Jornal Estado de Minas

1984

Duas versões para o cinema

Conteúdo para Assinantes

Continue lendo o conteúdo para assinantes do Estado de Minas Digital no seu computador e smartphone.

Estado de Minas Digital

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Utilizamos tecnologia e segurança do Google para fazer a assinatura.

Experimente 15 dias grátis

Último e mais importante livro do jornalista e escritor Eric Arthur Blair (1903-1950), que adotou o pseudônimo George Orwell,1984 foi lançado em junho de 1949 e ganhou duas versões para o cinema. Mesmo sendo livres adaptações, refletem bem a mensagem distópica da obra. A primeira é de 1956 e deve ser compreendida no contexto da época de sua produção. Foi filmada em 1955 na Inglaterra pelo diretor inglês Michael Anderson (1920-2018), ainda sob a sombra traumática do horror do nazismo e da incipiente e ameaçadora Guerra Fria. Logo foi interpretada como crítica feroz à ditadura comunista de Josef Stálin na URSS, mesmo porque o próprio Orwell havia se decepcionado com o regime do qual era simpatizante em sua juventude.


Embora nunca tenha sido confirmado oficialmente, o filme – assim como A revolução dos bichos, outra obra distópica de Orwell adaptada para o cinema – teria sido financiado secretamente pela CIA, o serviço de inteligência dos EUA, e usado como instrumento político na guerra ideológica da Casa Branca contra o seu maior inimigo, a URSS. Tanto que foi retirado de circulação pelo espólio de Orwell e disponibilizado novamente apenas décadas depois.


A produção tem altos e baixos. A fotografia em preto e branco de C. M. Pennington Richards amplia o aspecto sombrio do mundo totalitário de Oceania, vigiado pelo Grande Irmão. Destaque também para as atuações do ator americano Edmond O’Brien (1915-1985) como o protagonista Winston Smith, e da bela atriz, também americana, Jane Sterling (1921-2004), como sua namorada. E ainda para o já veterano ator britânico Donald Pleasence (1919-1995), quase sempre interpretando vilões, mas não aqui.


Os (d)efeitos especiais do filme estão entre os pontos fracos, compreensível para a época, quando ainda eram precários no cinema. Os equipamentos de espionagem do Grande Irmão parecem lanternas, holofotes, lustres, pequenas TVs portáteis ou coisas similares, não fazem rir porque o filme é de horror psicológico. Mas o pior é a falta de emoção, a apatia sentimental que não envolve o espectador. Mesmo quando Smith é torturado, porque ousou amar e massacrado pelo Ministério do Amor, falta essa função identitária. Apesar do tema pesado, não é uma trama assombrosa como a original propõe à imaginação do leitor.


 

HURT E BURTON

A segunda versão de 1984, não por coincidência, é de 1984, o ano em que a distopia de Orwell não se realizou. É dirigida pelo britânico Michael Radford, hoje com 74 anos. A primeira referência do filme, que já basta para qualificá-lo, independentemente do roteiro, são as ótimas atuações de dois dos maiores atores do século 20, os britânicos John Hurt (1940-2017) e Richard Burton (1925-1984), que morreu logo depois.
É impressionante como Hurt se encaixa na pele de Smith, com semblante ao mesmo tempo sofrido e sagaz em contraponto com seu algoz interpretado por Burton, sempre estático, sem mover um músculo do rosto mesmo nas cenas mais dramáticas, típico de um ditador. O embate entre esses dois grandes atores/personagens já “paga o ingresso” da obra. Além disso, essa versão é muito mais realista e fiel ao livro do que a de 1956, embora menos assustadora do que o contexto da época da primeira, quando ainda se temia uma guerra atômica.


Hoje, o original de Orwell e os dois filmes precisam ser vistos muito além da interpretação rasteira como crítica ao comunismo. São muito mais do que isso. Impressionante como são obras que se adaptam ao contexto de cada época. Agora, predominam as realidades virtuais e as redes sociais, por isso, além do autoritarismo, 1984 também se torna crítico ao capitalismo, ao lucro a qualquer custo, à exposição exacerbada e à publicidade sem limites. Tudo o que você compra pela internet, por exemplo, é controlado por olhos virtuais. Não à toa inspirou os reality shows, que usurpam o nome do livro.




E, o pior de tudo, a invasão de privacidade, um mundo em que segredos e informações sigilosas podem cair no domínio público a qualquer momento, seja para fins autoritários quando o fascismo volta a assombrar o mundo, ou comerciais. E os hackers, são eles também o Grande Irmão de hoje?


Ainda hoje, os princípios ideológicos de 1984 (Guerra é paz, Liberdade é escravidão e Ignorância é força) atiçam o imaginário com nomes sugestivos como Ministério da Paz, Ministério do Amor e Ministério da Verdade, mas, na prática, eufemismos fascistas.

 

Trechos do livro

 

“O inimigo do momento sempre representava o mal absoluto, com o resultado óbvio de que todo e qualquer acordo passado ou futuro com ele era impossível.”

“E se todos os outros aceitassem a mentira imposta pelo Partido – se todos os registros contassem a mesma história -, a mentira tornava-se história e virava verdade.”

“Dia a dia e quase minuto a minuto o passado era atualizado. Desse modo era possível comprovar com evidências documentais que todas as previsões feitas pelo partido haviam sido acertadas; sendo que, simultaneamente, todo vestígio de notícia ou manifestação de opinião conflitante com as necessidades do momento eram eliminados. A história não passava de um palimpsesto, raspado e reescrito tantas vezes quantas fosse necessário.”


“Ao reajustar os números do Ministério da Pujança, aquilo nem falsificação era. Tratava-se apenas de um substituir um absurdo por outro.”


“Não interessa se a guerra está de fato ocorrendo e, visto ser impossível uma vitória decisiva, não importa se a guerra vai bem ou mal. A única coisa necessária é que exista um estado de guerra.”

“Se os fatos atestarem algo diferente, então é preciso alterar os fatos. Dessa forma, a história é constantemente reescrita. Essa falsificação diária do passado, levada a efeito pelo Ministério da Verdade, é tão necessária para a estabilidade do regime quanto o trabalho de repressão e espionagem realizado pelo Ministério do Amor.”

“Não permitimos que os mortos se levantem contra nós.”

 

 

Um homem inconformado

O jornalista, ensaísta e romancista Eric Arthur Blair (1903-1950) foi humanista, libertário, crítico do autoritarismo e preocupado com as desigualdades sociais. Nasceu na Índia dominada pelo império britânico, filho de um oficial e de uma mulher de origem francesa. Foi bolsista na famosa escola de Eton, mas não suportou o elitismo e seguiu para a Birmânia, em 1922, antiga colônia inglesa, onde ingressou na Polícia Imperial Indiana. Mas como policial rejeitou as injustiças que testemunhou, acabou contraindo dengue e voltou para a Inglaterra.



(foto: Arte EM)

Admirador do espírito livre e aventureiro do escritor inglês Jack London, Orwell, com empregos precários e sem dinheiro, chegou a viver nas ruas de Londres e Paris, na segunda metade da década de 1920. Paris era então o centro da intelectualidade mundial. Acabou optando pela vadiagem, no sentido existencial, como filosofia de vida. Foi operário de fábrica, por onde se aproximou de trabalhadores. Escreveu então Na pior em Paris e Londres, onde relata essa vida difícil, mas de certa forma reconfortante espiritualmente por não aderir ao capitalismo. Nesta época, renegou até o seu nome e adotou o pseudônimo George Orwell, em homenagem ao rio Orwell, da Inglaterra.
Começou a trabalhar como jornalista escrevendo artigos em jornais de esquerda, surfando na onda comunista que ainda varria o mundo. Ainda insatisfeito, partiu para a Espanha para lutar contra o general Franco na guerra civil, já na segunda metade da década de 1930. Ferido no pescoço, voltou para a Inglaterra. A derrota dos revolucionários o aproximou mais da esquerda para enfrentar o nazismo, mas as atrocidades cometidas pelo ditador Josef Stálin na URSS o afugentaram do ideário marxista, e Orwell abraçou o anarquismo.


Quando estourou a Segunda Guerra Mundial, foi correspondente da rádio BBC. Após o conflito, se dedicou à literatura e escreveu suas obras máximas, A revolução dos bichos e 1984. Aos 47 anos, ainda com futuro promissor, morreu de tuberculose. Embora tenha escritos livros considerados essenciais e que ainda hoje têm grande vendagem e reverberem na política mundial, Orwell é mais respeitado pela crítica por seus ensaios e textos jornalísticos do que pelo trabalho ficcional.