Jornal Estado de Minas

A origem do mal

O primeiro aviso veio cedo: “Vocês ainda vão ouvir falar muito sobre mim. Esperem apenas até a minha hora chegar”. Todos os outros deram risadas. Ele se limitou a balançar a cabeça e ainda falaria muitas vezes do dia em que sua hora chegaria. Estamos em 1916, em plena Primeira Guerra Mundial. Ferido na virilha por um fragmento de granada, o jovem mensageiro dos campos de batalha sonha em salvar a Alemanha.



O segundo aviso é na Universidade de Munique, em julho de 1919. Bigode curto, cabelos pretos muito lisos, olhos azul-claros frios e uma voz belicosa e implacável, ele esbraveja publicamente pela primeira vez contra judeus, comunistas e outros “traidores” da Alemanha. Jura vingança a todos que impuseram a humilhante derrota à sua pátria e a “vergonha” do Tratado de Versalhes. Mais um doido delirante, todos pensam.

O terceiro aviso vem no mesmo ano numa carta a outro ex-soldado: “Vive entre nós uma raça estrangeira, não alemã, que não pretende nem consegue sacrificar seu caráter racial ou negar seus sentimentos, seu raciocínio, suas ambições. Não obstante, tem os mesmos direitos políticos do que nós. Tudo que os outros homens almejam como meta superior, seja religião, democracia, é para o judeu apenas instrumento para outro propósito, saciar sua ânsia por dominação. O judeu é uma tuberculose racial para as nações”.

O quarto aviso surge em abril de 1922, discurso na sede do recém-fundado DAP (Partido dos Trabalhadores Alemães, embrião do Nazista): “Dois mil anos atrás, outro homem também foi execrado por essa mesma raça. Esse homem foi arrastado para o tribunal e lhe disseram: ‘Ele está atiçando o povo. E contra quem?’ ‘Contra Deus’, gritaram. ‘Sim, ele estava agitando contra o 'deus' dos judeus, pois esse 'deus' é o dinheiro’. São usurários, víboras e mentirosos”. Centenas de membros do partido aplaudem então aquele que é apenas um agitador de cervejarias em Munique

Os avisos crescem. Em meio à Alemanha em convulsão, destruída pela guerra, com hiperinflação e a população na miséria e desesperada, o obstinado militante, de 32 anos, em trajes justos, um revólver na cintura e um chicote, desfila pelas ruas de Munique com seu bando de camisas pardas (Sturmabteilung, conhecidos como SA), espancando adversários. A ameaça toma forma, chama-se nazismo, mas o governo social-democrata alemão não mexe com o líder do partido, que já tem muitos adeptos e é popular.



Então, dois mil homens sob o comando do chefe de bigode curto tentam derrubar o primeiro-ministro da Baviera. O golpe fracassa, o líder é condenado e preso, mas vira herói na prisão. O governo, mais uma vez, acha que está tudo sob controle e os vizinhos europeus ouvem falar e riem do tal “nazista delirante”.

O penúltimo aviso vem em janeiro de 1933: o ex-mensageiro da Primeira Guerra Mundial vira chanceler alemão nomeado pelo presidente Paul Hindemburg – que morre um ano depois –, com pseudodiscurso conciliador. Apenas um político europeu vê o “espírito maligno que se alastra pela Alemanha”, por meio das transmissões de rádio. Ele é o futuro primeiro-ministro britânico Winston Churchill.

Estamos agora em 1938. É o aviso final. Por ordens do homem do bigodinho, os nazistas desmantelam o sistema judiciário, eliminam a social-democracia parlamentar e dispõem de impressionante máquina de guerra. Mas, incrivelmente, os demais países europeus fazem vista grossa, se omitem diante da grave ameaça. Ainda têm viva na memória a carnificina da Grande Guerra – como até então era chamada a Primeira Guerra Mundial – e não querem outra.



Tarde demais. Em 1º de setembro de 1939, aquele soldado ferido de 1916, que disse que todos ouviriam falar muito dele, comanda 1,5 milhão de soldados e invade a Polônia. Começa a Segunda Guerra Mundial e o resultado, após seis anos de batalhas, é o genocídio de pelo menos 60 milhões de pessoas.

O OVO DA SERPENTE

A obra-prima do cineasta sueco Ingmar Bergman sobre a gênese do nazismo em Berlim na década de 1920 é ótima analogia para falar do nascimento, da infância, da adolescência e da juventude de Adolf Hitler. Os primeiros passos, delírios e avanços do homem que causou a maior matança da história da humanidade entre 1939 e 1945 são detalhados no livro O jovem Hitler – Os anos de formação do Führer, do jornalista e historiador australiano Paul Ham, de 60 anos. É boa reflexão para a quarentena na passagem dos 75 anos da morte do ditador, no cerco final a Berlim, completados ontem.

Ham vasculhou a genealogia, o início da carreira do futuro ditador, seus diários de guerra, a ascensão política meteórica, a autobiografia Minha luta e dezenas de testemunhos de época. São fatos e histórias pouco conhecidos da infância e da juventude de Hitler, muitos deles omitidos por ele e pelos nazistas para não “manchar” a biografia do “salvador” da Alemanha.



Hitler nasceu há 131 anos, em 20 de abril de 1889, um sábado de Aleluia (que ironia!), na pequena cidade de Braunau am Inn, na Áustria, onde o pai e a mãe moravam de aluguel num apartamento sobre uma taverna. Os dois irmãos que nasceram antes dele, um menino e uma menina, morreram cedo, o que levou Klara, sua mãe, a dedicar ao pequeno Adolf todas as atenções do amor materno.

O nome Hitler é uma variação de Hütler (de origens germana e tcheca, que remonta ao século 14 e significa “pequeno proprietário”), sobrenome comum que o pai de Adolf, Alois, um agente aduaneiro, pegou emprestado do seu pai adotivo. Paul Ham conta que Alois era um austríaco germanófono que se considerava mais alemão do que os alemães no caos étnico do Império Austro-Húngaro, que tinha 11 nacionalidades, nove línguas e várias religiões. Era bruto e desagradável dentro de casa, quando não estava bêbado na taverna mais próxima. Klara o conheceu quando foi faxineira dele.

SURRAS E MAIS SURRAS

Por causa da violência do pai, que sempre o espancava por qualquer desobediência, Adolf era um menino mimado pela mãe, que ainda teve mais dois filhos. Aos 12 anos, era egocêntrico, de temperamento agressivo e nítido desprezo pela autoridade, o que só aumentava as surras do pai. “Criança imperiosa que se irritava com facilidade, não dava ouvidos a ninguém. Quando as coisas não eram feitas do seu jeito, ficava histérico. Não tinha amigos, não se afeiçoava a nenhuma pessoa e, às vezes, era muito cruel, se enfurecia com qualquer trivialidade”, conta Ham.



Na escola, em Linz, Adolf era teimoso e indolente, chamado de “caipira”, não fez amigos nem tentou fazer. Ridicularizava toda autoridade e foi reprovado em 1901. Seu único interesse era por arte. Tinha o sonho de ser pintor, o que causou a ira do pai, que queria que ele seguisse a carreira no funcionalismo público também. 

O adolescente se dividiu entre o amor pela mãe e o medo e o ódio pelo pai. Os acessos de raiva, característicos de sua vida adulta, começaram por esta época. Em 1903, Alois morreu de hemorragia após queda numa taverna, aos 65 anos. Sem o pai, o menino se tornou mais rebelde, inclusive na escola, detestava colegas e professores, a quem culpava por seu fracasso. Acabou abandonando de vez os estudos. Apesar de tudo, não teve infância difícil, não faltava nada dentro de casa.

ARTISTA FRUSTRADO

Desde adolescente, Hitler tinha como ídolos o monge alemão Martinho Lutero (1483-1536) – que execrava judeus –, o imperador da Prússia Frederico, o Grande (1740-1786), o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) e, acima de todos, o compositor Richard Wagner (1813-1883). Já nesta época sofreu uma série de infortúnios a partir da perda do pai que o jogaram literalmente na rua. Ainda não tinha sinais de antissemitismo. O pai não admitia discurso racial em casa, contou o próprio Hitler em Minha luta.



Paul Ham fala do amor platônico de Hitler por uma adolescente, mas ele não tinha coragem de abordá-la e ficou muito abalado quando ela se casou. Apreciador de óperas e começando a desenhar, foi reprovado em suas tentativas de estudar belas-artes na Academia de Artes de Viena. Em 1907, sua mãe morreu de câncer de mama, aos 47 anos, e ele, sem boas relações com a irmã, ficou sozinho no mundo.

Com pensão de órfão e pequena herança de Klara, voltou de Linz para Viena. Dividia quarto com outro rapaz, não tinha namorada e produziu dezenas de desenhos e aquarelas. “Queria provar que era gênio”, disse o biógrafo e historiador Joachim Fest, segundo Ham. Mas, cada vez mais sem dinheiro, Hitler culpava os outros pelos seus fracassos, inclusive os políticos. Viena tinha milhares de desempregados na rua, entretanto, ele não tinha compaixão. Desprezava caridade e solidariedade. Dizia que se estivesse no comando poria os pobres das ruas a serviço do Estado, uniformizados.

MENDIGO EM VIENA

Quando as economias da mãe acabaram e após novo fracasso na Academia de Artes de Viena, Hitler teve de abandonar o aluguel e foi viver nas ruas da capital austríaca, aos 20 anos. “Ele mergulhou na mais sórdida miséria”, disse seu primeiro biógrafo, Konrad Heiden. “Dormia em bancos de praças e apenas o inverno o obrigava a procurar abrigo”, revela Ham. Durante três meses, enfrentou filas de abrigos com cabelo nos ombros, sapatos furados e imundo. “Chegou quase a ser expulso do abrigo por excesso de sujeira. Era irascível, briguento, não admitia opiniões contrárias”, mesmo tendo que pedir dinheiro nas ruas.



Então, um trambiqueiro profissional conheceu Hitler na sarjeta e o convenceu a pintar cartões-postais para vender para turistas. Com o dinheiro, foi morar num abrigo financiado por instituições de caridade judaicas (que ironia!). Por causa da mendicância, passou a ser radical com higiene pessoal e evitava sexo por medo de sífilis. Ham diz que ele se manteve virgem até os 24 anos, segundo colegas da época. “O celibato acelerava o raciocínio, renovava a memória, inspirava a imaginação e fortalecia a vontade”, dizia Hitler. Também não consumia álcool e comia pouca carne vermelha.

EDUCAÇÃO POLÍTICA

Aos 23 anos, em 1912, Hitler, ainda num abrigo, passou a ler obras de extrema-direita contra o que já vinha vendo nas ruas: eslavos, marxismo e socialistas e judeus “gananciosos por dinheiro”. O poderio militar alemão à época era grande com o 2º Reich (1871-1918) herdado de Otto von Bismarck (1815-1898) – outro ídolo de Hitler –, que, pela primeira vez na história, formou um Estado alemão único, preferindo a política da força em vez do liberalismo. Era o que o inspirava, a Alemanha pura, rica e beligerante, com grande poderio militar. Era o triunfo do pan-germanismo, que via eslavos e judeus como inferiores.

Em 1914, o arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono austríaco, foi assassinado em Sarajevo, na Bósnia-Herzegovina. Com apoio alemão, o Império Austro-Húngaro quis revidar na Sérvia, considerada responsável pela articulação do crime. Rússia, França e Inglaterra se opuseram. Começou então a guerra, para grande satisfação de Hitler. Ele deixou o abrigo, se alistou e foi para o front como recruta de infantaria num batalhão da Baviera.



“Hitler finalmente havia encontrado um lar” conta Ham. Na guerra se destacou como mensageiro, atravessava a pé ou de bicicleta linhas inimigas para levar ordens datilografadas do quartel-general aos comandantes no front. Era o único meio de comunicação quando as linhas telefônicas eram destruídas. Por bravura, recebeu graduação equivalente a cabo, mas sem comando sobre soldados. Era como um soldado superior que nunca desistia, “confiável e seguro.”

ASCENSÃO DO ORADOR

Hitler continuava solitário, pudico e arrogante, não bebia e não namorava, diz Ham. Vivia à base de pão, marmelada, e chá ralo e uma fatia de bacon. Depois de se tornou vegetariano. A derrota da Alemanha na guerra o levou ao desespero. E quando foram assinados o armistício e o Tratado de Versalhes, em novembro de 1918, com severas imposições ao país, ele passou a chamar de traidores os sociais-democratas do seu país e jurou vingança.

A Alemanha destroçada pela guerra, faminta, com hiperinflação, precisando de líderes, foi terreno fértil para Hitler e outros radicais. “Os seres humanos são fracos, e assim prescindíveis, ou fortes, e assim exploráveis”, dizia ele diante da população sofrida. Ele desdenhava dos miseráveis, para ele eram apenas covardes.



Então, sua ascensão começou. No pós-guerra, entrou para o Conselho de Soldados com discurso contra comunistas na Alemanha (a Rússia tinha se tornado União Soviética e estava sob poder do bolchevismo). Filiou-se a movimentos de ultradireita com a intenção de derrubar o próprio governo da Baviera. Veio então o nacional-socialismo se opondo ao bolchevismo. Defendia os trabalhadores, mas não tinha a classe como prioridade, e sim a pátria. Essa era a diferença entre as duas ideologias. Começou a frequentar cervejarias como integrante do recém-criado Partido Nazista, que ajudou a fundar, em 1919, formado por gente de classe média, basicamente, impressionava a maneira como Hitler discursava, sempre pregando ódio e xenofobia. Era preciso achar um culpado pela derrocada alemã. Os judeus foram o alvo fácil.

TOMADA DO PODER

Nas tavernas, as plateias vibravam com seus discursos. “Era uma figura messiânica disposta a expurgar os judeus do templo luterano”, diz Ham. “Para um país prostrado, esse orador estranhamente carismático oferecia palavras que pareciam validar o sacrifício da nação enquanto ninguém mais se atrevia a tentar. O pós-guerra deixa milhões de pessoas, que antes eram bem de vida, miseráveis. O desespero da população deu munição a Hitler com oratória impressionante. A forma do discurso, com gestos firmes, impressionava mais do que o conteúdo.”

Mesmo ridicularizado pela imprensa, ele passou a ser visto cada vez mais como líder mítico, um “messias” que tiraria a Alemanha das trevas. Por essa época, meados da década de 1920, começou a ser chamado de Führer (líder) pelos nazistas, que se cumprimentavam com gesto do braço direito estendido, que copiaram do Partido Fascista italiano, e gritando Heil (salve) Hitler. Ostentavam a suástica, a cruz com ganchos, antigo símbolo budista (que ironia!) apropriado pelos nazistas. Em poucos anos, Hitler passou de centenas para milhares e milhões de seguidores, virou chanceler, derrubou o governo e criou um império devastador que subjugou a Europa.


OMISSÃO DO MUNDO

Segundo Paul Ham, Hitler só foi possível por causa da devastação da Primeira Guerra Mundial, que destruiu completamente a Alemanha, então em busca de um novo líder para se reerguer. “A verdade é que Hitler e os nazistas agiram com a transigência e cumplicidade do mundo. Estimulado pela vista grossa que as poucas nações opositoras fizeram e pela participação calorosa das que colaboraram, os nacional-socialistas concluíram que haviam recebido aprovação da história, agiam com impunidade política e moral”, avalia.

E o que é pior, diz Ham, se Hitler estivesse vivo hoje, encontraria milhões de seguidores no Ocidente, muitos ostentando sem nenhum constrangimento a admiração que sentem por ele. O Holocausto, os campos de extermínio e as centenas de milhões de mortos da Segunda Guerra não convencem os nazistas do século 21, pelo contrário, são deleite para eles. Para o autor, Hitler não deve ser visto como louco ou psicopata. “A verdade perturbadora é que Hitler não era monstro, era profundamente humano, personificava o sentimento de milhões de pessoas e ainda personifica”, diz.

O JOVEM HITLER

De Paul Ham
Editora Objetiva
302 páginas
R$ 64,90
R$ 39,90 (e-book)

TRECHO
“Hitler era dotado de vontade de ferro, memória impecável, talento para manipular as massas e carisma hipnótico como orador. Seu ódio violento contra os judeus atiçou as chamas do ódio racial na Alemanha e por todo o mundo, alimentando movimentos fascistas desde os Bálcãs até a Inglaterra. O nazismo atraiu seguidores de todos os estratos sociais. Foi a brutalização de um povo, mais do que qualquer qualidade inerente de Hitler como homem, que o levou ao poder. A Primeira Guerra Mundial degradou a sociedade alemã de forma tão absoluta que qualquer agitador fascista desequilibrado e racista era considerado 'racional' e 'normal'.