Brás Cubas, o defunto autor que escrevia com “a pena da galhofa e a tinta da melancolia”, acaba de ressuscitar novamente. Desta vez, não por meio de seu criador, Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), mas pelas mãos da tradutora norte-americana Flora Thomson-DeVeaux. Coube à pesquisadora, que se debruçou sobre a obra do escritor brasileiro para a sua tese de doutorado, verter para o inglês as “rabugens de pessimismo” do personagem eternizado por meio de suas memórias póstumas. Com o título de The posthumous memoirs of Brás Cubas, a obra-prima de Machado de Assis (“Um dos maiores autores negros das Américas”, destaca o material de divulgação) foi lançada no início da semana nos EUA pela coleção Penguin Classics, uma das mais tradicionais do mundo. Outra tradução, realizada por Margaret Jull Costa e Robin Patterson, sai em breve pela editora nova-iorquina Norton.
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Flora Thomson-DeVeaux, que tem a palavra “traquinas” como uma de suas favoritas nas páginas de Machado, não chegou a usar o mesmo expediente do escritor: “Admiro quem tem esse talento, mas sou mais de colocar uma nota enorme de fim de livro explicando as minúcias das traquinagens machadianas”. Além de estudar as personagens femininas de Memórias póstumas, a tradutora revela fascínio por outra mulher machadiana: “Sempre fico um pouco assombrada pela figura da minha xará, a Flora de Esaú e Jacó, que vai sofrendo e definhando, paralisada pela indecisão. É uma tragédia potencial cujo perigo os tradutores conhecem muito bem”.
Antes da entrevista com Flora Thomson-DeVeaux, um aviso ao leitor. As últimas palavras deste parágrafo pertencem a Brás Cubas, “um defunto, que se pintou a si e a outros conforme lhe pareceu melhor e mais certo”, segundo Machado de Assis: “A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus”.
Quais as suas primeiras reações e os primeiros encantos com a leitura de Memórias póstumas de Brás Cubas?
Meu primeiro encontro com Memórias póstumas de Brás Cubas foi no segundo ano da faculdade, que foi também meu segundo ano de estudo da língua portuguesa. Já estava plenamente fascinada pelo estudo do Brasil, e acho que de alguma forma senti que estava na hora de encarar um mestre da literatura brasileira. Lembro-me bem de estar no meu quarto, no dormitório da faculdade, e ficar espantadíssima logo no começo com as imagens amalucadas, as alfinetadas no leitor, o sarcasmo feroz.
Minha primeira impressão era de que não parecia ser um romance do século 19, o que acho que é uma reação comum – mas o processo de conviver profundamente com o livro durante a tradução me mostrou o quão impregnado o texto está das questões daquela época. Ganhamos muito ao ler Memórias póstumas plenamente contextualizado, e por isso fiz questão de incluir notas de fim de livro na edição da minha tradução.
Minha primeira impressão era de que não parecia ser um romance do século 19, o que acho que é uma reação comum – mas o processo de conviver profundamente com o livro durante a tradução me mostrou o quão impregnado o texto está das questões daquela época. Ganhamos muito ao ler Memórias póstumas plenamente contextualizado, e por isso fiz questão de incluir notas de fim de livro na edição da minha tradução.
Você estudou e escreveu sobre as três traduções anteriores do livro no artigo “Reading Machado through the looking-glass: case studies from the translations of Memórias póstumas”. Por que decidiu fazer a sua própria tradução?
O artigo, na verdade, é um subproduto da minha tese de doutorado, que se debruçou sobre as três traduções anteriores, além de incluir a minha tradução do romance como um dos capítulos. Tudo começou em 2014, quando fui contratada para traduzir um livro sobre a obra de Machado, do crítico e professor João Cezar de Castro Rocha – saiu em inglês como Machado de Assis: toward a poetics of emulation.
O livro é recheado de citações da obra machadiana, como se imaginaria. Meu plano era de citar as traduções anglófonas publicadas, sempre que possível, mas em muitos casos acabei vendo que as traduções existentes não se “encaixavam” na análise do professor, que tem um olhar muito atento para as minúcias do texto.
O livro é recheado de citações da obra machadiana, como se imaginaria. Meu plano era de citar as traduções anglófonas publicadas, sempre que possível, mas em muitos casos acabei vendo que as traduções existentes não se “encaixavam” na análise do professor, que tem um olhar muito atento para as minúcias do texto.
Isso não significava que as traduções estivessem erradas e que o crítico estava certo, simplesmente apontava para o fato de que as traduções existentes não contemplavam toda a gama de possibilidades de leitura do Bruxo. Isso deve parecer óbvio, mas foi uma constatação impactante. Fui obrigada a retraduzir muitas passagens machadianas para o livro, e isso plantou uma semente: entrei no doutorado no mesmo ano e resolvi dedicar esse tempo, esses anos de pesquisa, ao preparo de uma nova tradução. Escolhi Memórias póstumas justamente porque foi um dos romances que apresentaram dificuldades no contexto do projeto anterior, e pela força do fascínio que me inspirara ainda na graduação.
Em última análise, é impossível desligar a vontade de fazer uma nova tradução da vontade de analisar as anteriores. Do ato de ler uma tradução por uma ótica crítica, nem que seja uma crítica construtiva, nasce o desafio: então, como você faria diferente? E qualquer retradução responsável vai implicar uma releitura cuidadosa das interpretações que a precederam.
Em última análise, é impossível desligar a vontade de fazer uma nova tradução da vontade de analisar as anteriores. Do ato de ler uma tradução por uma ótica crítica, nem que seja uma crítica construtiva, nasce o desafio: então, como você faria diferente? E qualquer retradução responsável vai implicar uma releitura cuidadosa das interpretações que a precederam.
Quais passagens do livro trouxeram maior dificuldade? E as suas passagens favoritas?
Na semana antes do lançamento da tradução, resolvi fazer uma “contagem regressiva” através de um exercício simples: todo dia, sorteava uma página aleatória do romance (para garantir a aleatoriedade, recorri a um gerador de números do Google) para comentar nas redes sociais. Eu já sabia que mesmo as passagens de mais “simplicidade” aparente escondem armadilhas terríveis, e esse exercício comprovou que literalmente qualquer página do romance guarda dificuldades fascinantes.
Mas para citar uma frase mais emblemática, sofri muito para traduzir de forma sintética a inversão “eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor.” É uma bela brincadeira. Minha solução foi “I am not exactly an author recently deceased, but a deceased man recently an author.” Quanto às passagens favoritas, são inúmeras, mas posso dizer que a experiência de traduzir O delírio e tentar reproduzir as passagens surreais foi quase psicodélica.
Mas para citar uma frase mais emblemática, sofri muito para traduzir de forma sintética a inversão “eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor.” É uma bela brincadeira. Minha solução foi “I am not exactly an author recently deceased, but a deceased man recently an author.” Quanto às passagens favoritas, são inúmeras, mas posso dizer que a experiência de traduzir O delírio e tentar reproduzir as passagens surreais foi quase psicodélica.
Como a escrita de Machado de Assis reflete a época em que o escritor viveu?
Dá para responder de vários ângulos. Os romances estão num diálogo claro com questões da época – sociais, filosóficas, culturais –, das quais algumas podem estar mais presentes para o leitor de hoje do que outras. O que a escrita menos reflete é o estilo da época. O português do Machado, pelo seu rigor e sua aproximação com a oralidade, envelheceu muitíssimo bem.
O que considera mais marcante nas personagens femininas do escritor? Por que as descreve, em seu artigo, como “fontes perenes de ambiguidade”?
Esse foi um dos aspectos que me surpreenderam quando fui observar as divergências entre as traduções de Memórias póstumas de Brás Cubas: os tradutores muitas vezes “discordavam” sobre o gestual, a caracterização, e a intencionalidade atribuídas às personagens femininas. Elas são construídas com poucas pinceladas, e grande parte da “feitura” das mulheres do romance na verdade cabe ao leitor – ou ao tradutor, no caso. Por exemplo, quando a Marcela abana a cabeça “com um ar de lástima,” os tradutores interpretam a carga emocional por trás do gesto de maneiras muito diferentes – pode ter um toque de escárnio, ou vergonha, ou tristeza.
Com isso, a gente pode supor que a mesma coisa acontece silenciosamente, na cabeça dos leitores. Só estudei a fundo as caracterizações dos personagens deste romance, e pode ser que o mesmo aconteça com personagens masculinos nos outros livros. Mas posso dizer enquanto leitora que as mulheres do Machado são eternamente surpreendentes, e sempre mais complexas do que uma primeira vista pode sugerir.
Com isso, a gente pode supor que a mesma coisa acontece silenciosamente, na cabeça dos leitores. Só estudei a fundo as caracterizações dos personagens deste romance, e pode ser que o mesmo aconteça com personagens masculinos nos outros livros. Mas posso dizer enquanto leitora que as mulheres do Machado são eternamente surpreendentes, e sempre mais complexas do que uma primeira vista pode sugerir.
Qual o diálogo que Memórias Póstumas estabelece com obras de outros autores da época?
É um diálogo de igual para igual. Conforme fui fazendo as notas da minha tese e rastreando as alusões literárias dentro do romance, ia tendo a impressão de que o texto está sempre se conectando com outros textos, e o resultado é quase uma grande teia de aranha literária. Machado, enquanto leitor onívoro, está nos mostrando sua “biblioteca” o tempo todo. Dá para ver que entre a versão que saiu na Revista Brazileira e a versão publicada em livro, ele até retirou algumas alusões, talvez se sentindo mais seguro, com menos necessidade de desfilar a erudição.
O que pode despertar o interesse de leitores em inglês para Memórias póstumas?
Acho que o que desperta o interesse de qualquer leitor é exatamente aquilo que me fisgou na primeira leitura: a inesperada “modernidade” e ousadia deste romance do século 19. Agora, espero que com esta edição mais contextualizada, esse primeiro momento de espanto seja seguido por um segundo, de ver como a obra não só tem raízes profundas no espaço-tempo do Brasil do século 19, como também de observar como o Machado pegou a matéria-prima do contexto dele e teceu reflexões inacreditáveis.
Olhando a recepção do Machado em inglês ao longo dos últimos 70 anos, dá para ver que a cada “onda” de traduções machadianas ele ganha um pequeno fã-clube de leitores que se sentem quase ultrajados de não ter descoberto o mestre antes. Espero que essa tradução contribua para engrossar as fileiras.
Olhando a recepção do Machado em inglês ao longo dos últimos 70 anos, dá para ver que a cada “onda” de traduções machadianas ele ganha um pequeno fã-clube de leitores que se sentem quase ultrajados de não ter descoberto o mestre antes. Espero que essa tradução contribua para engrossar as fileiras.
Prefácio
Dave Eggers
“Um presente glorioso para o mundo”
“Uma obra-prima brilhante e um dos mais espirituosos, divertidos e atemporais livros já escritos (...). É uma história de amor – muitas histórias de amor, na verdade – e uma comédia de classe, boas maneiras e ego, também uma reflexão sobre uma nação e uma época, um olhar implacável sobre a imortalidade e, ao mesmo tempo, uma exploração íntima da própria narrativa. Memórias póstumas de Brás Cubas é totalmente original e diferente de qualquer outra coisa além dos muitos romances publicados posteriormente e que parecem ter se inspirado, de forma consciente ou não, no livro de Machado de Assis (...). Esta tradução é um presente glorioso para o mundo: brilha, canta; é muito engraçada e consegue capturar o tom inimitável de Machado, ao mesmo tempo mordaz e melancólico, autolacerante e romântico”.
Trechos do prefácio escrito por Dave Eggers, autor de romances como O círculo e Os monstros, para a edição da Penguin