Beethoven, algo como "roa-se, Beethoven", este compôs "Roll over todos os que vieram antes de mim" e chutou uma fileira de baldes no processo. As trajetórias pessoais, claro, são muito dife- rentes, mas não a influência seminal em gêneros musicais tão importantes. A sinfonia mais rock'n'roll de Beethoven é a Quinta, sem dúvida. Abrindo com aquele famoso riff de quatro no- tas, atingindo comunicação direta e imediata.