“Não quero ser lembrado por Cem anos de solidão nem pelo prêmio Nobel, e sim pelo jornal. Nasci jornalista e hoje me sinto mais repórter do que nunca. Isso está no meu sangue”, disse Gabriel García Márquez (1927-2014), poucos anos antes de morrer.
Essa declaração pode parecer estranha para um autor que conquistou reconhecimento e fama com a literatura e o realismo mágico, que arrebataram leitores mundo afora a partir do lançamento, em 1967, de Cem anos de solidão, a saga de várias gerações da família do coronel Aureliano Buendía.
E, principalmente, depois de ser agraciado pela academia sueca, em 1982, com o prêmio máximo de literatura. Mas um olhar um pouco mais atento em suas obras e uma simples consulta nas entrevistas do autor colombiano confirmam que o jornalismo e a literatura andaram de mãos dadas na vida do escritor. E, talvez, se não tivesse sido repórter, García Márquez também não se tornasse escritor, como ele mesmo admitiu. O jornalismo é “o melhor ofício do mundo”, afirmou.
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E é exatamente o trabalho de repórter de Gabo, apelido que ganhou de colegas jornalistas, que acaba de chegar compilado ao mercado brasileiro. Catorze anos depois do lançamento de sua extensa obra jornalística em cinco volumes com quase 3.000 páginas, a editora Record lança Gabriel García Márquez – O escândalo do século, antologia com 50 reportagens e crônicas publicados em jornais e revistas entre 1950 e 1984, todos pinçados das edições de 2006 da editora. São exemplos de como o ofício de jornalista inspirou a obra ficcional do escritor.
Mas antes de entrar no jornalismo, é preciso falar do dom criativo de García Márquez, um mestre do encantamento literário. Além do fascínio de Cem anos de solidão, seus leitores jamais esquecem a duradoura paixão de Fermina Daza e Florentino Ariza em O amor nos tempos do cólera, que atravessou cinco décadas para se consumar.
A doença é um fator determinante no livro, porque Fermina, com suspeita de estar contaminada, é assistida pelo médico Juvenal Urbino, que acaba roubando de Florentino o coração de sua amada.
A doença é um fator determinante no livro, porque Fermina, com suspeita de estar contaminada, é assistida pelo médico Juvenal Urbino, que acaba roubando de Florentino o coração de sua amada.
A ousadia do escritor ao contar logo na primeira linha o fim do livro, como em Crônica de uma morte anunciada (“No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou às 5 e meia da manhã para esperar o navio em que chegava o bispo...”) também é notável. Não é para qualquer autor revelar o desfecho no início da narrativa e conseguir segurar o leitor.
Há também O outono do patriarca, o livro que mais deu trabalho a Gabo – como ele mesmo revela em sua autobiografia Viver para contar (2003), reminiscências de sua infância e juventude – porque levou quase dez anos pesquisando a trajetória de ditadores latino-americanos para criar o autocrata fictício de sua obra, que aponta para um triste passado político do continente.
Há também O outono do patriarca, o livro que mais deu trabalho a Gabo – como ele mesmo revela em sua autobiografia Viver para contar (2003), reminiscências de sua infância e juventude – porque levou quase dez anos pesquisando a trajetória de ditadores latino-americanos para criar o autocrata fictício de sua obra, que aponta para um triste passado político do continente.
Outra história marcante é A incrível e triste história de Cândida Erêndira e sua avó desalmada, sobre a sina cruel da adolescente prostituída pela própria avó, acusada injustamente de ter incendiado a casa. Histórias fantásticas não faltam no mundo de Gabo. “Mestre Zabala (que o iniciou no jornalismo no jornal El Universal) me deixou alvoroçado com o enigma de uma menina de doze anos enterrada no Convento de Santa Clara e cujo cabelo, depois de morta, cresceu vinte e dois centímetros em dois séculos. Nunca imaginei que voltaria a esse tema quarenta anos depois para contar essa história num romance com implicações sinistras”, conta ele na autobiografia.
Esse caso fantástico ganhou forma no livro De amor e outros demônios, que constrói narrativa sobre a descoberta numa cripta de um esqueleto de uma menina com extensa cabeleira ruiva que morreu abandonada num convento, contaminada por raiva canina. No romance, o cabelo também continuou crescendo mesmo após a morte. “Todo bom romance devia ser uma transposição poética da realidade”, afirmou Gabo em longa entrevista ao escritor Plinio Apuleyo Mendoza, transformada no livro Cheiro de goiaba (3ª edição/editora Record/1982).
Esse caso fantástico ganhou forma no livro De amor e outros demônios, que constrói narrativa sobre a descoberta numa cripta de um esqueleto de uma menina com extensa cabeleira ruiva que morreu abandonada num convento, contaminada por raiva canina. No romance, o cabelo também continuou crescendo mesmo após a morte. “Todo bom romance devia ser uma transposição poética da realidade”, afirmou Gabo em longa entrevista ao escritor Plinio Apuleyo Mendoza, transformada no livro Cheiro de goiaba (3ª edição/editora Record/1982).
Como surgiu o repórter
Mas como começou a vida do repórter García Márquez, o garoto nascido no pequeno povoado de Aracataca (vila nos arredores de Barranquilla que inspirou a imaginária Macondo de Cem anos de solidão), na costa caribenha da Colômbia? Antes de escrever seus mais de 30 livros, Gabo, no fim dos anos 1940, então com 19 anos, era estudante de direito na Universidade Nacional de Bogotá e tinha publicado os primeiros contos (A terceira renúncia e Eva está dentro do gato – este uma curiosa narrativa sobre a ditadura da beleza – que integram o livro Olhos de cão azul), no jornal El Espectador.
A guinada veio em 9 de abril de 1948, quando uma tragédia que jogou a Colômbia numa guerra civil de uma década e matou cerca de 200 mil pessoas, mudou radicalmente sua vida. O assassinato a tiros do líder liberal populista Jorge Eliécer Gaitán, pré-candidato à presidência da República, causou confronto entre liberais e conservadores e revolta popular, episódio conhecido como Bogotazo. A residência estudantil de García Márquez foi incendiada e a universidade fechada por tempo indeterminado.
Para continuar seus estudos, ele se mudou para Barranquilla, no norte do país, mas a universidade local também foi fechada. Ele, então, seguiu para a vizinha Cartagena das Índias. Em maio de 1948, o jornalismo tomou o lugar do direito, que el abandonou, e entrou de vez em sua vida quando ele se encontrou na rua com o médico e escritor Manuel Zapatta Olivella, que já o conhecia de Bogotá e o levou para a redação do El Universal com a proposta de trabalhar como repórter.
Recebido como escritor promissor, Gabo iniciou ali sua trajetória escrevendo textos que mesclavam jornalismo e crônicas sobre temas do cotidiano. Mas viveu de quarto em quarto alugado nos anos seguintes, não ganhava o suficiente para se sustentar e recebia ajuda financeira do pai, além de passar por momento sem inspiração literária.
Entre idas e vindas e muitas dificuldades, entretanto, a fama acabou chegando quando ele voltou para Bogotá. Escreveu em 1955 a dramática série Relato de um náufrago, depois transformada em livro, baseada em entrevista com Luis Alejandro Velasco, único sobrevivente do navio da Marinha colombiana ARC Caldas, que naufragou durante tempestade ao voltar do Alabama (EUA).
Entre idas e vindas e muitas dificuldades, entretanto, a fama acabou chegando quando ele voltou para Bogotá. Escreveu em 1955 a dramática série Relato de um náufrago, depois transformada em livro, baseada em entrevista com Luis Alejandro Velasco, único sobrevivente do navio da Marinha colombiana ARC Caldas, que naufragou durante tempestade ao voltar do Alabama (EUA).
O drama do náufrago sobrevivente foi publicado em 14 episódios e quebrou o recorde de vendas do El Espectador. Os problemas financeiros acabaram, mas houve escândalo porque Gabo denunciou: “A embarcação afundara por causa da sobrecarga do contrabando feito por oficiais e pela tripulação”. Por causa da tensão gerada pelas crônicas dramáticas e para tirar García Márquez do olho do furacão em meio à ditadura colombiana, o editor o mandou para a Europa como correspondente.
Durante quase três anos, ele esteve em Paris, na Itália, Viena e até do outro lado da então Cortina de Ferro, o bloco de países comunistas da Europa Oriental. Tornou-se jornalista profissional. Desde então, jornalismo e literatura caminharam juntos em sua vida. Na Europa, Gabo foi repórter e cronista e escreveu curiosas histórias, muitas delas reunidas agora em O escândalo do século.
CEM ANOS DE SOLIDÃO
“Qual foi o propósito quando se sentou para escrever Cem anos de solidão?
Dar uma saída literária, integral, para todas as experiências que de algum modo me tivessem afetado durante a infância.
Muito críticos veem no livro uma parábola ou alegoria da história da humanidade.
Não, eu só quis deixar um testemunho poético do mundo da minha infância, que transcorreu numa casa grande, muito triste, com uma irmã que comia terra e uma avó que adivinhava o futuro, e numerosos parentes de nomes iguais que nunca fizeram muita distinção entre a felicidade e a demência.
Os críticos sempre encontram para ele intenções mais complexas.
Se existem, devem ser inconscientes. Mas pode acontecer também que os críticos, ao contrário dos romancistas, não encontrem nos livros o que podem, mas sim o que querem.
Você sempre fala com muita ironia dos críticos. Por que o desagradam tanto?
Porque, em geral, com uma investidura de pontífices e sem perceber que um romance como Cem anos de solidão carece por completo de seriedade e está cheio de senhas para os amigos mais íntimos, senhas que só eles podem descobrir, assumem a responsabilidade de decifrar todas as adivinhações do livro, correndo o risco de dizer grandes bobagens.”
(Trecho da entrevista concedida por García Márquez ao escritor Plinio Apuleyo Mendoza e transformada no livro Cheiro de goiaba, lançado em 1982, ano em que ele ganhou o Nobel de Literatura)
GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ -O ESCÂNDALO DO SÉCULO
Cristóbal Pera (organização)
Editora Record
348 páginas
R$ 59,90