Nelson Freire mudou a vida de Leandro Oliveira. No primeiro concerto a que assistiu, ainda criança, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, o autor de Falando de música foi arrebatado pela interpretação do pianista mineiro para composições de Chopin. “No momento em que Nelson agradeceu ao público e, sentado ao piano, iniciou a seleção de cinco estudos do compositor polonês, eu soube que a música faria parte definitiva da minha vida”, narra Leandro na introdução de seu livro, recém-lançado pela Editora Todavia.
Pianista, regente e compositor, Leandro Oliveira tem 42 anos e comanda o programa Falando de música, em que comenta o repertório da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Ainda na introdução, ele explicita seu objetivo ao escrever um livro de música clássica para leigos: “Tentei ser pragmático mas inspirador, sem deixar com isso de ser informativo.” Em linguagem coloquial e bem-humorada, ele conta a origem da definição de música clássica, discorre sobre a etiqueta nas salas de concerto, defende a abordagem do clássico como contracultura, esclarece a importância do silêncio entre os movimentos de uma sinfonia, critica o esnobismo na associação com pessoas de alto poder aquisitivo: “É um simbolismo curioso, como se a audição dos últimos quartetos de Beethoven fosse assunto a ser tratado em lugares caros, ao lado de carros e relógios sofisticados, que ocupam as garagens e os pulsos de senhores atléticos, evoluídos e refinados.”
Amparado pelas ideias de Italo Calvino e George Steiner, ele traz ainda Metallica e Bob Dylan para um repertório que inclui, ao final de cada capítulo, indicações de leituras. Também oferece uma seleção de peças indispensáveis apresentadas em guia “absolutamente idiossincrático” que inclui composições de Haydn, Mozart, Bach, Schubert, Wagner, Paganini, Mahler, Prokofiev, Strauss, entre outros. E, com convicção e paixão, o autor insiste que o mais importante é “ouvir, ouvir, ouvir.”
“Saber ouvir os clássicos nos dias de hoje é, a cada ocasião, também reaprendê-los intimamente. O mundo contemporâneo exige essa predisposição plural, uma experiência auditiva rica e mutável, intensa exatamente por não ser unívoca. A música clássica exige um ouvinte que seja também um cocriador. Nessa exigência, ela precisa encontrar interlocutores à altura para que desabroche como nova. Pois somos nós, hoje mais que nunca, que a fazemos grande.” Tudo para que os leitores de Falando de música, com seus compositores e intérpretes prediletos, alcancem o mesmo arrebatamento que o jovem Leandro Oliveira sentiu ao escutar Nelson Freire pela primeira vez.
A seguir, uma entrevista com o autor, com perguntas formuladas a partir de questões apresentadas nas oito lições do livro:
Quais os preconceitos mais arraigados em relação à música clássica? E como as lições expressas em seu livro podem ajudar a combater esses preconceitos?
Os preconceitos são muitos. Mas todos decorrem da ideia de que se trata de uma música para uma elite – cultural ou econômica. Do ponto de vista da capacidade de expressão e escopo, não é verdade. Toda a ideia do livro é tentar tirar da frente parte desses problemas, que, afinal, não são musicais, mas meramente sociológicos ou psicológicos, por assim dizer.
Por que o Brasil adotou o rótulo “música erudita”?
Acho que para distinguir a “música clássica” do “estilo clássico” – a música de um período específico da histórica da música. A meu ver, uma bobagem. Por vários motivos, mas o mais evidente é que a ideia de “erudição” pouco tem a ver com 90% do repertório da música clássica. Além disso, só se fala “música erudita” no Brasil. Ora, se estamos falando de uma arte cosmopolita, qual o motivo de não nos irmanar com outros países? Música clássica, é isso.
Por que o silêncio, com “S maiúsculo”, é tão importante a ponto de ganhar um dos capítulos do livro?
Porque é, talvez, o imbróglio historicamente mais controverso e esteticamente mais desafiador para o ouvinte da música clássica. A ideia de que, para ouvir música, é necessário um ambiente silencioso, a emular uma atmosfera quase religiosa, é uma invenção muito recente na história – e que causaria problemas sérios se posta em prática nos tempos de Mozart, Beethoven e mesmo entre diversos artistas da primeira metade do século 20.
O que acha da promoção da música clássica como “ativo de bom gosto para gente madura e de alto poder aquisitivo”?
Acho que, como estratégia de mercado, funcionou muito bem, por certo tempo. Não sei se é a melhor estratégia para sua perpetuação no mundo contemporâneo – no qual os ricos são jovens, o gosto-padrão das elites é mediado pelo mundo digital, a hiperconexão requisita respostas imediatas e sem hermetismos.
Como a música clássica se relaciona com a oposição cultura x mercado?
A resposta é complexa, e a tendência mas imediata é dizer, para chocar: “Relaciona-se mal”. Mas aí vemos que tanto as instituições dedicadas ao assunto, quanto o repertório e o público, seguem ativos e estusiastas em todos os lugares – na China e no Chile, nos países nórdicos e até, imagine você, no Brasil… A música clássica está longe de ser um produto mercadológico popular, no sentido de consumido por uma massa de centenas de milhões de pessoas. Mas tampouco está longe de morrer. De algum modo, como dado cultural, a música clássica é, hoje, inequivocamente, um ativo internacional; por outro, no mercado, ela tem seu nicho, estrito e talvez pouco rentável, mas certamente prestigioso e estimulado por novidades e experimentações. Então, para responder de novo, acho que, nesta falsa tensão entre cultura x mercado, a música clássica se relaciona bem. Os ouvintes de música clássica, por sua vez, talvez nem tanto…
Qual a importância do investimento na manutenção das filarmônicas e salas de concerto, como as Salas São Paulo e Minas Gerais, em um país com tantas dificuldades como o Brasil?
É a importância de querer participar desta grande conversação internacional que qualifica as sociedades democráticas e o mundo civilizado. Mas isso deve ser entendido para além dos ganhos imediatos da realpolitik. Embora esta seja uma dimensão rara no nosso debate público, e mais ainda da média dos nossos quadros políticos, a pujança de uma sociedade deve ser medida para além do resultado das próximas eleições. E é a força das instituições que permite esta interlocução no médio e longo prazo – instituições no sentido lato do termo: a diplomacia, a ciência, o cultivo das artes, uma certa qualidade de valores que garantam a dignidade existencial mínima de sua população, com todos os seus matizes ideológicos e existenciais.
Ora, não somos “apenas” mineiros, paulistanos ou brasileiros: estamos todos no mesmo barco – e a atual crise sanitária nos permite perceber esta realidade do modo mais dramático: somos humanos.
Em 2020, são celebrados os 250 anos de nascimento de Beethoven. O que o faz considerar o compositor alemão uma figura crucial na transformação do gosto musical?
Não sou eu, mas a história da cultura. Ele produziu num momento importante, de grandes transformações. E sua música foi ao mesmo tempo um radar e um motor para essas transformações. Nós vivemos no mundo inventado por ele e seus contemporâneos.
Em tempos de recolhimento forçado, quais seriam os compositores e obras adequados para apreciar a música clássica?
Os compositores adequados, ousaria dizer, são aqueles que não te deixem deprimido! Aí, cada um encontra o seu. Nesse sentido, eu curto muito J. S. Bach e Joseph Haydn. Chopin, que talvez seja meu compositor preferido, sempre me faz um pouco melancólico – e, se me pegar num dia ruim, poderia ser um desastre, sobretudo agora, sem a possibilidade de ver amigos ou sair na esquina para tomar um café ou cerveja. Mas não tenho deixado de ouvi-lo… Isso é pessoal – e, assim como há quem curta música para lavar louças e cozinhar, outros que precisem parar para ouvir de olhos fechados, há sempre aptidões de temperamento nessas escolhas. Sugeriria ir explorando. Talvez Beethoven, talvez Vivaldi – são sempre muito enérgicos e eventualmente “solares”. O século 20 é legal também: Stravinsky, Villa-Lobos.
Qual é a contribuição brasileira para a música clássica? Quais compositores e obras brasileiros merecem maior destaque?
A contribuição brasileira é vasta, desde pelo menos o século 19. Villa-Lobos e Carlos Gomes seguem como os mais discutidos. Mas talvez precisemos ainda explorar e conhecer melhor nosso repertório. A Filarmônica de Minas Gerais fez uma gravação irretocável de obras de Alberto Nepomuceno – saiu em catálogo internacional, ganhou prêmios na França e na Inglaterra. Quem não ouviu precisa ouvir. Arriscaria dizer que nossa contribuição está ainda por ser realizada. E, sem surpresa aqui, depende de nós, gestores de cultura, mas também ouvintes, e artistas.
Você cita uma passagem de Por que ler os clássicos, de Italo Calvino. A partir da proposta do escritor italiano, eis a pergunta: Por que ouvir os clássicos?.
Fiz o livro inteiro, no fundo, para responder a essa pergunta!
Falando de música – Oito lições sobre música classica
De Leandro Oliveira
Todavia
126 páginas
R$ 44, 90