Jornal Estado de Minas

LITERATURA

Novo romance de Menalton Braff aborda as agruras da vida rural

Um casal e uma penca de filho sobem o morro. Porque chove, a tarefa não é fácil, estão numa carreta puxada por um par de bois. No alto do morro, em outro tempo, o rapaz precisa enterrar o pai e decidir a vida. Pequenos proprietários de uma terra ruim e pedregosa, são habitantes de uma encosta no povoado de Pedra Azul.


O contraste entre morro e várzea será narrativamente refletido na alternância entre tempos, o sujeito que volta casado e com filhos e o jovem que um dia decide sair dali para se aventurar, além do rio que parece demarcar a passagem de um território a outro e que dá nome ao livro. São a mesma pessoa, em diferentes tempos, o mesmo Nicanor e o outro, mais velho, com diferentes decisões a tomar.

É a partir dessa bifurcação que o plano de Além do rio dos sinos começa a estabelecer o projeto narrativo de Menalton Braff, vencedor do prêmio Jabuti em 2000 (pelo livro À sombra do cipreste) e autor de outros 25 títulos, incluso este mais recente. 

 Trata-se de um Brasil antigo, mas não muito, às vésperas da Segunda Guerra Mundial. As notícias de fora, quando chegam, servem para ajudar o leitor a se situar no tempo histórico. Num nível mais reduzido, o tempo da narrativa, a alternância é que dá o tom entre o jovem, que perdeu o pai e cogita vender as terras, e Nicanor, que volta para ela casado e com quatro filhos. 



Para vender as terras, é necessário primeiro resolver as burocracias para registro de terras e por isso Nicanor desce o morro e vai até a sede do distrito. É tempo de relembrar da família, os irmãos mortos, depois a mãe, por fim o pai, tudo misturado com a memória da infância. “Por que eu?”, ele se perguntava. “Com que finalidade continuei vivo? Só eu! Um gosto amargo na boca podia significar raiva por ter permanecido o restolho de uma família, os Teixeira do alto do morro, ou júbilo e orgulho por continuar resistindo, apesar de só.” Continuar a existência parece uma premissa cuja força se sobrepõe.

No cartório, vai ter que esperar até segunda-feira para resolver todos os trâmites. Em vez de voltar para o morro, decide ficar lá por baixo, onde vai ter um baile no sábado. Arruma hospedaria e percebe que o mundo está de alguma maneira se abrindo diante de seus olhos. Enquanto isso, a família – Florinda e os meninos – sente o cansaço da longa subida, desanimada pelo chuvisco e, no caso da mulher, com o agravante do mau humor. Ela não quer estar ali, é contra a vontade que aceitou a decisão desse retorno, que para ela não quer dizer muita coisa.

Enquanto aguarda o baile, Nicanor conhece outro rapaz, Jesualdo, que lhe dá dicas de como se comportar na hora de convidar uma moça para a dança e lhe chama a atenção para a égua, que está no cio. Oferece um cavalo de estirpe para cruzar com a égua, de graça. No dia seguinte ao baile, vão até a fazenda da família de Jesualdo. Então Nicanor conhece o pai e as irmãs, Marialva, que parece bem interessada nele, e a mais nova, Florinda.


Toda vez que olha para Marialva, recebe um olhar e um sorriso em retribuição. “Aquilo como uma reação química com pressa de querer bem: uma síntese.” Um namoro se engata. No outro plano, a viagem que culminará na subida prossegue, Nicanor, a mulher Florinda, os quatro filhos. A alternância da narrativa tem propósito claro, despertar no leitor curiosidade para saber o que aconteceu entre o interesse pela irmã mais velha e o casamento seguido de quatro filhos com a mais nova. 

O namoro com Marialva se desenvolve com encontros quinzenais, até virar noivado. Sempre que vai até a fazenda da namorada, passa a noite num galpão. Um dia, comparece ao aniversário de 17 anos da cunhada, momento para uma grande reunião familiar. À noite, a jovem Florinda invade sua cama e o inevitável acontece. A revelação nos meses seguintes da gravidez se dá junto com a decisão de uma viravolta familiar. Agora será preciso se casar com a mais nova, mas a ruptura com os irmãos, Marialva e Jesualdo, é inevitável: a amargura de ambos não concede perdão. Antero, o pai, lhes empresta uma fazenda logo ao lado para que toquem a vida. Alguma dignidade será mantida, ele supõe. Algum restauro da ordem. 

Por fim, Marialva também se casa, a vida parece seguir, os filhos chegam para aumentar a família, as coisas se conformam em novas configurações, apesar de tudo. Modesto é o mais velho. Depois Breno, Ernesto, uma escada, quase uma escala. O velho Antero morre, o que deixa margem para que o rancor de Jesualdo mostre a nova face, nem sempre os novos modelos são benéficos.


Ele passa a praticar atentados contra a propriedade da família da irmã, depois de se oferecer para comprar a terra e ser recusado. Por fim, nasce Zuleide, a caçula. Tiros contra a casa, fogo em pastagens, a execução de um cachorro. A decisão vem então. Nicanor quer voltar para o Morro do Caipora, ainda sua propriedade. Florinda não quer, mas termina submetida. 

TUDO MUDA PARA FICAR IGUAL

A nova fase da vida da família, no alto do morro, não é simples. A terra é árida, o trabalho vasto. Quando Nicanor negocia mais uma vez a venda do morro, agora é Florinda quem recusa. Ela não queria subir o morro, mas agora está decidida a nunca mais descer. Como o casamento é em comunhão de bens, a recusa dela implica que a terra não será mesmo vendida, mas o conflito entre eles abre uma nova frente. Amuados, com dificuldade de comunicação, agarram-se às próprias crenças e silêncios. Um dia, quando Nicanor vai até a cidade, descobre que Marialva ficou viúva. Volta em casa, faz a mala, vai embora. Nem conversa direito. Sai de cena como personagem de uma peça teatral.

Aqui há outro ponto de inflexão. Porque em vez de seguir a trajetória de Nicanor, que parecia personagem central para a narrativa, o que acontece é que o foco permanece na sobrevivência a duras penas da família desmembrada. Florinda e os quatro filhos. Ou três, porque Ernesto morre depois de uma febre. A família convive com a precariedade e a perspectiva de que as coisas não vão melhorar, antes o contrário. Florinda educa como pode, à noite, os filhos, o que significa pouco e mal. A vida, no entanto, como acontece, prossegue do jeito que dá. Do mundo exterior, as notícias às vezes comparecem. Mudaram a capital. Falam em trazer luz para o povoado, os meninos crescem.



Modesto vai primeiro, para uma cidade, cumprir a obrigação com o Exército, mas quando volta é para dizer que não volta, que pretende ficar lá embaixo, na cidade, onde arrumou trabalho num frigorífico, e pretende preparar a descida para os outros. Mas Florinda diz que dali não sai. Se isola, resiste. Os outros insistem com ela que aquilo ali já deu, mas ela não quer conversa

As atribulações da sobrevivência persistem, a precariedade se alastra. Breno se vai. Volta para arrastar as duas à festa de noivado de Modesto, onde ficam sabendo que agora existem militares no poder. Depois é a vez de Zuleide, a partida mais dolorida. Florinda então fica só. “Tão sozinha, ela pensa, que chega a ser livre.” Breno retorna para insistir com ela mais uma vez. Pode morar com qualquer um dos filhos, pode escolher. Todos a receberão, se quiser. Mas ela recusa. Fincou raízes e se agarra a elas. 

A solidão e a resiliência, que parecem ser os grandes temas deste livro, tornam-se manchadas apenas pela aparência de que ninguém tem controle sobre o próprio destino ou, se decide ter, paga um preço que é por demais elevado e leva até a ruína inevitável. Parece existir uma força maior, da história, que se contrapõe às forças internas, a nível pessoal. Postos em contraste, o sujeito não é tão dono da própria história, uma vez que está submetido a impactos maiores, às rodas de um comportamento social, de uma rotina que não foi criada por ele, mas a que é preciso se submeter. E por um sentido de resistência que não se sabe bem a quê, resistir pela impossibilidade de reagir a novos cenários, a diferentes situações. A resistência do empedernido. 



Causa certa estranheza esse abandono de um personagem, Nicanor, a meio do caminho, até que o leitor se vê forçado a entender que não é o personagem a força-motriz, mas o enredo das vidas redundantes, da miséria resiliente, das voltas e viravoltas que na verdade desembocam na mesma estrada, da qual, no fundo, ninguém se desvia muito. Menalton Braff desta vez escreveu um romance de desesperança que se disfarça em força. 

* Paulo Paniago é professor na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília

Trecho do livro


“Finalmente Modesto espera uma pausa no assunto e se encoraja. 

- Mãe, não quero que a senhora sofra com a notícia. A senhora promete? 

- Que notícia, Modesto? – sua voz treme e trai a ansiedade, talvez medo. 

- A senhora promete?

- Promete o quê, Modesto?

- Que não vai sofrer.


- Deixa de ser bobo, menino. Então como é que posso prometer alguma coisa se nem sei o que tu vai dizer.

Ele paira o olhar sobre a mesa sem ver, pensa um instante e se abre.

- É o seguinte: nesta viagem, do meu lado sentou um homem que me perguntou de onde eu era, e expliquei que tinha nascido aqui, na Pedra Azul, mas que agora trabalhava num frigorífico na cidade. Ele disse que conhecia muita gente em Pedra Azul e perguntou quem era meu pai. Contei assim mais ou menos, que há muitos anos ele tinha desaparecido e a gente nunca mais teve notícia dele. Porém, ele insistiu e eu disse o nome do pai. Então ele me olhou com cara de assustado e disse, mas esse homem é meu amigo. Ele vive com a viúva Marialva, em Jacutinga. 

Tremem os lábios de Florinda, e por eles passam palavras inaudíveis. Seus olhos despacham chispas de ódio na direção do filho por ter trazido tal notícia. Segue-se um longo silêncio que deixa entrarem pela janela aberta os ruídos da noite que, por causa do frio e do vento, não são muitos.”

“Saber por ter notícia é também um modo de saber. Mas um saber que afeta menos, pois formado por palavras, e as palavras são sempre muito voláteis. Deixam menos marcas. E há sempre a possibilidade de que a situação não esteja bem definida, oscilando entre nem tanto ou ainda mais. Às vezes pode nem ser verdade. Era só um modo de falar, uma impressão que não se confirma. Pelo menos, quando necessária, cresce tal esperança. Não passou tudo de um engano, ou era apenas uma mentira, porque as palavras, quem as governa? 

Jesualdo seguiu para casa no trote do cavalo. Voltou ao lado oposto da colina, onde estivera, atravessou uma roça de mandioca, entrou pela estrada do capão na direção do campo. Não sentia o lombo do animal, não comandava sua direção, não via nada do entorno. Ele tinha visto: Nicanor arava uma terra que não era sua, com bois e arado que não eram seus, e sim do sogro. E a imagem, mesmo que borrada pela distância, não saía mais de seus olhos, uma afronta, o descalabro. 

Agora eu vi, ninguém me contou, e Jesualdo seguia aquele pensamento sacudido pelo trote do cavalo. Agora eu vi. E sua raiva, que nos últimos meses vinha arrefecendo, trancou-se em sua garganta para poder crescer até quase o insuportável.”


Além do rio dos sinos: romance
De Menalton Braff
Reformatório
280 páginas
R$ 44