O que está por vir após a pandemia é uma crise econômica de grande magnitude, nunca vivenciada pela maior parte dos brasileiros em idade adulta. Para evitar que se transforme em depressão econômica, serão exigidas do governo federal políticas coerentes e concatenadas. Agrava este cenário o comportamento de permanente confronto do presidente da República Jair Bolsonaro, dos seus filhos e de alguns de seus ministros da chamada “ala ideológica”, que quando não se digladiam com ministros do próprio governo, criam e alimentam novas crises, a mais recente contra a China, maior parceira comercial do Brasil.
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Em entrevista exclusiva ao Estado de Minas, Paulo Nogueira Batista Júnior considera que no cenário da geopolítica mundial da pós-pandemia, a China tende a se destacar pela capacidade de superação da crise; diferentemente de certa incapacidade de reação organizada que têm demonstrado potências tradicionais do Atlântico Norte. “As potências ocidentais dos dois lados do Atlântico Norte sofreram três grandes baques: a crise financeira econômica de 2008-2010, a ascensão de lideranças retrógradas e agora a crise do novo coronavírus, que não estão sabendo administrar bem”, avalia.
Qual foi o impacto no Brasil da crise em 2008, como saímos dela e o que perspectiva temos agora para sair da atual crise provocada pelo novo coronavírus?
O Brasil foi um dos países que se recuperou mais rapidamente da crise internacional de 2008-2010. Sentimos a crise, ela foi profunda e atingiu parceiros econômicos importantes, notadamente os Estados Unidos e a União Europeia, mas o Brasil, assim como outros emergentes, saiu rapidamente daquela crise. O país estava em condições melhores naquela época, vinha se recuperando, se fortalecendo. Já a crise atual pega o Brasil em um momento de fragilidade: desde 2015 é um país polarizado, enfraquecido, a economia atravessou uma recessão profunda entre 2015 e 2016, nunca se recuperou inteiramente. Tivemos vários anos de crescimento medíocre, de 2017 a 2019. Havia a perspectiva de que o país pudesse crescer um pouquinho mais em 2020, mas com esse choque brutal, originado da crise do novo coronavírus, teremos outro ano de recessão em 2020. A questão hoje para nós – e para a maior parte da economia mundial – não é se vamos conseguir evitar a recessão ou não. A recessão é inevitável. Mas a questão posta é se o governo brasileiro conseguirá adotar políticas coerentes para evitar que a recessão se transforme numa depressão.
Quais são os desafios imediatos a serem enfrentados pelo Brasil?
Primeiro, responder ao risco de saúde pública com medidas eficazes de contenção da pandemia no território nacional. E, segundo, defender os níveis de atividade econômica e de emprego no país. No meu entender, o governo brasileiro está falhando nos dois aspectos. Por quê? Uma razão fundamental é a atitude tumultuada do Presidente da República no combate à pandemia, que dificulta muito uma resposta eficaz, apesar dos esforços do Ministério da Saúde e dos governadores. Está faltando, também, uma reação macroeconômica forte e convincente. As medidas tomadas no campo fiscal e monetário são tardias, em muitos casos insuficientes e em alguns casos, discutíveis. Basicamente, a equipe econômica mostra desde o início da crise, grande dificuldade de fazer a necessária mudança de rumo. Num primeiro momento, integrantes da equipe econômica chegaram a declarar que as reformas estruturais seriam a melhor vacina contra a pandemia. Insistiam ainda naquele discurso monótono, no samba de uma nota só. Agora estamos diante de emergência perigosíssima e esse discurso caiu por terra. Porém, a equipe econômica do governo está tendo dificuldade de articular uma resposta à crise. Foi pressionada por todos os lados para adotar medidas de expansão fiscal, monetárias, de emergência na área social, mas está respondendo de forma lenta e confusa.
O que esperar desta crise no Brasil para o setor produtivo e o desemprego?
A economia brasileira sofre um choque de demanda externa, um choque de demanda interna e um choque de oferta ao mesmo tempo, todos três de grandes proporções. Ninguém sabe ao certo, mas a Economist Intelligence Unit previu recentemente queda de 5,5% do PIB brasileiro em 2020. Poderemos ter uma queda no mínimo da magnitude das quedas anuais de 2015 e de 2016. O desemprego vai crescer muito rapidamente. E a indústria e o setor de serviços vão sofrer mais. Todos os setores vão sofrer: serviços, indústria, talvez a agricultura sofra um pouco menos, mas mesmo agricultura, porque a agropecuária exportadora vai ser afetada, inclusive por fatores que não tem a ver com a pandemia. O que vai crescer na crise? O gasto público, por causa da emergência macroeconômica. A dívida pública aumentará consideravelmente. Cabe perguntar, novamente, como é possível que o Estado brasileiro, supostamente quebrado e falido, possa de repente salvar a economia com substancial aumento de seus gastos, déficit e dívida? É curioso. Na realidade, nunca foi correto dizer que o governo federal estava quebrado. É verdade que alguns estados da federação estão quebrados; Rio de Janeiro e Minas Gerais, por exemplo. Não a União, que tinha dificuldades fiscais. Mas o discurso de “quebra” da União era caricatural, servia a propósitos políticos, não raro escusos, como facilitar a aprovação de medidas difíceis, com efeitos sociais regressivos, e a venda de empresas públicas. Mas, deixando isso de lado, numa crise grave como a atual é inevitável que o gasto público aumente rapidamente para fazer face à ameaça à saúde pública, sustentar a demanda efetiva e atender os setores mais vulneráveis. Uma parte desse gasto público pode ser atendida com a expansão monetária pura e simples; outra parte com impostos sobre setores mais ricos. Contudo, aqui como nos outros países, a maior parte vai ser financiado com a dívida pública. Então, uma questão no pós-crise vai ser como lidar com essa dívida pública aumentada, em razão da crise do coronavírus. Será um desafio muito importante nos próximos anos. O Brasil e outros países terão dívidas públicas maiores como percentagem do PIB. A carga de juros do setor público será mais alta, a menos que as taxas de juro continuem extraordinariamente baixas. Se a despesa de juros for mais alta, como é provável, o superávit primário requerido para equilibrar as contas será pesado. Se os governos tentarem aumentar o superávit primário rapidamente, colocarão em risco a recuperação das economias. O debate sobre austeridade reaparecerá, fatalmente.
O ministro da Educação ironizou a China e criou uma tensão diplomática. Que consequências o país pode colher dessa ação?
Não faz sentido buscar embates com nenhum país neste momento. Mais do que nunca os países precisam cooperar. E é ridículo comprar brigas gratuitas com nosso maior parceiro comercial. A China é um país que hoje pode nos ajudar com insumos e equipamentos para combater a pandemia. Chega às raias da loucura ver que ministro da Educação deboche da China e um filho do presidente insista em fazer comentários depreciativos sobre aquele país. É realmente, digamos assim, um comportamento alucinado.
Que tipo de oportunidades o Brasil perde com a perda de vitalidade do processo dos Brics?
Arrisca a perder muito. Quando o Brics foi formado em 2008, eu estava em Washington, no FMI, e participei desde o início nas reuniões do grupo como delegado brasileiro. O Brasil, na época, estava em outro diapasão. Defendia seus interesses nacionais, e juntava-se, também, a outros países emergentes importantes, para rever a arquitetura financeira internacional, como eu explico no livro que publiquei recentemente. As dificuldades de avançar na reforma do FMI e do Banco Mundial levaram os Brics a criar mecanismos próprios de financiamento: um fundo monetário dos Brics, denominado de Arranjo Contingente de Reservas, e o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) do qual fui vice-presidente entre 2015 e 2017. Os Brics são um foro que reúne os principais países emergentes. Só para ter uma ideia, Rússia, Índia, China e Brasil, - a África do Sul chegou depois -, esses quatro fundadores do processo Brics, a partir de 2008, são junto aos Estados Unidos os únicos cinco países do mundo que fazem ao mesmo tempo parte das listas dos dez maiores PIBs, dos dez maiores territórios e das dez maiores populações. Então, os Brics reúnem quatro dos cinco gigantes do mundo em termos de economia, território e demografia. Estabeleceu-se uma interação entre os cinco países que beneficia os países do ponto de vista tecnológico, político, econômico. Esse foro foi criado, recorde-se, numa época em que o Brasil se comportava como o grande país que é. Até 2014, o Brasil era um motor do processo Brics. Entrou em crise em 2015 e até agora não conseguiu se reerguer. Adota, no governo Bolsonaro, uma política de alinhamento automático com os Estados Unidos. Não faz o menor sentido para um país com o tamanho do Brasil.
Num momento como este, que resposta o Brics poderia dar aos cinco países membros?
O Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) pode oferecer empréstimos de longo prazo, em condições atraentes, para os países que apresentem projetos ligados ao combate à crise. O NBD já aprovou um projeto nesse sentido para as três províncias mais atingidas na China. E avisou aos outros quatro membros, que está disposto a fazer operações em montantes semelhantes e até superiores, se os países apresentarem projetos ligados ao enfrentamento da crise do novo coronavírus. As fontes internacionais de financiamento privado sofrem nessas crises retrações muito marcadas. O que sobra para financiamento externo de longo prazo são as fontes multilaterais ou oficiais. E uma delas é o banco dos Brics.
A partir da experiência da crise de 2008-2010, quais setores tendem a ser mais beneficiados nesta intervenção do estado?
É claro que existe um problema agregado, de natureza macroeconômica, que é a busca de uma compensação pelo lado do gasto público para a retração do gasto privado. Mas sempre existe também, nestes momentos, uma questão distributiva, ou seja: quais os setores que mais se beneficiam da ação estatal e quais os setores prejudicados pela omissão estatal? Então por exemplo, na crise de 2008-2010, os Estados nacionais dos países mais afetados, os desenvolvidos, Estados Unidos e europeus, levaram adiante tentativa bem-sucedida de evitar o colapso do sistema financeiro privado, com recursos públicos. Ao mesmo tempo, muitos cidadãos norte-americanos e europeus se sentiram abandonados na crise. Então uma das razões para a ascensão de lideranças da direita populista dos dois lados do Atlântico Norte foi o sentimento de grande parte da população de que, na hora da crise, o Estado se apresentou para socorrer as grandes empresas e, sobretudo, os grandes bancos, mas não estava ali para socorrer o cidadão comum, que perdeu a sua casa, perdeu o seu emprego, perdeu a sua renda. A maneira como a última crise foi enfrentada deixou um rescaldo de ressentimento e favoreceu a ascensão de lideranças populistas e na verdade, lideranças não liberais, contrários ao neoliberalismo no plano econômico. Em vários países desenvolvidos, quem se beneficia desse rescaldo de ressentimento são lideranças políticas de direita, que adotam políticas econômicas baseadas em protecionismo, em certa intervenção estatal. A chamada globalização neoliberal, iniciada com Ronald Reagan e Margaret Thatcher na década de 80 do século passado, sofreu três grandes baques neste novo século. Primeiro a crise originada do sistema financeiro em 2008-2010. E, depois, em parte como consequência do primeiro, veio o segundo choque com a ascensão de lideranças populistas, protecionistas, nos Estados Unidos e em alguns países europeus. Agora veio o terceiro choque sobre a globalização neoliberal: a crise de 2020, que mais uma vez pede forte intervenção estatal na economia.
Em sua avaliação, qual ordem econômica mundial emerge na pós-pandemia?
Em termos da geopolítica mundial, havia desde o início deste século a ascensão dos emergentes da Ásia, com destaque para a China. Na minha leitura, se daqui a algum tempo formos olhar para atrás, para o período de 2008 a 2020, vamos provavelmente dizer que esses três choques –econômico, político e de saúde pública – aceleram o deslocamento do eixo do poder mundial do Atlântico Norte para a Ásia. Acelerou-se a multipolarização do mundo, com o polo do Leste da Ásia se fortalecendo em relação ao do Atlântico Norte. Se esta minha leitura está correta, é um faux pas estratégico buscar alinhamento estratégico com os Estados Unidos. As relações com a China se tornam cruciais para a maioria dos países do mundo. Nos anos recentes, a China tomou várias iniciativas para ampliar o escopo da sua presença internacional. A nova Rota da Seda é o grande projeto internacional que a China vinha construindo, a vitrine da política econômica internacional da China. Abarca o Leste da Ásia até a Europa, o Norte da África com ramificações até em outras regiões do mundo. É projeto ambiciosíssimo cuja execução sofre, claro, com a pandemia, mas que vai continuar. Essa iniciativa chinesa é uma coleção de grandes projetos de infraestrutura. Controlada a pandemia, a China retomará com força esse projeto. E como a China parece estar saindo rapidamente da crise, ela poderá emergir da crise com ainda mais credibilidade e influência – para desespero dos americanos que estavam, desde os tempos do governo Obama, alarmados com a rápida ascensão dos chineses. Os Estados Unidos e alguns países europeus não estão administrando tão bem a crise. Mostram desordem, vacilações, incapacidade de reação organizada. As potências tradicionais do Atlântico Norte podem sair mais machucadas da crise. Aumentaram as chances, já grandes, de que o século 21 venha a ser o século da China, como o século 20 foi dos Estados Unidos.
Serviço
O Brasil não cabe no quintal de ninguém
De Paulo Nogueira Batista Jr.
LeYa Brasil
448 páginas
R$ 54,90