(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas PENSAR

Memorial Sérgio Sant'Anna: leia trecho de conto ambientado em BH

História faz parte do livro O Homem-mulher (2014) e se passa na Região de Venda Nova. Escritor carioca morou na juventude na capital


postado em 15/05/2020 04:00 / atualizado em 15/05/2020 08:11

O escritor carioca Sérgio Sant'Anna morou em Belo Horizonte e lançou aqui seu primeiro livro, em 1969(foto: Chico Cerchiaro/Divulgação)
O escritor carioca Sérgio Sant'Anna morou em Belo Horizonte e lançou aqui seu primeiro livro, em 1969 (foto: Chico Cerchiaro/Divulgação)

"Pode-se começar em qualquer parte, e por que não com as aranhas? Aranhas-caranguejeiras, peludas e peçonhentas, que podiam surgir quando menos se esperava e, embora seu coração batesse, ele as enfrentava, ou dando uma sapatada nelas na parede ou esmagando-as no chão. E ele achava curioso como as aranhas, que pareciam enormes quando vivas, de repente se reduziam a um quase nada quando esmagadas. Já a mulher corria ao topar com uma aranha dessas e ele achava interessante perceber como ela tinha medo de certas coisas e era tão corajosa para outras, inclusive para viver no lugar onde moravam.

A casa, modesta, era numa rua de terra batida, uma ladeira, em Venda Nova, na periferia de Belo Horizonte. Do lado direito de quem subia havia as casas, cada vez mais pobres à medida que se ia subindo; do outro lado havia a chácara e a mata. Nunca tinham vivido num lugar assim, nem ele, nem ela. Ela ganhava pouco como relações-públicas de um clube e até então vivera, muito conflituosamente, na casa dos pais. Ele, saindo de um casamento, deixara quase tudo para trás, mas não o emprego público, embora tivesse se demitido da universidade, que lhe pagava muito pouco e onde ela fora aluna dele. Ele tinha trinta e três anos e ela, vinte e sete. Antes de mudarem para a casa, ela passou um mês no Oeste Palace Hotel, perto da rodoviária.

No princípio, não tinham nada, nem mesmo uma cama, e dormiam num colchão velho. Também não havia mesa e cadeiras, faltava até um chuveiro elétrico e a própria água da casa vinha de uma cisterna que a bombeava para uma caixa de cimento no telhado. Havia também um quintal com alguma coisa plantada, mas tomado principalmente pelo mato, que depois o velho vizinho passou a capinar para eles por uma pequena quantia, pois no mato crescido podiam esconder-se cobras, logo lhes avisaram.

Aos poucos, depois que alugaram a casa, eles foram mandando fazer móveis essenciais em carpinteiros baratos das redondezas e comprando utensílios, sempre a preços módicos, e ela trouxera algumas coisas de casa e outras ganharam de amigos, até que a casa se tornou minimamente habitável. Também pintaram tijolos e tábuas e fizeram estantes e prateleiras.

Ela possuía um volks branco, indispensá- vel, pois era o que permitia que morassem naquele lugar

Ao anoitecer, quando saíam dos respectivos trabalhos, eles vinham, na hora do rush, pela avenida congestionada que ligava o centro a bairros de periferia, como o deles, e ele não podia dirigir porque ainda estava na autoescola e, antes, nunca quisera saber de automóvel, talvez pelo trauma do desastre com a família quando ele ainda era pequeno. Havia também um caminho alternativo para chegar lá e, quando eles vinham por ali, topavam com um trailer abandonado num terreno baldio, um trailer todo colorido e com a inscrição A FILHA DE DRÁCULA, que era retratada com seus caninos pontiagudos. E eles viviam pensando em fazer um curta-metragem de terror ali no trailer, mas nunca fizeram

Ele vinha tenso por causa da mulher dirigindo e pelo trânsito congestionado – ela tinha uma atrofia no nervo óptico dos dois olhos e comprara a carteira –, até que che- gavam à lagoa, a mulher dobrava à direita, passava pelo trecho próximo a uma das cabeceiras da pista do aeroporto e depois virava à esquerda e já estavam no subúrbio de Venda Nova. Aí era só rodar mais um pouco, chegar à rua deles e dobrar de novo à direita. Já ao entrar na rua eles sentiam alívio pelo silêncio súbito, só quebrado pelos latidos de cães e ruídos de insetos. Mas o silêncio maior acontecia quando o carro era guardado na pequena entrada da casa e o motor, desligado."  

Trecho de conto publicado no livro O Homem-mulher (Companhia das Letras, 2014)


Páginas de glória, por Sérgio de Sá*

Amazona 
(Nova Fronteira, 1986; 
Companhia das Letras, 2019)

Na primeira edição, “novela” era parte do título. Só que não. É romance que se quer típica história de amor, folhetim, quase telenovela. Só que não também. Porque o autor brinca a sério com um gênero, sendo mais pastiche e menos paródia. Não é para ser engraçado, mas para escancarar truques e estereótipos do best-seller, com imagens fotográficas e cortes cinematográficos, sem jamais perder a ternura. Desde o título, referência às guerreiras, ressalta a força da mulher. Para ser lida em moto-descontínuo, de olho no contraditório

A senhorita Simpson: histórias 
(Companhia das Letras, 1989)

São seis contos e a novela que dá título ao volume. Tão divertido quanto experimental, é ponto altíssimo na obra. O voo literário sai do nacional para alcançar território mais amplo. Começa no lugar do artista no Brasil, passa por um espetáculo circense europeu, faz escala num desses “países bolivianos” e retorna aos recantos do Rio de Janeiro de diferentes classes sociais e perspectivas diversas, inclusive a do estrangeiro. Se for para descobrir Sérgio Sant’Anna, este livro é o melhor princípio (ou o melhor meio).

O monstro: 
três histórias de amor 
(Companhia das Letras, 1994) 

O sexo tudo impulsiona. A primeira história é a carta de uma engenheira ao amante passageiro escrita – ou erguida – sobre o que é solene e racional, mas “pornografia como uma construção assinada também pelo corpo”. Na segunda, um professor universitário (de extremas “lucidez e articulação verbal”), acusado de estupro e assassinato de uma bela jovem, concede entrevista a uma revista. A terceira história narra, grande parte em forma de diálogo, a vida de um renomado compositor. O desejo tudo erotiza

Para gostar de ler (ainda mais)

Um romance de geração 
(Civilização Brasileira, 1980; Bertrand 
Brasil, 1988; Companhia das Letras, 2009)

Jornalismo, artes cênicas, literatura. Na primeira edição, o subtítulo: “comédia dramática em um ato”. Na última (2009), “teatro-ficção”. Transformada em peça de teatro dentro da própria obra, a entrevista entre Ele (O escritor) e Ela (A jornalista) se desenrola num apartamento-cenário em Copacabana. Sim, Matrioska ou Babuska metida no abismo do artista em conflito com condições políticas, comerciais e midiáticas adversas. Qualquer semelhança com o atual momento do país não terá sido mera coincidência.   

Breve história do espírito 
(Companhia das Letras, 1991)

Sant’Anna invoca o demo para nos oferecer histórias de humor refinadíssimo. Três homens em três enrascadas, ou quase. O jornalista desempregado tem de escrever redação de emprego para uma igreja evangélica. O professor de ressaca precisa dar uma aula na universidade. O jurista renomado reúne amigos e amantes para uma festa de despedida. O autor consciencioso demonstra como habilidades do estilo constroem identidades masculinas. Não há nada fora da linguagem e suas versões para cada situação cotidiana.


O homem-mulher: contos 
(Companhia das Letras, 2014)

O melhor livro de Sérgio Sant’Anna no século 21 traz um pouco de tudo do autor e a novidade da memória autobiográfica. Dezenove histórias comprovam que ele não perdeu a mão até os últimos textos. Servem ao novo e ao fiel leitor, entre experimentação e vontade de leitura. Estratégia da metanarrativa sem solavancos, artes plásticas em descrição reenquadrada, erotismo travestido em identidades cambiantes, rigor formal embalado por tratamento estético. Por fim, melancólica, a aproximação da morte

*Sérgio de Sá é doutor em estudos literários pela UFMG, autor de A reinvenção do escritor: literatura e mass media (Editora UFMG) e professor na Universidade de Brasília 


No topo da estante

Os 22 participantes desta edição especial do Pensar elegem os seus livros favoritos  

O voo da madrugada 
8 votos

O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro 
3 votos

O monstro: três histórias de amor
3 votos

A tragédia brasileira 
2 votos

A senhorita Simpson 
2 votos

Anjo noturno 
1 voto

O homem-mulher
1 voto

Notas de Manfredo Rangel, repórter (A respeito de Kramer)
1 voto

O pássaro da perfeição*
1 voto

*Antologia de contos lançada em Portugal pela Editora Tinta da China


receba nossa newsletter

Comece o dia com as notícias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, faça seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)