Jornal Estado de Minas

Coronavírus x gripe espanhola em BH: erros (e soluções) são os mesmos de 100 anos atrás


Com sistema de saúde incapaz de atender a todos de maneira equânime, a solidariedade entre as pessoas foi determinante na superação da crise. Em negação à tendência internacional, houve os que propunham furar o isolamento. E houve, claro, reação dos outros, chamando aqueles de irresponsáveis. Passado ou presente?

Nesta entrevista, a historiadora Anny Jackeline Torres Silveira, autora do livro A influenza espanhola e a cidade planejada - Belo Horizonte, 1918, conta como a jovem capital enfrentou o problema, entre outubro e dezembro de 1918, quando 2 mil pessoas foram infectadas, entre os 50 mil que aqui moravam. Em todo o mundo, a gripe espanhola matou em quatro meses, mais que a I Guerra Mundial em quatro anos. O trem noturno que ligava BH à capital Rio de Janeiro trouxe a doença. Os moradores primeiro negaram, depois procuraram culpados e por fim atravessaram aquela pandemia por meio de uma rede de ajuda criada pela sociedade civil.







"É a chamada 'dramaturgia das epidemias', em que percebemos repetição desses atos, de maneira comum em reações observadas em diferentes lugares do mundo, e diversos períodos da história", explica a professora de Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), em conversa por Skype.

Filha de casal de trabalhadores da saúde, Anny se interessou pelo assunto quando trabalhou na estruturação do Centro de Memória da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A tese de doutorado foi publicada em 2004, o livro em 2007 e deve retornar agora como e-book.

Confira a íntegra da entrevista

Como Belo Horizonte recebeu a gripe espanhola em 1918?
Foi pelo jornal. Inicialmente tínhamos as notícias que vinham do cenário da I Guerra Mundial, daquela gripe, aquela doença que começava a atingir as pessoas na Europa. A primeira notícia de impacto na sociedade de Minas foi o fato de uma missão médica brasileira enviada para a Europa, para ajudar nos esforços de guerra, ter sido contaminada em uma parada num porto de Dakar. Estes foram os primeiros brasileiros contaminados pela doença, alguns morreram e as notícias chegaram por meio dos jornais.





Havia a impressão de que essa doença não chegaria nesta cidade planejada?
Pois é, a cidade foi construída no final do século 19, obedecendo todo um discurso em torno da higiene dos espaços, da organização das coisas, da circulação do ar, da insolação - não necessariamente isso era o que efetivamente se encontrava na cidade. Mas este imaginário tecido desde a criação de Belo Horizonte estava aí. Então para uma boa parte da população, estar em uma cidade construída conforme esses modelos do higienismo e do urbanismo, poderia significar que Belo Horizonte sofreria menos. E isso não aconteceu.

De que maneira os governantes reagiram?
De uma forma que identificamos em outros locais e outros momentos, quando falamos de doenças epidêmicas. Reconhecer a presença de uma epidemia dentro de uma sociedade é algo muito complexo, estamos vendo hoje quão complexo isso é. Nos estudos relacionados a essas epidemias, a gente percebe que no primeiro momento há uma tentativa de negar o problema. Porque reconhecê-lo força a empreender recursos e tomar medidas que muitas vezes não serão populares, medidas duras. No caso de Minas, as autoridades acompanhavam a doença na Europa, chegou ao país em navio no porto do Rio de Janeiro. As autoridades médicas, que lidavam com o serviço de saúde, tinham consciência que seria impossível barrar essa contaminação.


Rua da Bahia, no Centro de Belo Horizonte, nos primeiros anos do século passado (foto: Arquivo EM)


E o que as autoridades fizeram?
Não fizeram muita coisa não, a bem dizer nada. (risos) As medidas só foram tomadas depois que a epidemia se instalou. Havia a expectativa de que fosse ocorrer por meio do trem noturno que ligava Belo Horizonte ao Rio de Janeiro. A imprensa avisava: "Estamos em contato com a capital do país cotidianamente pelo noturno, vai ser difícil a gripe não chegar. E assim foi. Depois da pandemia instalada, veio o serviço de desinfecção, tentativa de reunir autoridades para organizar a assistência hospitalar. Em Belo Horizonte, o Hospital de Isolamento Cícero Ferreira funcionava na região onde hoje fica o Bairro de Santa Tereza. Mas no caso da gripe espanhola, a estrutura não foi suficiente para atender a demanda da população. Então, o Hospital de Isolamento recebia doentes, a Faculdade de Medicina suspendeu as aulas, deixou de ser um espaço de ensino, e abriu um hospital provisório. Tudo que havia de estrutura hospitalar na cidade foi revertido para atender a demanda.





Quais são os outros espaços geográficos da cidade que foram modificados, que tiveram a paisagem e o cotidiano impactados?
Toda a cidade teve o cotidiano alterado. Os espaços hospitalares mantiveram essa assistência, sobrecarregados com o volume de pacientes com casos mais graves. As crônicas falam das ruas sem pessoas, dos bares vazios, do bonde, transporte em que as pessoas tentavam se afastar umas das outras, do comércio que se fecha. O movimento público foi perdendo esse trânsito. Um decreto suspendeu as aulas e o funcionamento das casas de diversão. Houve até o dono de um cinema que disse: como as pessoas estavam muito tristes por causa da pandemia, elas precisavam de diversão e portanto, ele abriria o cinema dele. Sofreu várias críticas e desistiu. Houve alterações nos ritos fúnebres, a prefeitura proibiu o acompanhamento dos enterros no cemitério municipal e também as visitas no Dia de Finados, porque a epidemia avançou até dezembro. Mas, em contrapartida, estavam mantidas as procissões em nome dos santos, especialmente São Benedito e São Sebastião (associados a momentos epidêmicos), que eram frequentemente "acionados" nessa cultura religiosa. A igreja chamava para ladainhas. As pessoas não iam para o cemitério com medo da gripe, mas pegavam a gripe na ladainha.


Nos traços do ilustrador Marcelo Lélis, a Belo Horizonte do fim dos anos 1910, quando a gripe espanhola chegou (foto: Marcelo Lélis)


Então, se houve uma instituição que aprendeu e evoluiu entre uma pandemia e outra foi a tradicional Igreja Católica Apostólica Romana?
(Risos) Pois é! Esta aprendeu bastante, pelo que temos visto agora. (O papa Francisco é uma das principais vozes internacionais a favor do isolamento para conter a pandemia do novo coronavírus).

Como foi essa formação da rede de solidariedade que se formou no socorro às vítimas? Como era isso em um tempo em que as coisas não eram tão simples quanto hoje? 
Isso foi uma das coisas que mais me surpreenderam quando eu fiz a pesquisa. Como no caso da pandemia (de COVID-19), a resposta veio por essa rede, por esse grupo de pessoas que se organizavam, que circulavam pela cidade, que iam visitar os pobres. Às vezes, as pessoas tinham em casa cinco pessoas doentes e não tinha ninguém para poder fazer uma compra, por exemplo. Então há distribuição de pão, de sopa, circulação de indivíduos para levar medicamentos. E isso tem a ver com a própria forma de organização da saúde no país, que até os anos 1920 dizia pouco respeito ao poder público. O poder público agia com relação à saúde em momentos como esses, em que havia ameaça de crise social. As autoridades encarregavam comissões médicas, distribuíam remédios, mas a saúde era muito mais uma questão da vida privada. Quem tinha recurso, contratava médicos e se tratava em casa. E a população que não tinha nada precisou se valer da caridade, as Santas Casas, as associações de trabalhadores que se organizavam para cobrir esta lacuna.








Você mencionou a reação em comum, em um primeiro momento, de autoridades daquela época com a gripe espanhola com as de hoje, na pandemia do coronavírus. De que maneira a gente pode olhar para o passado para ajudar a gente a compreender este presente e apontar caminhos para o futuro?
Há um conceito chamado dramaturgia das epidemias, criado por um estudioso americano chamado Charles Rosenberg. Ele de dedicou à compreensão de três epidemias de cólera nos Estados Unidos, em três momentos diferentes no decorrer do século 19. E ele mostra como a sociedade americana se transforma a forma como ela reconhece, percebe e reage à doença. E recorrendo à ampla literatura que há sobre as epidemias no mundo, propõe essa ideia de que há uma dramaturgia comum: primeiro a negação, "estamos no controle, isso não nos ameaça, não vai evoluir", no temor de reconhecer a presença do mal, que a epidemia é sempre percebida como o mal, uma peste que virá e arrasará a sociedade. O segundo momento é o momento em que se começam a buscar os culpados. "Temos um problema, mas de quem é a culpa?". Como aquela senhora (flagrada em episódio xenófobo registrado em vídeo de celular) no metrô, acusando uma pessoa oriental de ter trazido o coronavírus para o Brasil. Traduz isso. A culpa, a epidemia sempre vem do outro, vem de fora, nunca da nossa sociedade, sempre algo estrangeiro. As pessoas canalizam então o ódio delas desta forma. Na pandemia de 1918, tínhamos a ideia de que a pandemia era veneno dispersado por alemães em submarinos, para alterar o cenário da guerra. Tinha gente que dizia que o tanto de bombas lançadas no grande conflito teria alterado a atmosfera e favorecido o surgimento daquela doença. O terceiro momento é aquele em que é preciso se organizar para fazer frente à doença, em que se vê a solidariedade e a sociedade atuando. Naquele momento, quando não havia a questão da saúde efetivamente provida pelo estado, esteve totalmente na mão da sociedade. Como a Associação São Vicente de Paulo, ou comerciantes doando mercadorias e ajudando a população mais necessitada a enfrentar este momento de desestruturação daquela sociedade naquele período. Por fim, resta esse olhar retrospectivo, depois que a coisa começa a se assentar, na reflexão: O que isso transformou?