“Não será um livro de fofocas”, antecipa. Segundo Mandetta, é a sua tentativa de contribuir com a documentação histórica do período de sua gestão na pasta entre 24 de janeiro deste ano e 16 de abril. Começa, portanto, no último dia em que o ministro acompanhava o Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça – e a OMS reconheceu o problema na China – e vai até a data em que, pela sua conta no Twitter, confirmou que havia sido demitido depois de breve reunião com o presidente no Palácio do Planalto.
Pelo telefone, de sua casa, em Campo Grande, Luiz Henrique Mandetta concedeu entrevista exclusiva ao Estado de Minas. Leitor entusiasmado, ele se empolga ao falar sobre a epidemia de varíola na Guerra do Paraguai, que dizimou quase a metade da população de Cuiabá, além de revelar as suas companhias em noites insones: Kalil Gibran, Rachel de Queiroz, Rubem Fonseca e Platão – fez uma alusão ao Mito da Caverna, em entrevista coletiva no dia seis de abril, quando anunciou que permaneceria à frente do Ministério da Saúde, citação interpretada como uma sutil ironia ao comportamento de Bolsonaro. Menos de três semanas depois, foi demitido. E, na despedida, referiu-se ao presidente como uma pessoa “extremamente humanista”. A expressão, referência aos humanos que acreditavam ser capazes de vencer a morte, está em outro livro que Mandetta releu recentemente: A peste, do francês Albert Camus.
Por que o senhor decidiu escrever um livro sobre o combate à pandemia no tempo em que permaneceu no Ministério da Saúde?
Quando fui pesquisar sobre o que havia de produção literária científica sobre a gripe espanhola no Brasil, de 1917, descobri que era estéril. Os registros são muito poucos. Então, quis fazer uma obra para documentar. Que permaneça. Quem poderia imaginar que, no século 21, teríamos uma doença infecciosa sem tratamento, e a única recomendação seria o isolamento? Parece uma grande ficção científica.
O livro vai revelar os embates com o Planalto e com as alas ideológicas que desqualificavam a doença tratando-a como uma “gripezinha”?
O livro é sobre esse período, mas não vai ser de fofoca política. Lógico que vai ter bastidores, mas sempre justificados em função do drama da doença. As passagens políticas vão ser aquelas que têm correlação com esse período. Começo o relato no dia em que a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconhece o problema na China; eu estava no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça (última semana de janeiro). Parto, então, de Davos e vou até o dia de minha saída do Ministério.
O senhor nasceu em uma região marcada por um dos maiores conflitos da história do Brasil: a Guerra do Paraguai. É possível traçar paralelos entre uma guerra e o combate a uma pandemia?
Guerra e epidemias sempre andaram juntas. A Guerra do Paraguai tem passagem interessante relacionada à epidemia de varíola. Quando os paraguaios invadiram o sul do Mato Grosso (atual Mato Grosso do Sul), depois de atacar e ocupar o Forte de Nova Coimbra, avançaram e tomaram em janeiro de 1865 as cidades de Albuquerque e Corumbá, que ficaram quatro anos na mão dos paraguaios. O fato é que, quando o presidente da província de Mato Grosso teve as informações de que o momento era bom para contra-atacar, uma coluna de mil homens desceu de Cuiabá. Retomou Corumbá com alguma facilidade, havia somente 30 a 40 paraguaios.
Os brasileiros hastearam a bandeira nacional. O presidente da Província estava distante a uma hora de Corumbá, aguardando notícias. Mandaram avisá-lo de que haviam conquistado a cidade, mas estava havendo um surto de varíola e alertaram-no para não entrar. A coluna de combatentes brasileiros retornou para Cuiabá, que tinha uma população estimada de 11 mil pessoas. Houve em Cuiabá cinco mil mortos pela varíola, que inclusive não são contabilizados como mortes de guerra.
Há um livro sobre este período que é particularmente marcante para o senhor?
Li recentemente o livro Maldita guerra: nova história da Guerra do Paraguai (Companhia das Letras), de Francisco Doratioto (historiador paulista), que detalha toda a dinâmica militar dos cinco anos de luta. Também na Primeira Guerra Mundial, tivemos a ampla e mortal pandemia que ficou conhecida como a gripe espanhola (1918-1919), que só leva o nome porque a Espanha era neutra no conflito e noticiava a doença.
As guerras são feitas de segredos e estratégia: o inimigo você espiona, conhece, tenta surpreender. Já nas guerras contra os vírus e as bactérias não pode haver segredos: o vírus não negocia com ninguém, simplesmente é o que ele é. E, todas as vezes em que as pessoas torturam números e não dizem a verdade, a maior vítima é a população.
Em que momentos iniciais a falta de transparência foi mais visível nesta epidemia?
Tivemos uma falha de comunicação absurda. O pano de fundo foi a maneira como a China tratou a doença no início e como a apresentou para o mundo. Um país que tem 1,5 bilhão de habitantes, relata só no final e que a doença ficou apenas em uma cidade? A OMS validou que esse vírus, se controlado no começo, não se espalharia. Mas a verdade é que, na China, não sabemos o que aconteceu.
Quando o senhor teve a dimensão da gravidade do problema?
Só começamos a ter noção da gravidade das perdas humanas quando a Covid-19 chegou na Itália. Nas sociedades ocidentais, a informação que retrata a nossa relação com a vida e com o processo de envelhecimento é totalmente diferente daquela na sociedade oriental. Aí começamos a ver o que acontecia na Espanha, na França, na Inglaterra e a ter uma ideia de como iria se comportar em nosso país. Mas aqui temos maior diversidade cultural e populacional, abordada em Casa-Grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre. Por exemplo: o índio tende a fugir para a floresta, para escapar da doença do branco que dizimou tantas tribos.
Vamos lembrar, que os Tamoios, para citar esta tribo, foram dizimados em São Paulo pelo sarampo trazido por Anchieta e Nóbrega. Já o negro não podia fazer o mesmo. Vivia em ambiente insalubre, nas senzalas, onde doenças como a difteria se propagavam. Nessa hora entravam os brancos, que faziam procedimentos higienistas: pegavam os doentes, isolavam, matavam porque tinham medo de a doença contaminar a casa grande.
Como o senhor lidava com o negacionismo da Covid-19 no alto escalão da República?
As epidemias mexem muito com a sociedade. Quando estudamos as reações humanas, sempre que temos notícia ruim na área de saúde, a primeira reação é negar. essa fase, quando é uma doença familiar, normalmente a pessoa diz: “Vou pedir uma segunda opinião, vou a um segundo médico”. Vai no segundo e este diz a mesma coisa. A pessoa vai de negação em negação até o passo seguinte: a raiva. Ela começa a se perguntar: “Mas, por que eu?” Briga com Deus: “Sou uma pessoa tão boa. Vai quebrar a minha loja, o meu comércio.”
A rejeição aos fatos é ampliada pelo ódio. Depois vem a fase de rendição: a pessoa fica nocauteada em pé; fadiga emocional, depressão. Nesta fase é comum até o suicídio. Com a ira, vêm a violência doméstica e a agressão às pessoas próximas. Nesta epidemia vivemos intensamente a fase da negação. Tem alguns que ainda estão nessa fase. Muitos estão na etapa da raiva contra o ministro, contra o médico, contra o pronto-socorro, contra o prefeito, contra o governador. Raiva, raiva. Só depois que passar a depressão, é que a pessoa cai em si. Alguns pensam: “O que posso fazer para reconstruir?”. Gosto sempre de citar o exemplo da mãe do Cazuza (Lucinha Araújo), que, depois da morte do filho, montou a Fundação Cazuza para evitar casos de Aids em outras famílias e a luta passa a ser a razão de sua vida.
Se eu não ficasse ali no momento da “gripezinha”, jamais ajudaríamos as pessoas a entender, a aceitar e a ajudar a cooperar. Tive de ter autocontrole, recorri a leituras e à minha espiritualidade. Eu leio muito e acabo relendo muito também. Reli os Diálogos de Platão, a Alegoria da Caverna. Voltei a O Profeta, de Kalil Gibran. Também reli Rubem Fonseca, Rachel de Queiroz. Às vezes estava lendo mecanicamente, sem estar no livro, na história. Era uma tentativa de relaxar e pegar no sono. Eu não conseguia dormir.
Quando um presidente da República nega a gravidade de uma epidemia, qual o impacto na sociedade?
Cada um nega por um motivo de foro íntimo. A negação nunca é homogênea entre as pessoas. Há quem negue porque adoece e negue até a informação da doença à própria família e a si mesmo. Tem gente com diagnóstico de HIV, nega, e não conta nem para os parceiros. Tanto que a fase típica da negação é dramática, em que há mais contaminação. No caso do personagem que mais nega, a negação vem dentro de uma perspectiva de debacle econômico, de inviabilização de sua estratégia política. A crise econômica é um tempero ruim para quem tem aspirações políticas. Só que o vírus vai se colocando como um fato e a negação é bombardeada pelo fato. Quem nega adorar criar histórias para dar suporte à negação. Mas a realidade é muito dura.
Como avalia a postura de segmentos da sociedade que alegam a liberdade individual para não usar máscara e fazer aglomerações, colocando em risco a saúde coletiva?
Vamos entrar aí no questionamento da própria modalidade de sociedade construída nos últimos anos, voltada para o consumo. Essa própria sociedade, quando impede o consumo, entra em transe coletivo, pois vive do consumo. Desde as pessoas mais carentes, que estão em absoluta exclusão, vivendo dos restos produzidos pelas sociedades de consumo, não têm mais a quem pedir. Os shoppings são templos de consumo, onde as pessoas mais gastam. Tudo isso levantou o questionamento, porque o motivo para o qual a proibição do consumo foi imposta era a preservação da vida, do sistema de saúde, principalmente para 80% que são dependentes do SUS e precisam ter acesso à saúde. Observo também muito o comportamento das fake news, que vêm do anonimato, passam para o compartilhamento coletivo e vão formando o caldo de ódio, de ira, fazendo a fase negacionista aumentar.
Isso é usado por aqueles que querem negar. Vimos de tudo, aqueles que queriam desrespeitar as recomendações para provar que a teoria negacionista estava certa. Tenho colegas médicos, que começaram a trazer teorias de cura, chás de vitamina D. Vi pastores de igreja prometendo cura. E quando lemos A Peste, de Albert Camus, vemos isso retratado em maior ou menor escala: continua sendo as mesmas sociedades, as mesmas reações, só que agora, em uma sociedade informatizada. Mas é o mesmo ser humano, com as mesmas dúvidas, mesma pequenez diante da natureza e das forças da natureza, reagindo com a sua mesma mesquinharia e cegueira. Há alguns, contudo, que estão fazendo deste, um momento para reflexão: passam rapidamente das primeiras fases de negação e raiva, chegando à reconstrução. Que nos sirva de lição este momento, a importância da ciência; que a gente aprenda, que precisamos organizar melhor nosso sistema de saúde, que este não se cria da noite para o dia; que não devemos depender de um único país para adquirir insumos. Que as vítimas sirvam de inspiração para a fase de recuperação econômica, social, moral, cientifica e ética da sociedade brasileira.
Vivemos no Brasil um colapso dos sistemas de saúde em alguns estados. O senhor se arrepende por ter encerrado o Programa Mais Médicos com a saída de profissionais cubanos no atendimento de ponta em locais onde o médico brasileiro nem sempre está?
Em absoluto. Lamento muito é que as faculdades apresentem um melhor programa de formação. Estamos formando 35 mil profissionais por ano; serão 350 mil por década. Passamos de 148 faculdades em 2013 para 323, em 2015. Então, fizemos uma formação por atacado, de baixa qualidade. O Brasil precisa melhorar a qualidade. Temos formação à distância para enfermagem, farmácia, bioquímica. É lógico que esse tipo de formação vai colher mais erro.
Então temos uma coleção de diplomas para dependurar na parede, mas sem qualidade. O ensino de como tratar o ser humano é presencial, é de pegar na mão do aluno. Medicina não é ciência; é uma arte. Não se aprende se não houver convívio com um bom artista.