Tristão e Isolda têm lugar cativo na lista dos pares românticos mais famosos de todos os tempos. Desde o século 19, parte dessa fama decorre da ópera de Richard Wagner, mais próxima no tempo e que influenciou gerações de compositores. Mas a lenda protagonizada pelos dois amantes é anterior, muito anterior.
Há quem trabalhe com a hipótese de uma origem na Antiguidade persa. Com mais certeza, porém, acredita-se que ela surgiu entre os povos celtas. Estes viveram por quase toda a Europa como tribos independentes durante a Idade do Ferro, até serem dominados pelo Império Romano. Traços de sua cultura resistiram através dos séculos e, após a queda de Roma, marcaram presença no mundo feudal.
Tudo indica que a lenda de Tristão e Isolda tomou corpo onde hoje encontram-se País de Gales, Escócia, Irlanda e Inglaterra. Embora seja difícil dizer ao certo quando isso aconteceu, um palpite razoável seria por volta do século 6 d.C., período em que o cristianismo já havia penetrado a cultura celta, mas ainda convivia com as crenças e dinâmicas sociais anteriores.
No século 12, com a Idade Média mais avançada, a lenda ganharia três versões literárias importantes. Uma delas é a mais antiga, de Béroul, escrita em língua normanda (uma combinação do francês com a língua dos povos escandinavos que desde o século 9 ocupavam a região norte da França, a Normandia). As outras são a de Thomas da Inglaterra, escrita em francês arcaico, e a de Eilhart von Oberg, em alemão.
No século 13, mais duas versões da lenda se destacam: o Tristão em prosa, em francês arcaico, atribuído a Luce du Gal, e outra em alemão, de Gottfried von Strassburg (na qual Wagner se baseou muito livremente). Daí em diante, edições da história de Tristão e Isolda se multiplicaram, sendo conhecidas versões em sueco, holandês, inglês, italiano, espanhol, tcheco, galego-português etc.
Que elementos nessas narrativas decorrem da matriz celta? Quais foram acrescentados, ou reconfigurados, pelo tratamento literário medieval, encabeçado pela França? Tudo isso é objeto de controvérsia.
Que elementos nessas narrativas decorrem da matriz celta? Quais foram acrescentados, ou reconfigurados, pelo tratamento literário medieval, encabeçado pela França? Tudo isso é objeto de controvérsia.
O romance de Tristão, agora traduzido para o português por Jacyntho Lins Brandão, é a primeira versão medieval francesa, de Béroul. Foi composto entre 1150 e 1190. Quase nada se sabe do autor. Como ele não escrevia em latim, e sim em normando, deduz-se que fosse normando.
Partes do romance se perderam. Ao que parece, faltam as duas pontas, o início e o fim, tendo sobrevivido o miolo da obra. Mas o que falta, por sorte, não compromete. Pode-se até dizer que a “edição” feita pelos séculos deixou o manuscrito mais próximo do leitor atual. A história já começa quente e seu desfecho é aberto, dois recursos característicos da narrativa contemporânea. Por via das dúvidas, para que ninguém se perca na leitura, tanto o poeta quanto o tradutor preenchem as lacunas do enredo. Um recapitula os acontecimentos ao longo do texto, o outro acrescenta uma sinopse dos trechos iniciais perdidos, feita a partir de outras versões da lenda.
O romance conta a história do cavaleiro Tristão e da rainha Isolda, que, por terem bebido acidentalmente uma poção mágica, o lovendrinc, se apaixonam perdidamente um pelo outro. Conta também do marido de Isolda e tio de Tristão, o rei Marco, e daqueles que o atiçam a desmascarar os amantes e obter vingança. A sequência dos episódios, em linhas gerais, parte da traição, passa pela denúncia e o castigo, e termina com a remissão dos apaixonados. Quando termina, começa de novo.
Dentro da literatura medieval, que se organiza em grandes conjuntos, segundo o tema ou a geografia – ciclo arturiano (sobre o rei Arthur), matéria de Roma, matéria de França etc. –, a lenda de Tristão e Isolda chega a constituir um ciclo à parte, tantas são as versões conhecidas e as derivações da história. Em seu excelente texto introdutório, Jacyntho Brandão lembra o caráter “transformacional” do gênero romance ao longo da história, e afirma que o romance medieval era um campo literário novo e aberto a novidades temáticas e formais, cujos protagonistas são cavaleiros movidos por interesses próprios, que buscam renome e posição.
Comparados a eles, as grandes narrativas épicas medievais, conhecidas como “canções de gesta”, talvez fossem menos aptas à experimentação formal e, sem dúvida, estavam engajadas na construção da identidade coletiva de todo um povo. Importante assinalar, para o leitor de hoje, que os “romances” não costumavam ser em prosa. Apesar das diferenças, eles tinham em comum com as “canções” o fato de serem na verdade longos poemas narrativos.
Comparados a eles, as grandes narrativas épicas medievais, conhecidas como “canções de gesta”, talvez fossem menos aptas à experimentação formal e, sem dúvida, estavam engajadas na construção da identidade coletiva de todo um povo. Importante assinalar, para o leitor de hoje, que os “romances” não costumavam ser em prosa. Apesar das diferenças, eles tinham em comum com as “canções” o fato de serem na verdade longos poemas narrativos.
Um toque de mestre
O que chegou até nós de O romance de Tristão soma ao todo 4.485 versos, em dísticos rimados de oito sílabas. O fato de a edição agora lançada ser bilíngue permite verificar o quão fiel e inspirado foi o trabalho do tradutor. O texto em português recria com igual competência o humor fino e a piada chula, o amor e a maldade medievais, o estilo erudito e o entretenimento popular, o poema no papel e o potencial para a leitura em voz alta (que às vezes ecoa o da literatura de cordel).
Quando a métrica padrão é alterada, quando as rimas soam imperfeitas, quando há flutuação de nomes e pronomes, quando a sintaxe parece retorcida, basta olhar o texto francês e constatar que Béroul usava os mesmos recursos para manter o poema avançando. É do jogo, portanto. Um toque de mestre foi a divisão, pelo tradutor, da massa ininterrupta do texto original em blocos menores, que funcionam como capítulos, cujos títulos descrevem a ação. A leitura se organiza, o romance se torna mais leve e manejável.
Quando a métrica padrão é alterada, quando as rimas soam imperfeitas, quando há flutuação de nomes e pronomes, quando a sintaxe parece retorcida, basta olhar o texto francês e constatar que Béroul usava os mesmos recursos para manter o poema avançando. É do jogo, portanto. Um toque de mestre foi a divisão, pelo tradutor, da massa ininterrupta do texto original em blocos menores, que funcionam como capítulos, cujos títulos descrevem a ação. A leitura se organiza, o romance se torna mais leve e manejável.
O tema do adultério, sem dúvida, é o eixo da obra. Pela maneira como a sociedade é retratada e os personagens lidam com ele, duas intersecções históricas se tornam visíveis. A mais recuada no tempo, entre a cultura celta e o cristianismo, e outra mais próxima, entre a cultura feudal da vergonha e a cultura da culpa – a da vergonha baseada em códigos públicos, a da culpa mais interiorizada e subjetiva.
Jacyntho Brandão tem razão ao afirmar que o tema do adultério molda o discurso do poeta, que adota a silepse como recurso retórico decisivo. A silepse é uma figura de linguagem que trabalha com a superposição de sentidos, torna variável a interpretação do que é dito, e no entanto gera uma inesperada concordância. Béroul recorre a silepses em várias passagens, sendo a mais notável a do juramento de Isolda.
Nela, o rei Marco exige que a esposa jure publicamente ser inocente do adultério. A rainha, sempre muito esperta, pede a Tristão que se disfarce de leproso e que a ajude a atravessar um lamaçal, com ela sentada em seus ombros, diante do público e das autoridades. Assim, no dia seguinte, na hora do juramento, ela pode negar a traição conjugal, que de fato cometeu, sem incorrer em perjúrio: “Nunca entre as coxas me entrou homem,/ Só o leproso que mesmo ontem/ Me carregou além do charco,/ E meu marido: este, o rei Marco” (vv. 4.201-7). Quem sabe do adultério ouve a frase de um jeito, quem não sabe, de outro; a meia-verdade torna-se uma verdade em camadas, porém indiscutível.
Também os personagens e as situações, ao longo do romance, são marcados pela ambiguidade: os protagonistas se amam porém lamentam trair o rei, Marco oscila entre o afeto que sente por eles e o desejo de vingança, os vilões que promovem a intriga falam a verdade, Deus e todos os santos tomam o partido dos pecadores. O resultado disso é que o leitor fica preso à história. Quanto mais julga conhecê-la, mais se surpreende.
Nela, o rei Marco exige que a esposa jure publicamente ser inocente do adultério. A rainha, sempre muito esperta, pede a Tristão que se disfarce de leproso e que a ajude a atravessar um lamaçal, com ela sentada em seus ombros, diante do público e das autoridades. Assim, no dia seguinte, na hora do juramento, ela pode negar a traição conjugal, que de fato cometeu, sem incorrer em perjúrio: “Nunca entre as coxas me entrou homem,/ Só o leproso que mesmo ontem/ Me carregou além do charco,/ E meu marido: este, o rei Marco” (vv. 4.201-7). Quem sabe do adultério ouve a frase de um jeito, quem não sabe, de outro; a meia-verdade torna-se uma verdade em camadas, porém indiscutível.
Também os personagens e as situações, ao longo do romance, são marcados pela ambiguidade: os protagonistas se amam porém lamentam trair o rei, Marco oscila entre o afeto que sente por eles e o desejo de vingança, os vilões que promovem a intriga falam a verdade, Deus e todos os santos tomam o partido dos pecadores. O resultado disso é que o leitor fica preso à história. Quanto mais julga conhecê-la, mais se surpreende.
* Rodrigo Lacerda é escritor, editor e tradutor, autor de romances como O mistério do leão rampante, Outra vida e O fazedor de velhos 5.0
O romance de Tristão
De BéroulTradução e introdução de Jacyntho Lins Brandão
Editora 34
336 páginas
R$ 68
Palavra de especialista
Jacyntho Lins Brandão
professor da UFMG
“Fazer essa tradução de um texto em versos relativamente longo, com métrica e rima, foi muito prazeroso”
A tradução de O romance de Tristão nasceu do trabalho que Jacyntho Lins Brandão apresentaria num colóquio em Curitiba sobre o conceito de romance e suas mutações ao longo do tempo: “Acabei não podendo ir”, diz ele, “mas para o colóquio traduzi a parte do juramento de Isolda. Tendo experimentado e gostado da tarefa, resolvi traduzir o resto.”
O evento foi organizado pelo grupo de estudos do romance do qual Jacyntho faz parte, criado por iniciativa do professor e estudioso do romance brasileiro Pedro Dolabela Chagas e formado por pesquisadores de várias universidades brasileiras – UFMG, Uerj, Ufes, Ufop, UFPR e USP. Entre seus integrantes estão Caetano Galindo, autor da mais recente tradução de Ulisses, de James Joyce (Cia. das Letras, 2012), e Mamede Jarouche, que assina a premiada tradução das Mil e uma noites (Globo, 2005).
Outros cinco colóquios já aconteceram, e alguns trabalhos neles apresentados foram reunidos nos volumes Variações sobre o romance I e II, disponíveis online no site da editora Makunaíma. O próximo encontro está previsto para Mariana.
Professor titular de literatura grega na UFMG e professor visitante da Federal de Ouro Preto, Jacyntho publicou três livros sobre o romance grego: A poética do hipocentauro (UFMG, 2001), A invenção do romance (Editora da UnB, 2005) e Antiga musa: arqueologia da ficção (Relicário, 2015). Sócio-fundador da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, membro da Academia Mineira de Letras, Jacyntho se diz, antes de tudo, um leitor apaixonado pelo gênero:
“Estou sempre lendo algum romance, às vezes mais de um, simultaneamente, e só por prazer. É aquela parte da atividade de leitor que não deixo que se transforme em trabalho. Quero só ler, o professor e crítico literário fica eclipsado em nome do prazer. Mas de vez em quando o crítico se revolta e o prazer acaba gerando algum trabalho (que se mantém prazeroso). Fazer essa tradução de um texto em versos relativamente longo, com métrica e rima, foi muito prazeroso.”
Etapa importante na história do gênero, os romances medievais fizeram a ponte entre os romances gregos e latinos da Antiguidade e os romances modernos, surgidos entre os séculos 15 e 16. E as relações entre as etapas da história do romance podem ser mais diretas do que se imagina, como demonstra Jacyntho Brandão:
“Miguel de Cervantes achava que sua obra-prima não era Dom Quixote, mas Os trabalhos de Persiles e Segismunda, um romance de amor e aventuras no estilo dos romances gregos antigos, que ele afirmou ter escrito imitando Heliodoro, de quem temos o mais extenso dos romances gregos, As etiópicas, que pode ser dos séculos 3 ou 4. Se Cervantes está na origem do romance moderno, então há uma ligação direta com os antigos. No caso de Dom Quixote, a ligação é com os romances medievais. O problema dessas classificações do romance, e de seus recomeços, vem do caráter aberto e pouco codificado do gênero. É como se cada novo romance reinventasse o romance. Então, é legítimo adjetivar o termo: romance antigo, moderno, contemporâneo, novo, psicológico, histórico etc.”
Alguns romances antigos são mais familiares ao leitor não especializado, como os latinos Satiricon, de Petrônio, do século 1 d.C., e o Asno de ouro, de Apuleio, do século 2. Outros são menos conhecidos, porém, não menos importantes, como os gregos Quéreas e Calírroe, de Cáriton de Afrodísias, e As efesíacas, de Xenofonte de Éfeso. Ambos inauguram, ainda no século 1 d.C., o gênero de romance de amor e aventuras, seguido no século seguinte por Dáfnis e Cloé, de Longus.
Para os interessados nos romances da Antiguidade, o professor Jacyntho avisa que em breve Quéreas e Calírroe será lançado pela editora 34, com tradução de Adriane Silva Duarte, professora de grego da USP. “Sei disso porque escrevi a orelha do livro”, diz ele.
Trechos
Da apresentação
Maria Esther Maciel
“Embora irrefutável, o relacionamento amoroso entre o cavaleiro e a rainha é abordado por Béroul por meio de recursos narrativos que tentam controlar a reação dos próprios leitores diante dos acontecimentos e enfatizar a perspicácia de Isolda no uso das palavras para se defender das acusações. Ao tomar partido dos amantes e, através de habilidosas variações do ponto de vista narrativo, conferir ao affair de Tristão e Isolda uma legitimidade não legítima dentro das convenções do tempo, ele não deixa de ironizar as regras do casamento medieval e tomar partido do amor adúltero, liberto das amarras legais.”
Da introdução
Jacyntho Lins Brandão
“Pode parecer estranho que um romance se apresente assim, em versos, mas essa é a feição primeira que tiveram os romans, enquanto ‘a grande novidade do século XII’ (Shala Nosrat), quando foram criados e nomeados.
Como o texto de Béroul, poeta de que nada sabemos, deve ter sido escrito entre 1150 e 1190, participa do próprio surgimento do romance, o que se confunde com os primeiros registros do ciclo arturiano, configurado inicialmente nos romans de Chrétien de Troyes – que teria ele também escrito um Tristan, hoje completamente perdido, mas de que recebemos ainda Cligès (poema composto em 1176), em que se narra a história deste cavaleiro; Le chevalier de la charrete, que tem como protagonista Lancelot, e Le chevalier au Lyon, dedicado a Yvain (produzidos entre 1177 e 1181); bem como Le conte du Graal, centrado em Perceval (iniciado entre 1182 e 1190, mas deixado inacabado pelo autor, quando de sua morte.
Assim, o Tristan de Béroul, se não é o primeiro romance moderno de que algo se conservou, contra entre os primeiríssimos, cujo traço principal estaria em terem sido escritos diretamente em romance, ou seja, numa língua vulgar – neste, caso o francês –, e não em latim.”
Assim, o Tristan de Béroul, se não é o primeiro romance moderno de que algo se conservou, contra entre os primeiríssimos, cujo traço principal estaria em terem sido escritos diretamente em romance, ou seja, numa língua vulgar – neste, caso o francês –, e não em latim.”