Ao longo das décadas, Machado de Assis foi apresentado aos estudantes brasileiros como se fosse branco. O mesmo ocorreu com outros grandes autores, como o francês Alexandre Dumas (1802-1870). “É como se os pretos que se destacam em diversas áreas do conhecimento não pudessem ser apresentados como pretos”, afirma o historiador negro André Luiz Rodrigues, professor de colégio e cursos particulares do Rio de Janeiro. “Retirando-lhes o protagonismo, são embranquecidos. É como se a notoriedade na sociedade brasileira fosse assegurada apenas aos brancos”, diz ele.
Foi pensando em projetar a afrodescendência de Machado de Assis, que tem repercussão sobre a discussão do racismo estrutural da sociedade brasileira, que Adriana Cardozo, artista de pós-produção, se envolveu há duas semanas em um projeto pessoal: face à proximidade dos 181 anos de nascimento do escritor, ela fez a releitura de uma de suas fotos icônicas, aos 57 anos. Em minuciosa pesquisa de imagens de Machado de Assis e de outras pessoas originárias de várias partes do mundo, como a Índia, Adriana trabalhou pontualmente a fisionomia do escritor: testa, nariz, olhos, formato das orelhas. Com uma excepcional qualidade de resolução, recuperou o aspecto mais escamoteado pela sociedade brasileira de sua genial personalidade: a negritude de Machado de Assis.
“Eu também aprendi na escola que ele era branco. Quis que o projeto chamasse a atenção para esse questionamento”, afirma Adriana Cardozo. “Tratar Machado de Assis como branco foi tão naturalizado, que agora, quando ele aparece negro, incomoda”, revela a artista, em referência aos comentários racistas com os quais interagiu, em meio às centenas de elogios e comparti- lhamentos do trabalho nas redes behance, Twitter e Facebook. “Estou vendo algumas pessoas incomodadas e isso nos diz muito sobre a sociedade brasileira, uma das mais racistas do mundo. Basta comparar como nos Estados Unidos o Black Lives Matter e outros movimentos sociais levam tantas pessoas brancas às ruas para protestar contra a violência policial. No Brasil, a violência contra os negros é ainda maior, mas a sociedade está anestesiada com a violência e os assassinatos diários, para não falar do encarceramento em massa de uma população principalmente preta”, afirma. “Será que se fossem brancos seria diferente?”
Reconhecer o protagonismo do preto, apontar para o racismo normalizado na sociedade brasileira, demonstrar empatia com a causa, não banalizar piadas e comentários que “desuma- nizam”, admitir a maior vulnerabilidade social e a maior exposição à violência policial do preto em relação ao branco são todos aspectos que fundamentam o projeto de releitura de Machado de Assis por Adriana Cardozo.
“Acho crucial apagarmos esse embranque- cimento do Machado de Assis. É uma forma de mostrar a importância dos negros para a sociedade”, afirma o historiador André Luiz Rodrigues. “À época em que os retratos de Machado de Assis foram criados, a ciência esta- belecia que o verdadeiro padrão de homem de- veria ser branco. Para que a pessoa tivesse uma notoriedade, tinha de ser colocada como branca. Até mesmo o presidente Nilo Peçanha (1867-1924), que era negro, sempre foi apresentado com a cor clara”, sustenta André Luiz. “Hoje, não temos mais uma ciência que coloca o negro como inferior ao branco – e o fez a serviço do ca- pitalismo para justificar a escravidão –, mas o racismo persiste. Uma forma de combater isso é mostrar que os negros têm também protagonismo, também se destacam. Eu mesmo cresci sem ter grandes heróis negros para me inspirar”, destaca o historiador.
André Luiz lembra que, embora os negros sejam 52% da população brasileira, diferentemente dos Estados Unidos, têm presença resi- dual em postos de alta representação política, no sistema de justiça e em cargos de comando nas empresas. “Vejo no Brasil um apartheid social profundo. Quem mais vive em situação de vulnerabilidade? Quem é vítima do genocídio policial? Quem é discriminado pela cor da pele? As pessoas não se afirmam como racistas, sempre escondem isso, mas o que a gente percebe nos últimos dois anos é que estão saindo do armário. A escravidão deixou marcas não solucionadas, já foram criadas tentativas de reparação, mas o racismo persiste e se aprofunda neste governo, que não leva o problema a sério”, afirma André Luiz Rodrigues, em referência não apenas às declarações e atitudes de Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares, mas também de inúmeros atos do governo federal.
“Eu vejo o Brasil muito racista, talvez seja o país mais racista do mundo, porque as pessoas normalizam a violência contra o preto, a vulne- rabilidade, a exclusão e a falta de oportunidades. E atacam políticas como a de cotas, que tentam fazer algum tipo de reparação”, considera André Luiz Rodrigues. Adriana Cardozo tem opinião idêntica. “Primeiro de tudo, nós, os brancos, que somos privilegiados, temos de assumir uma postura de empatia e a condição de ouvintes, nos abrindo para um aprendizado com os pretos sobre o que seja o racismo e como ele se manifesta. Temos de aprender a identificar quais são os privilégios que o sistema nos dá como brancos e quais são os direitos que retira da comunidade afro-brasileira”, destaca ela.