Em Retratos com erro, o poeta carioca Eucanaã Ferraz percorre mundos concretos e imaginados, fala do dito e do não dito, fala de segredos e fatos. No novo livro, Eucanaã descreve, com um lirismo ao mesmo tem- po restrito e amplo, os abismos e o absurdo do amor, do indizível desejo que nos concerne. Ele se encanta com a beleza e a perfeição que a tudo se cola, também “ilumina” o horror, as sombras, o medo, a loucura, tudo isso numa miscelânea ímpar que só mesmo a poesia é capaz de engendrar.
“Não fui eu quem fez o mundo/ e sei que isso conta a meu favor”; “só o silêncio que reluz é ouro”, o poeta sugere. A vida não se submete, não se deixa fixar de forma alguma. Todo retrato mente, é suscetível aos olhos que ali pousam, que ali dormem. A vida apenas ri. De tudo, e de todos. Ela, a vida, sabe, nos de dentro e nos de fora, que tudo está incompleto, tudo que medra busca algum tipo de redenção.
Dividido em “dobras”, o livro começa na segunda parte. A primeira, como uma espécie de ausência essencial ao contexto dos erros, empresta um dinamismo único e especial à estrutura poética. O poeta, a cada verso, confirma o imponderável e se contradiz, sem qualquer prejuízo para ambas as partes. Cabe ao leitor mergulhar em um sentimento de vertigem e estranhamento.
Eucanaã vai do lirismo puro ao cético, ao pesado, sem perder o prumo, com os olhos voltados para a delícia – e para o “terror” – da escrita. A poesia apazigua e fere, e o poeta transita como poucos entre o céu e as sombras. Chama a atenção a maturidade poética do dono de uma poesia feita para “gente grande”, em todos os sentidos. Espécie de samurai nordestino, ou carioca, é um poeta forte e exige que os seus possíveis leitores também sejam.
Quase tudo cabe no universo poético de Eucanaã, o amor lírico, o desejo, como também o sórdido, o nada, tudo isso misturado numa miscelânea que em nada atrapalha a excelência dos poemas do livro. “O sol forte dos dias” serve muito para a poesia, que exerce exemplarmente sua função. Euca- naã é dono de uma sintaxe musical. Ler os poemas de Retratos com erro em voz alta funciona e dinamiza esse processo de sentimentalidades. Nada de rimas. Nada de fáceis construções. Certas poesias vão dos “áureos anos mil e setecentos”, ou de bem antes, ao infinito, e além.
Eucanaã parece que torce para o time adversário, torçe e vela pela fantasia e é capaz de falar sobre “aberrações”, entre elas o próprio amor, talvez a maior de todas aberrações contemporâneas. A poética de Eucanaã não se restringe a porquês e conclusões. Ele sabe bem dos seus deslimites no âmbito da literatura e transita à vontade dentro desse universo que se expande e brilha a cada novo livro.
Reverências e príncipes húngaros
Em Retratos com erro, o poeta reverencia outros poetas e fala de príncipes húngaros com a mesma desfaçatez, com a mesma graça, com a mesma delicadeza com que chama a nossa atenção para as coisas da ciência e as delícias e os mistérios que moram num mero e singelo muro pintado de branco. O nada, desta forma, ganha um estatuto de estrela. Um tipo de poesia única feita sob a luz do encantamento. É preciso predisposição e fôlego para captar os enigmas, para perceber o silêncio que emana das “rosas completas”.
Nenhuma resenha, nenhuma crítica vai estar à altura da poesia. Não cabe aqui o mar, a amplitude de signos e sentidos que cada poema mostra e revela, revela e mostra, numa ciranda marcada principalmente pelo afeto. Retratos com erro eleva o paradoxo que só a poesia é capaz de produzir num grau máximo.
A partir do título (cada poema pode ser uma foto), os retratos não enganam, quando muito oscilam os olhos de acordo com as vertigens que cada pintura, que cada imagem suscita e sugere. Poemas são perigosos demais. “Erram”, dessa forma, os textos, por serem, natural e simplesmente, poemas. Uma poesia feita de amálgamas, de pedras sobre pedras, de flores sobre flores. Um tipo de poesia dura, bem-vinda da própria vida.
ENTREVISTA
Eucanaã Ferraz
‘‘Escrever poemas significa uma escuta do mundo’’
‘‘Como você ‘‘trabalha’’ os poemas? Você os reescreve?
Trabalho muito. Costumo fazer as primeiras versões dos poemas a lápis, em cadernos. Só passo para o computador quando sinto que o poema está próximo de uma versão final ou quando já não consigo entender o que está escrito entre setas e sob uma intrincada rede de rabiscos, círculos, asteriscos. É o que mais gosto de fazer, embora me envolva com alegria na tarefa de montar os livros.
E no caso do seus livros? Como se dá esse processo?
No caso do livro, entra em cena a sensação de que estou construindo algo definitivo e isso gera uma enorme insegurança, que pode ser assustadora. Já o poema permite uma infinita possibilidade de acertos, ajustes, variantes, e isso faz com que as desconfianças e vacilações pareçam menos intimidadoras. O trabalho de fazer o poema é algo que me dá grande prazer, o que não exclui o sofrimento. Mas é um sofrimento buscado.
Como surgem os títulos dos seus livros?
Em certo momento, compreendo que a escrita dos poemas se encaminha para uma espécie de ponto comum. Há, nisso, tanto uma surpresa quanto uma coincidência com certas inquietações minhas, que são de ordem estética, mas também, digamos, existencial. A escolha do título quase sempre se dá aí. Mais que um nome, portanto, o título funciona como uma imagem guia. Assim, depois de escolhido, não consigo trocá-lo. O livro fica sendo aquele, o do título. Sinto isso de modo tão forte que não posso fazer de outro modo. Na melhor das hipóteses, penso que o título leva o livro para o lado que ele, o livro, quer, e sei que não devo desobedecê-lo.
Há uma rotina de trabalho para escrever poesia?
Não tenho rotina de trabalho. Comigo não funciona assim (não sei se com algum poeta funcionará de outro modo), com horários, disciplina. Costumo passar semanas seguidas trabalhando nuns versos, dia e noite, por dentro das madrugadas, numa exaustão física e emocional quase torturante, e muitas vezes posso levar meses sem escrever nem um verso sequer.
Qual a sua análise do cenário político-cultural do nosso país?
O cenário político e cultural no país é muito complexo. Sempre foi, eu diria. Agora, passamos por um momento político medonho, que busca afetar diretamente a vida artística e cultural com sua mesquinharia e sua ignorância. A estupidez arrogante da vida política bate-se explicitamente contra a inteligência e a liberdade, a memória e a crítica. Mas a vida cultural no Brasil é forte; ela sobreviverá, não porque temos espe- rança, mas porque temos formas consolidadas e capacidade de renovação. Julgo que nem sabemos ao certo a força que temos. E se é preciso ter consciência dela, intuo que também servirá a nosso favor “não saber”. Penso que é bom ser um pouco irresponsável, infantil. É importante não ter convicções fortes demais.
Poderia citar as suas referências literárias?
Minhas referências literárias são muitas. In- cluem, claro, já na minha formação, os grandes modernos brasileiros: Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Drummond, João Cabral. Mais recentemente, Vinicius de Moraes. Não faltou o onipresente Fernando Pessoa. E houve a prosa de Clarice Lispector e os ensaios de Roland Barthes. Mas nada teria relevância sem a voz de minha mãe cantando as canções de Maysa ou de Dolores Duran. Minha grande inclinação, no entanto, sempre foi plástica. Muito cedo descobri e amei Piero della Francesca e Giotto. E minha primeira experiência com a arte moderna aconteceu quando vi a reprodução de um óleo de Matisse.
Quais são seus livros de cabeceira?
Minha cabeceira passou muito tempo ocupada com a poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen, sobre quem acabo de escrever um ensaio. Sempre estou lendo algum ensaio. Tenho me voltado agora para o tema da pai- sagem, desenvolvido quase que integralmente por estudiosos franceses. E me mantenho curioso acerca da poesia que se escreve hoje. No momento, leio Talvez precisemos de um nome para isso, de Stephanie Borges.
Qual a função do poeta no Brasil contemporâneo?
Um poeta tem hoje a função que sempre teve: escrever poemas. Isso significa uma escuta do mundo. É uma aposta absoluta na liberdade e na dignidade das coisas.
Poema selecionado
*
Foto
Eis o retrato sem nenhum retoque:
agora é o tempo da canção imóvel
sob a sombra do teu rosto assim quieto
o que era o sol agora é sono e tédio
o que vibrava agora é vidro opaco
agora é o tempo do verso estragado
pela ilusão de nos bastarmos nele
a madrugada se apagou na pele
o meu caminho agora é um gesto seco
é o teu silêncio que me diz é o tempo
de um céu deserto céu sem céu o certo
é fecharmos as portas esquecermos
a hora é grande agora e nos separa
por letras mortes como um dicionário
entre os teus dedos foram-se as cidades
e há muitas pedras nos meus olhos áridos.
Este retrato sem nenhum retoque.
Retratos com erro
De Eucanaã Ferraz
das Letras
126 páginas
R$ 49,90