Jornal Estado de Minas

ENTREVISTA

Filósofo Marcos Nobre: 'A guerra de Bolsonaro não é contra o coronavírus, é para se manter no poder'

O presidente Jair Bolsonaro tem um projeto autoritário para o Brasil de longo prazo, mas, no contexto da pandemia, com perda de popularidade e apoiamentos políticos, encontra-se encurralado: não sabe como enfrentar os impactos sanitários e econômicos da doença, que atingirão a sociedade e o seu governo. Diferentemente de Viktor Orbán, na Hungria, que teve tempo de costurar a inflexão autoritária consumada em seu segundo mandato, Bolsonaro, com um ano e meio de governo, ainda não acumulou forças de igual sentido.  

A avaliação acima é do filósofo Marcos Nobre, professor da Unicamp e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).  “Ao mesmo  tempo em que se refugia em sua base mais fanática, inicia negociações com parte do Centrão na Câmara dos Deputados para ter proteção contra o impeachment. Adota um raciocínio militar: ‘Isso é uma guerra, muita gente vai morrer’. Ele aprofunda a ligação com as Forças Armadas para a coordenação e gestão, já que se vê como um governo de guerra. Só que a guerra dele não é contra o vírus. É a guerra para se manter no poder”, avalia.





Marcos Nobre lança nesta sexta-feira em todo o país o ebook Ponto-final: a guerra de Bolsonaro contra a democracia, da editora Todavia, abrindo a série da Coleção 2020 - Breves Ensaios sobre a Pandemia. O autor prega uma frente democrática ampla, nos moldes do Diretas Já, para evitar que se reimplante no Brasil uma ditadura

Para Marcos Nobre, o momento é o da política, de duras negociações entre todas as forças democráticas do país, da esquerda à direita, o que inclusive inclui as Forças Armadas, para não apenas repactuar os limites da disputa política dentro das regras do jogo democrático, como também reposicionar o enfrentamento às desigualdades sociais ao centro da agenda brasileira.  “O único horizonte regenerador numa frente como essa é o impeachment de Bolsonaro.” Caso contrário, podemos ter saída destrutiva, afirma o filósofo, que adverte ao projetar como o Brasil será contado no futuro: “A história é cruel e é escrita pelos vencedores. Dependerá de quem a escreve”.
 
 
Desde o início da pandemia, Jair Bolsonaro mantém o negacionismo, inclusive com o estímulo a descumprimento do isolamento social e indicação de remédios ainda sem aval científico.  O que leva o presidente do Brasil a agir dessa maneira?
Bolsonaro não tinha projeto para quatro anos de governo, mas para décadas:  o modelo dele é a ditadura militar de 64. Foi o candidato antissistema e é um líder antissistema, de um sistema que identifica como democrático. Na visão dele, a democracia a ser combatida é a esquerda, pois, para ele, esquerda significa qualquer ator político, força ou movimento social que não pensam como ele.



É isto o que fez e faz: implantou um estilo de governo em que ataca permanentemente as instituições que, supostamente, está dirigindo. Ao mesmo tempo, se aproveita do fato de que, apesar disso, o sistema continua funcionando: o SUS continua dando atendimento; a merenda chega às escolas. Antes da pandemia, Bolsonaro estava num momento de acúmulo de forças para implantar esse projeto; estava na fase de destruição das instituições democráticas.

Na Hungria, foi a partir do segundo mandato que Viktor Orbán, de fato, consolida o autoritarismo. Esse era o roteiro. Mas quando a pandemia chegou, Bolsonaro ainda não tinha força acumulada para dar este salto. Ele se percebe encurralado, pois sabe como a pandemia vai atingir em cheio o governo, tanto no âmbito sanitário quanto no econômico. Ele tem clareza disso, teve acesso às projeções matemáticas do número de mortes. E aí toma uma decisão. Quais seriam as duas possibilidades? A primeira seria reorganizar o sistema inteiro para combater a pandemia. Essa seria a atitude que salva vidas. Mas ele optou pelo projeto autoritário, já que não vai conseguir combater o impacto da pandemia em seu governo, na linha “isso é uma guerra, muita gente vai morrer”.

Ele aprofunda a ligação com as Forças Armadas para a coordenação e gestão, já que se vê como um governo de guerra. Só que a guerra dele não é contra o vírus. É a guerra para se manter no poder. As ações são coerentes, mas não significa que sejam decentes e aceitáveis, tanto do ponto de vista dos valores democráticos, quanto dos valores humanitários. Mas se justificam sob o ponto de vista autoritário. Então, o que assusta nele é que há racionalidade.  Embora as atitudes dele nos repugnem, devemos entendê-las para combatê-las.




 
Em sua avaliação, as instituições democráticas brasileiras vão resistir ao governo Bolsonaro?
A ameaça autoritária à democracia está presente de forma permanente e temos de estar vigilantes, porque ele é fiel às suas convicções autoritárias. Por isso fez tudo o que fez durante a campanha e em seus 14 meses de governo.  Embora Bolsonaro se venda como não político, é preciso considerá-lo um político.

A racionalidade dele como político é de um líder populista, autoritário. Por isso que para os democratas é difícil entendê-lo e a tendência seja de chamá-lo de burro ou louco. Então, vamos olhar Bolsonaro como ele é, e não projetar nele coisas que não seja: pode ser loucura, mas tem método. Por isso, é inevitável que se forme uma frente democrática ampla para termos uma saída positiva. O único horizonte regenerador numa frente como essa é o impeachment de Bolsonaro. Caso contrário, podemos ter saída destrutiva.
 
Na hipótese de que um impeachment de Bolsonaro se viabilize, o que garantirá que o vice-presidente, Hamilton Mourão, não vá abraçar as mesmas teses autoritárias?
O vice-presidente, Hamilton Mourão, é um político. Se houver negociação ampla para que ele assuma a Presidência, ele vai estar amarrado a essa negociação para a preservação das instituições democráticas. Então, pouco importa o que ele de fato acha em seu foro íntimo. Mas que respeite os termos do acordo. Se ele assumir e não cumprir o acordo de uma frente ampla, ele próprio cai. Vai ser cobrado por uma esmagadora maioria do sistema político.




 
Como as Forças Armadas se inserem nesse processo?
A questão das Forças Armadas é complexa. Há uma divisão clara entre os militares que decidiram ir para o governo e os militares que permanecem nas Forças Armadas. Essa é uma divisão importantíssima, e foi uma evolução para as Forças Armadas, que não será perdida facilmente. Os militares que estão no governo chegaram depois de um longo ostracismo, em que as Forças Armadas se sentiam injustamente discriminadas, porque têm quadros preparados para ajudar qualquer governo civil e consideram que foram deles indevidamente excluídas por 35 anos. Pegaram carona na candidatura Bolsonaro para retornar.

Claro que tem gente que é convictamente autoritária nas Forças Armadas. Mas não é o que guia a instituição. Se perceberem que o governo se inviabiliza, e ele tende a se inviabilizar, as Forças Armadas não vão deixar o governo de forma desonrosa. Precisam de uma saída honrosa. A base fanática de Bolsonaro é militarizada, armada e violenta. Então, é preciso incluir as Forças Armadas como atores nesta frente de negociação. Isso é mais um elemento.
 
Em recente reunião ministerial, Bolsonaro verbalizou seu desejo de armar a população. Aonde chegaremos se tal pretensão se disseminar?
Por isso, o que falarmos sobre as Forças Armadas é tão mais importante. Vamos fazer exercício retrospectivo. Comece pelo princípio de análise de que Bolsonaro é chantagista profissional. Chantageia as Forças Armadas com os grupos de informação digital que tem; chantageia a sociedade com as Forças Armadas dizendo que estão do lado dele. E uma das chantagens, a mais perigosa de todas, era a organização nacional das polícias militares. Elas são estaduais. Nunca tiveram organização nacional, por boa razão: como têm contingente muito maior, seriam contraponto às Forças Armadas.



As Forças Armadas são superiores em termos de treinamento, armamento tático; mas tem contingente enorme de gente armada nas polícias. E temos de lembrar do motim do Ceará. Aquilo era o ensaio do tipo de coisa que Bolsonaro queria fazer das polícias militares, pois era a partir dali que poderia obrigar as Forças Armadas a entrarem numa aventura golpista. Ele tinha esse projeto de organizar nacionalmente as polícias e não foi adiante. O que preocupa nesse grupo fanático, que é minoritário: é aguerrido, armado e está disposto a praticar violência de qualquer tipo.

Mais uma razão para que a negociação da frente ampla democrática inclua as Forças Armadas para que tenha contraponto a esse tipo de risco, que está sempre presente. Os bolsonaristas armados são provocadores profissionais e querem produzir o caos. O método de governo do Bolsonaro sempre foi produzir o caos, ainda mais agora que está acuado.
 
Grupos contrários ao governo começaram a ocupar as ruas nos últimos dias. Qual a sua avaliação a essa reação?
Está se formando uma frente ampla na sociedade que vai progressivamente empurrando os partidos, movimentos sociais, para uma grande mesa de concertação da democracia. Agora, é preciso ficar claro que todo movimento dessa amplitude, como o Diretas Já, é policêntrico. Pode haver iniciativas diferentes. Temos de ter cuidado para não entrar na lógica da morte, que é a lógica e o jogo de Bolsonaro, aumentando as taxas de contágio, porque vamos em massa para as ruas.



Espero que não seja generalizado como tática, pois nem sequer sabemos quando será o pico da pandemia. Por outro lado, como vemos nos Estados Unidos, é evidente que a raiva, a frustração, e a tristeza são muito grandes. É claro que é difícil, pois a política nasce na indignação, da raiva, mas não podemos fazer política com raiva. Senão faremos a política do Bolsonaro, da guerra dele. Embora seja compreensível que as pessoas queiram ir para as ruas, acho muito grave o que pode acontecer em termos de contágio. Estamos falando de um momento em que o Brasil está no topo das estatísticas mundiais em termos de mortes por semana.

Se os grupos acharem que é absolutamente necessário ir para as ruas, é preciso ser organizado, distanciamento físico, máscaras, mecanismos de proteção. Mas neste momento precisamos contrapor a estupidez do Bolsonaro à serenidade. Temos de construir alianças, pontes. Como disse o papa, há quem constrói muros e há quem constrói pontes. É hora de negociar para contrapor à lógica da guerra.

Em 30 anos, como os historiadores descreverão o Brasil de 2020?
A história é cruel e é escrita pelos vencedores. Dependerá de quem a escreve. Espero que essa grande frente democrática seja também a frente contra a desigualdade; que seja da parte da direita ou da esquerda democrática, a desigualdade volte ao centro da agenda brasileira. Se vencerem a democracia e as forças democráticas, teremos um momento de regeneração e poderemos contar essa história como o momento em que perdemos a democracia. Mas se perdemos, quem a escreverá serão os autoritários. E contarão, daqui a 30 anos, que bom mesmo seria a ditadura e o populismo autoritário.  

Ponto-final: a Guerra de Bolsonaro contra a Democracia
De Marcos Nobre
Todavia
80 páginas
Apenas em e-book. R$ 9,90